domingo, 20 de agosto de 2023

“A grandeza e a miséria do homem”

| 18 Ago 2023

 

“O homem não passa de um caniço; mas é um caniço pensante.”
Blaise Pascal

 

Neste sábado, 19 de agosto, celebra-se o aniversário da morte do matemático, escritor, físico, inventor, filósofo e teólogo, Blaise Pascal. Relembrando a importância que  o autor dos Pensamentos teve no pensamento moderno, e na sequência da publicação da Carta Apostólica Sublimitas et Miseria Hominis do Papa Francisco no IV Centenário do nascimento de Blaise Pascal, publicamos agora um texto de José Maria da Silva Rosa, professor de filosofia na Universidade da Beira Interior.

É muito significativo que o Papa Francisco, jesuíta, no 4.º centenário do nascimento de Blaise Pascal (nascido a 19 de junho de 1623, em Clermont-Ferrand, França) diga que se “alegra” muito por a providência lhe ter proporcionado a ocasião de, mediante a Carta Apostólica que intitulou Grandeza e miséria do homem / Sublimitas et miseria hominis[1], poder “prestar uma especial homenagem” ao autor dos Pensamentos (Pensées) e das famosas Cartas Provinciais (Lettres Provinciales[2]).

[n.b.: A Carta Apostólica do Papa segue a numeração da edição dos Pensées coordenada por Louis Lafuma, Seuil, Paris, 1962. Pela nossa parte preferimos e seguimos aqui a tradicional numeração (no caso, n.º 277) da edição de Léon Brunschvicg, Paris, 1897, reeditada pela Garnier-Flammarion, Paris, 2015. A obra Pensamentos / Pensées é constituída, como se sabe, por fragmentos manuscritos que Blaise Pascal foi escrevendo ao longo da vida com o intuito de vir a publicar uma obra sistemática que deveria chamar-se Apologia da Religião Cristã (Apologie de la religion chrétienne). Não obstante, Pascal já não teve tempo – nem talvez vontade – de a terminar. A edição de Brunschvicg, de 1897, é considerada a primeira edição completa dos Pensées. Com efeito, após a morte de Pascal, em Paris, no dia 19 de agosto de 1662, a 1.ª edição dos Pensées de M. Pascal sur la religion et quelques autres sujets…, realizada em Paris por Guillaume Desprez, em 1670, só publicou cerca de metade dos manuscritos. E deste modo “la légende noire” / “a lenda negra” e o ‘mito jesuíta’ propagaram desde então a ideia de que os editores coevos temeram a reacção dos Jesuítas, caso tudo fosse publicado nessa altura.]

Não é nada comum os Papas motu proprio (i.e., de sua própria iniciativa pessoal) dedicarem Cartas Apostólicas e prestarem “especiais homenagens” aos filósofos fundadores da Modernidade. Mormente a um daqueles que, após ter militado entre o mais estrito racionalismo cartesiano (pelo menos até cerca de 1645), parece ter depois pendido para o polo diametralmente oposto, aderindo, de forma livre, mas muito forte e vincada[3], à doutrina jansenista presente nas reinterpretações de Santo Agostinho realizadas por Cornelius Jansenius na obra publicada em 1640, cujo título era precisamente Augustinus. Um dos espaços mais fervorosos dessas leituras e releituras do Augustinus – obra que carregava bastante nas tintas do pessimismo antropológico do último Santo Agostinho (entre 425 e 430, ano em que morreu o Bispo de Hipona), bem patente nas obras contra os pelagianos e os semipelagianos, bem assim na doutrina da predestinação – era justamente o convento cisterciense de Port-Royal-des-Champs, em Magny-les-Hameaux, cerca de 40 quilómetros a sudoeste de Paris.

Pascal e Descartes

Agostinho de Hipona: “dar razão à precedência da fé sobre a razão…, inviabilizando a querela da precedência de uma prioridade” Pintura: Santo Agostinho, Philippe de Champaigne.

