Imagem mostra unidade do tempo da Assembleia de Deus Vitória em Cristo no bairro da Penha, na zona norte do Rio Foto: Wilton Junior/Estadão
Estudo aponta média de 17 novos templos por dia; movimento é maior no Sudeste e tem ritmo mais lento entre os nordestinos; legislação e penetração nas periferias estão entre os motivos
O técnico de refrigeração Alcione Cavalcante, de 46 anos, é um dos obreiros e professores da escola bíblica da igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério do Sopro Divino, em Mauá, Grande São Paulo. “Onde moro é periferia, a gente tem acesso às regiões mais humildes e conversa muito sobre a realidade dessas pessoas”, diz.
“Elas vêm para a igreja, compartilham dificuldades e não só são ouvidas, como as pessoas da igreja se identificam com os problemas delas e ajudam”, continua ele, que se converteu quando era jovem. A Assembleia de Deus é a que mais cresceu entre as evangélicas, abrindo 9.348 templos de 2010 a 2019, alta de 115%.
O cientista político Victor Araújo, pesquisador associado ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM), ligado à Fapesp, desenhou o mapa dessa transição religiosa no Brasil. Só em 2019, foram abertas 6.356 igrejas evangélicas no País, média de 17 novos templos por dia. O Espírito Santo é o Estado mais evangélico, com 93 templos por 100 mil habitantes. O Nordeste é a região onde essa tendência é menos forte.
O estudo registrou a existência, no País, de 109,5 mil igrejas evangélicas de diversas denominações, ante cerca de 20 mil em 2015. O predomínio é das pentecostais (48.781 templos). Entre os motivos para esse boom, está o enfraquecimento do catolicismo, que perdeu alcance com a formação das periferias urbanas após o êxodo rural.
“Eram populações católicas, mas as paróquias não estavam nesses locais, e eles foram rapidamente ocupados pelas evangélicas, que têm estruturas menos engessadas, às quais a cultura das periferias se adaptou melhor”, diz Araújo. As paróquias também não abriram espaço para o protagonismo das mulheres em postos de liderança, movimento que favoreceu as evangélicas.
Além disso, a lei 10.825/2003 tornou livre a criação, organização e funcionamento das organizações religiosas, possibilitando que as evangélicas pudessem abrir mais templos com novas denominações. “Deu grande impulso a um processo que já havia começado na década de 1960″, afirma o pesquisador, também ligado à Universidade de Zurique (Suíça).
A consolidação do protestantismo no Brasil, a partir da primeira igreja evangélica registrada, em 1922, foi lenta. Em 1960, havia oficialmente só 18 igrejas evangélicas missionárias no Brasil. Daquele ano até 1980, o total aumentou mais de 170 vezes, atingindo a marca de 3.087.
A linguagem acessível das igrejas também é vista como vantagem, segundo a pastora Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic). “Têm linguagem mais simples e fácil de entender, até porque geralmente a pessoa que abre (a igreja) já faz parte do bairro. Por ter identificação forte com o lugar, a liderança é legitimada pela comunidade”, diz.
Para a dona de casa Alexya Veríssimo, de 23 anos, sua igreja a acolheu quando mais precisava. “Hoje, Deus é tudo para nós”, diz ela, mãe de duas meninas, de 2 e 3 anos, que vai à Igreja Pentecostal Deus É Eterno às quintas-feiras e domingos em Sorocaba, interior de São Paulo. “Muita gente vai, é uma referência no bairro”, conta.
É comum, segundo o obreiro Alcione Cavalcante, a busca de ajuda na igreja por dependentes químicos ou seus parentes. “Estamos próximos dessas pessoas. Elas ouvem a mensagem, se convertem e passamos a apoiá-las o tempo todo junto aos familiares”, diz.
“Se é o caso, a igreja encaminha a uma clínica terapêutica, mas muitas vezes é resolvido ali na comunidade, de forma prática. Não ficamos esperando ajuda do governo”, relata. Cavalcante vai à igreja no fim de semana, com a mulher e a caçula, de 21 anos. Ainda tenta convencer os filhos mais velhos a frequentar os cultos.
- Os 5 Estados com maiores taxas de igrejas evangélicas são Espírito Santo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Rondônia e São Paulo, com mais de 60 igrejas por 100 mil habitantes.
- No Espírito Santo e no Rio, são mais de 80 templos por 100 mil: é uma igreja evangélica para cada 1.250 moradores.
- Em Rondônia, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Distrito Federal e Minas, o índice varia de 30 a 50 igrejas por 100 mil. Para Araújo, o Centro-Oeste e o Norte estão em processo acentuado de evangelização.
- No outro extremo, Estados do Nordeste, como Ceará, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte, têm menos de 20 igrejas por 100 mil moradores.