 

A aproximação de Pascal ao Jansenismo foi relativamente rápida, facilitada quiçá por uma propensão natural do seu espírito para a ascese e o rigorismo moral. Já antes de 1645 se encontram nele críticas claras ao cartesianismo (n.º 78: “Descartes: inútil e incerto.” / “Descartes inutile et incertain.”) e autocríticas quanto ao modo como ele próprio lhe aderira sem reservas. O cartesianismo, aliás, no que se refere ao rigor, foi um facilitador da viragem de Pascal. Tinha muita Razão, mas faltava-lhe Coração. De tal modo que, no seu juízo retrospectivo, a vida que até então levara não passara, afinal, de simples vanité (vaidade) e puro divertissement (divertimento)[4]. Neste contexto de mudança e de revisão global da sua vida, surgem propósitos taxativos: “Escrever contra aqueles que aprofundam demasiado as ciências. Descartes.” (n.º 76: “Écrire contre ceux qui approfondissent trop les sciences. Descartes.”). O aproveitamento descontextualizado deste e de outros Pensamentos, v.g., n.º 199/277: “O coração tem razões que a razão desconhece totalmente.” (“Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point.”) levou alguns a considerá-lo, erroneamente, um defensor do fideísmo, doutrina que se pode resumir na sentença, falsamente atribuída a Tertuliano de Cartago (c. 160 – 220), “credo quia absurdum” / “creio porque é absurdo”. Pascal, porém, nunca subscreveu, e jamais poderia subscrever, tal bandeira. O nosso filósofo nunca é contra aquela Razão alargada que inclui todas razões do coração, mas apenas contra o racionalismo estreito e mirrado, contra uma racionalidade oclusa, contra os usos racionalistas da faculdade da razão. Como bem assinala a provocação agostiniana para que pensemos mais e melhor – circulação virtuosa que Pascal de algum modo faz sua – “que a fé preceda a razão é a coisa mais razoável que existe” (Epistula 120, 1, 2: “ut fides praecedat rationem, rationabiliter visum est.”). Note-se a subtileza agostiniana de dar razão à precedência da fé sobre a razão…, inviabilizando a querela da precedência de uma sobre a outra. É todo um programa quanto às relações entre a Fé e a Razão cuja explicação excede este artigo. E Agostinho acrescenta na mesma Carta: “Ama muito a inteligência!” (“Intellectum vero valde ama.”)

Não duvidamos, pois, nem por um segundo, da genuína alegria confessada pelo Papa Francisco, o mais franciscano dos jesuítas que nos tem sido dado conhecer. Na celebração do IV centenário do filósofo de Clermont-Ferrand viu ele a melhor oportunidade para, com ele, nos dizer algumas coisas essenciais tanto in recto (i.e., directamente) como in obliquo (indirectamente). Não deixa, por isso, de ser um tudo nada provocadora e mesmo ‘bondosamente maliciosa’ q.b. a nossa insistência na sua designação como ‘jesuíta’ em inesperada sintonia, afinal, com Blaise Pascal, que fora precisamente um dos mais acérrimos e certeiros críticos do chamado jésuitisme (termo cunhado em 1760 pelo jansenista Adrien Le Paige, como sinónimo de hipocrisia, duplicidade, arrière-pensée, pensamento reservado). Le jésuitisme seria, assim, aquele esprit double (espírito dúplice) que Pascal acreditava estar presente na direção espiritual excessivamente livre realizada por certos membros da Societas Jesu (os Jesuítas), disciplina de tal maneira casuística e individualizante, especialmente no contexto da direção espiritual e da confissão auricular, que chegava a encontrar soluções opostas para casos morais semelhantes, levando em conta as circunstâncias, as diferenças de intenção e a liberdade de consciência de cada penitente.

Acontecia que o rigorismo jansenista de Port-Royal, para o qual as boas intenções ou qualquer moral nelas assente jamais bastavam – pois era preciso passar ao acto, exercitar-se, persignar-se, ajoelhar-se, confessar-se e comungar frequentemente, obrigar o corpo-autómato a obedecer à força da vontade (cf. 252, 477, 480, 483, 793, …) – via nessa orientação uma perigosa abertura ao laxismo moral das boas consciências e à meritocracia pelagiana, imputação grave de que Pascal se faz porta-voz sobretudo nas célebres Lettres Provinciales / Cartas Provinciais escritas entre janeiro de 1656 e março de 1657, precisamente contre le jésuitisme.

 

Pascal: um espírito inquieto

Blaise Pascal

Pascal: um pensador verdadeiramente genial, um espírito inquieto

 

Blaise Pascal foi um pensador verdadeiramente genial, um espírito inquieto na melhor tradição do inquietum cor nostrum de Agostinho de Hipona (‘o coração inquieto’), e uma das inteligências científicas mais prodigiosas e luminosas do século XVII. Como é referido na Carta Apostólica, foi um ‘menino prodígio’ do pensamento, tendo sentido desde muito cedo intenso fascínio pelas verdades matemáticas, pela geometria, pela física, pela hidráulica, pela mecânica, assim como pela filosofia prosseguida por Descartes (“esprit de géométrie” / “espírito geométrico”, “ordre des raisons” / “ordem das razões”, que anos mais tarde “l’ordre du coeur” / a “ordem do coração” e “l’esprit de finnesse” / “espírito fino, subtil”  hão de chamar de “filosofia vã”, “filosofia orgulhosa”, etc.) domínios onde fez extraordinários avanços, descobertas e mesmo grandes invenções técnicas (uma máquina de fazer contas para ajudar um amigo do pai a melhor calcular a cobrança de impostos, a sua profissão, em 1642; ajudou a criar a primeira rede de transportes públicos de Paris, em 1661, entre outras coisas).

Não obstante ter sido atingido, com apenas 22 anos, no âmbito da sua progressiva aproximação ao Jansenismo de Port-Royal, por uma espécie de necessidade de  “mudança de vida”, de “viragem interior” no que respeitava à vacuidade existencial dos seus trabalhos científicos (um dos tópicos da sua reflexão e experiências produzira justamente o famoso Tratado sobre o Vácuo, no qual critica e se afasta da tese tradicional de que “a natureza tem horror ao vácuo” – horror vacui) e de criticar acerbamente os orgulhosos  intentos da Teologia Filosófica que queria demonstrar apenas Deus pela razão, Pascal jamais passou pelo cepticismo, contracorrente filosófica tão em voga nesse tempo. Sempre inquieto e mordido tal qual o autor das Confissões pelo desejo e amor da verdade (Confissões III, 6, 10: “Ó verdade, verdade! Quão intimamente a medula da minha alma suspirava por ti.”) foi na “noite de fogo” de 23 novembro de 1654 que uma experiência mística operou no seu coração o rasgão interior mais decisivo, abrindo-o de alto a baixo, prova que separará em si, de uma vez por todas, o antes e o depois, o homem velho e o homem novo.

Nunca saberemos em que consistiu tal experiência íntima. Pascal coerentemente nunca falou sobre ela. E nem sequer a conheceríamos como acontecimento vital não fora o facto de ele, de tal modo abrasado no fogo interior que o incendiara durante duas horas, não tivesse redigido um “Memorial”, um texto escrito apenas como admonição ad se ipsum (apenas para si próprio), pergaminho que o seu criado, já depois da sua morte, acabou por descobrir cosido no forro interior do seu casaco, no lado esquerdo, trazido sempre junto ao coração precisamente como uma “memória do essencial”, recordação de algo que “tu, Pascal, nunca deves esquecer!” Vale muito a pena traduzi-lo aqui.

 

São Clemente, papa e mártir, celebrado no dia em que Pascal sentiu e escreveu o “Fogo”

 

[MEMORIAL]


Ano da graça de 1654
Segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio.
Vigília de São Crisógono, mártir, e outros,
Desde cerca das dez horas e meia da noite até cerca de meia-noite e meia,

 

FOGO.