Para o estudo, as igrejas evangélicas foram divididas em quatro grupos: missionárias, pentecostais, neopentecostais, e de classificação não determinada. Araújo usa como fonte de dados o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) que, como qualquer empresa, as igrejas precisam para operar.
“Ainda que os dados sejam subestimados, pois muitos estabelecimentos religiosos operam sem CNPJ, essa base é importante porque permite acompanhar a abertura dos estabelecimentos desde os anos 20 do século passado”, diz o pesquisador. Um método computacional permitiu analisar a razão social de mais de 150 mil templos evangélicos inscritos na Receita Federal.
Categorias e exemplos de igrejas*:
- Evangélicas Missionárias: Adventista, Anglicana, Batista, Congregacional, Luterana, Metodista, Presbiteriana.
- Evangélicas Pentecostais: Assembleia de Deus, Casa da Bênção, Congregação Cristã do Brasil, Maranata, Nova Vida, Deus é Amor, Quadrangular.
- Evangélicas Neopentecostais: Bola de Neve, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Universal do Reino de Deus, Tabernáculo de Jesus, Internacional da Graça de Deus.
- Classificação não determinada: Fonte de Vida, Comunidade Cristã Paz e Vida, Casa de Oração, Apostólica, Betel, Nova Vida, Aliança com Cristo, Igreja da Bênção, Evangelho Pleno.
*A lista não esgota todas as denominações
O boom no segmento também está ligado a divergências no interior das evangélicas, que resultam na abertura de “congregações irmãs”. “O meio evangélico tem essa característica de a igreja não precisar de estrutura nacional, de não seguir uma diretriz como a Católica, que segue o Vaticano. Isso facilita a abertura de novas igrejas”, diz a pastora Romi Bencke, mestre em Ciência da Religião.
O estudo aponta que, apesar do protagonismo midiático da Igreja Universal do Reino de Deus, liderada por Edir Macedo, os neopentecostais, surgidos no fim dos anos 1970, não tiveram crescimento suficiente para ultrapassar numericamente as pentecostais e missionárias, nem mesmo aquelas de classificação não definida.
Outra das neopentecostais mais famosas é a Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago. Ex-liderança da Universal, ele fundou a própria igreja. Mas, como o Estadão mostrou, hoje a Mundial acumula dívidas e problemas judiciais, além de pede dinheiro do dízimo a fiéis para evitar a falência.
Há muitos casos, segundo Romi, em que um desentendimento entre pastores de uma igreja leva o outro a se desligar e criar sua própria comunidade, o que não é possível na católica e em algumas evangélicas tradicionais. Isso, aponta Romi, também dá brecha para um lado negativo: permite abrir igrejas de fachada.
“Sou cautelosa em falar sobre isso, porque há igrejas muito sérias, que contabilizam e registram as doações. Mas não se pode ignorar que existem as que não prestam contas e se convertem em possível fachada para lavar dinheiro”, afirma ela.
Movimento muda a demografia e causa reação na Igreja Católica
Para o sociólogo Edin Sued Abumanssur, professor de Sociologia da Religião da PUC-SP, segmentos católicos no Brasil se movem para angariar seguidores. “Quem perde fiéis é a Igreja Católica ortodoxa, que segue de perto as diretrizes do Vaticano. Já o segmento carismático católico está crescendo. Tem padres cantores e um jeito de pensar a religião parecido com o dos evangélicos pentecostais.”
Para o especialista, embora várias projeções apontem grande crescimento das evangélicas nos últimos dez anos, é preciso aguardar o Censo do IBGE sobre as religiões, que só deve sair em 2024. “Se os dados mostrarem que a taxa de crescimento de 2010 a 2020 se manteve, podemos prever que, em 2030, a população evangélica estará muito equilibrada à católica, se não for maior. Minha impressão, porém, é de que o crescimento nesta década foi menor.”
Na esteira disso, há ainda a expansão para o exterior, o que ocorre com a Universal, a Mundial do Poder de Deus, a Renascer, a Deus é Amor, entre outras. “Crescem principalmente na África e nas periferias das grandes cidades da Europa, sobretudo entre imigrantes.”
Outra tendência, segundo ele, as igrejas ocuparem mais espaços políticos, o que já ocorre desde os anos 1990. Para Abumanssur, as bancadas nos parlamentos surgiram porque os partidos políticos não dão conta de todos os interesses que permeiam a sociedade. “Os interesses dos evangélicos são tão legítimos quanto os de outras bancadas, da bola, da bala, dos índios, da indústria e do agro.”
O deputado estadual Carlos Cézar (PL), da Igreja do Evangelho Quadrangular em Sorocaba, destaca a capilaridade. “É natural que o crescimento de igrejas evangélicas tenha maior proporção em áreas periféricas. Vale lembrar que a Quadrangular atua no Brasil desde 1951, tem mais de 17 mil templos e promove projetos de evangelização e sociais em todos os Estados”, afirma ele, pastor há 23 anos.
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