“DEUS de Abraão, DEUS de Isaac, DEUS de Jacob”
não dos filósofos e dos sábios.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.
DEUS de Jesus Cristo.
Deum meum et Deum vestrum.
“O teu DEUS será o meu Deus.”
Esquecimento do mundo e de tudo, excepto DEUS.
Ele não se encontra senão pelas vias ensinadas no Evangelho.
Grandeza da alma humana.
“Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te.”
Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria.
Separei-me de ti:
Dereliquerunt me fontem aquae vivae.
“Meu Deus, abandonar-me-eis?”
Que eu não fique separado dele eternamente.
“Esta é a vida eterna, que te conheçam como único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste,
Jesus Cristo.”
Jesus Cristo.
Jesus Cristo.
Dele me separei; dele fugi, reneguei-o, crucifiquei-o.
Que não fique para sempre separado dele.
Ele não se conserva senão pelas vias ensinadas no Evangelho.Renúncia total e doce.
Submissão total a Jesus Cristo e ao meu director.
Eternamente em alegria por um dia de exercício sobre a terra.
Non obliviscar sermones tuos. Ámen.

Carta Apostólica Sublimitas et Miseria Hominis

Papa Francisco. Foto © JMJ Lisboa 2023

Papa Francisco: o título da carta é elucidativo da intenção pastoral do texto. Foto © JMJ Lisboa 2023

 

O título da Carta Apostólica é muito elucidativo da intenção pastoral que animou o Papa Francisco ao escrevê-la. Com Pascal, quer recordar aos homens e às mulheres do nosso tempo a natureza da condição humana no mundo: feita de grandeza e de indigência; simultaneamente de sublimitas et miseria. Como o diz Pascal: “Que quimera é então o homem, que raridade, que monstruosidade, que caos, que sujeito de contradições, que prodígio, juiz de todas as coisas, frágil verme da terra, depositário do verdadeiro, cloaca de incerteza e de erro, glória e escória do universo? Quem desenvencilhará este emaranhado?”[5] “Glória e escória”! Eis uma antropologia paradoxal, portanto, como continua Pascal a afirmar: “O homem não é anjo nem besta, e a infelicidade faz com que aquele que quer ser anjo crie a besta.”[6] “O homem não passa de um caniço; mas é um caniço pensante (roseau pensant).” (n.º 347) Começa-se, pois, ex professo, por uma questão (a questão!) de antropologia filosófica e teológica, tornando assim nossa a interrogação que, de modo pertinaz, nos chega do mais fundo do tempo, desde os antiquíssimos mitos, depois nos poemas homéricos, passando pela trágica Esfinge emboscada na estrada de Tebas e à nossa espera, afinal, em toda a grande literatura e filosofia ocidentais: quem é o homem?

O Papa Francisco, não sem razões, prefere interrogar (e responder) com a tradição bíblica, v.g., o Salmo 8, 5, que coloca expressamente tal questão, respondendo-lhe de imediato: “Que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do homem para dele Vos ocupardes? Fizestes dele quase um ser divino, de hora e glória o coroastes.” Também o correlato coro da Antígona de Sófocles, vv. 233-234, nos fala desta imensa grandeza humana: “o homem é a realidade mais prodigiosa”, deinós > denotéron, “entre todas as coisas prodigiosas”, deiná. Mas há aqui uma diferença fundamental: no Salmo, o homem é aquilo que é, em termos de grandeza, por ter sido criado por Deus. É, pois, imago Dei, imagem de Deus, um quase-ser-divino: daqui decorre toda a sua dignidade.

Já na tragédia grega o homem aprendeu por si próprio a navegar, a cultivar a terra, a caçar, a domesticar os animais, a viver junto… Vv.: 355-357: “A fala e o alado pensamento, / as normas que regulam as cidades / sozinho aprendeu.” E ao contrário do louvor cósmico e do final feliz do salmista, o desfecho é aqui trágico. Porquê? Porque “à Morte somente / não pôde escapar.” (vv. 361-362). Já Píndaro apodara o homem de “sonho de uma sombra”[7]. São estas duas tradições antropológicas mescladas que convergem para a antropologia cindida de Blaise Pascal e que o Papa Francisco torna de algum modo sua no arranque da Carta Apostólica.

E de imediato ao correr da pena de Francisco vem uma expressão muito feliz, muito certeira e inspiradora: por todas aquelas razões, o homem é uma “abertura estupefacta à realidade”. Aristóteles diz-nos na Metafísica 982 b, 12-13, que aqueles que primeiro filosofaram (Tales de Mileto, Anaxímenes, Anaximandro, Heraclito, …), foram movidos pelo espanto, thaūma. A verdadeira Filosofia (e de algum modo certa Teologia: é muito evidente na Carta, embora não seja explicitada, a herança agostiniana do homo duplex, homem dúplice, perpassado por dois amores inconciliáveis, como reza A Cidade de Deus, herança que se rebate em Pascal) começa sempre de novo, onde quer que seja, movida pelo Espanto, pela estupefação de haver entes, coisas, seres, Natureza, Ser, alguma coisa… “Porque é que há antes o ser e não o nada?” (Cur aliquid potius extiterit quam nihil?) interrogava-se Gottfried W. Leibniz (1646-1716) sendo esta, segundo alguns, a primeiríssima questão da Filosofia, e cuja impossibilidade de resposta definitiva mantém sempre descerrada aquela “abertura estupefacta à realidade”.

Rafael Sanzio (1483-1520), A Poesia e Apolo (1509/10), Fresco, Stanza della Segnatura, Palácios Pontifícios, Vaticano: a Poesia arranca do idêntico espanto com a “abertura estupefacta à realidade”.

 

Também a vera Poesia, diga-se, arranca de idêntico espanto: “E ser possível haver ser é maior que todos os deuses”, declarava no final do poema o desassossegado Álvaro de Campos (Ah, perante esta única realidade, que é o mistério). E podemos sentar-nos junto a Alberto Caeiro a ouvir passar o vento, ler os versos de Sophia escritos com a luz grega de Cós e de Egina, percorrer Os Labirintos de Sabedoria de José Mattoso, ou escutar Fernando Alves, nos seus Sinais, ou Por onde nos levam os caminhos, na TSF, que em todos eles encontramos sempre idêntico deslumbramento com “a espantosa realidade das coisas.”

Também a inteligência do jovem Blaise Pascal, que deixou o seu pai arrepiado, um dia, ao chegar a casa, ao ver a profusão de desenhos geométricos desenhados no chão do seu quarto, perscrutava a verdade íntima de todas as coisas. Só que a alma humana, terminalmente, não sossega em teoremas ou escólios, não termina em enunciados, mas visa, quer a realidade. É próprio da razão, apesar das respostas rigorosas e parcelares que vai encontrando em determinadas ordens lógicas, não ficar alegre ou triste por causa disso. Só o coração, só o espírito inquieto e interrogante se alegra quando encontra sentido. Ou então se entedia e aborrece com a falta dele, como os reis rodeados de lacaios, para os divertirem…

Por isso Pascal é proposto pelo Papa à nossa época como modelo de investigador e de filósofo. A história da Filosofia mostra-no-la constituída por grandes ciclos interrogativos nos quais, apesar das mudanças históricas, as questões de algum modo permanecem. À medida que ia evoluindo no seu pensamento e as questões mais decisivas se lhe iam alargando sem resposta, poderia ter acontecido a Pascal contrair gosto pela irresolução, pelo cepticismo tardo-renascentista do Quod nihil scitur (de Ribeiro Sanches, Lyon, 1581).

Também esta nossa época é muito perpassada pelas tentações de um cepticismo multiforme (“cinismo irónico”, declarou Francisco no discurso no Mosteiro dos Jerónimos). Vivemos num momento crepuscular; de algum modo, somos todos herdeiros de Nietzsche, do pensiero delole, como assinala positivamente Gianni Vattimo, ou de grande cansaço e de agonia do Éros, como já menos positivamente constata Byung-Chul Han. Grande parte do que hoje se publica em Filosofia é autorreferencial, sobretudo naquelas correntes neopositivistas e analíticas onde só há linguagem e nada mais que linguagem (mas como esta é importante!), no horizonte da qual as grandes questões históricas pelo sentido, as narrativas, as perguntas pelo homem, pelo seu destino e o seu desejo de felicidade foram todas trituradas e coadas pelo filtro único da análise lógica da linguagem. Na filosofia analítica, o organon tornou-se cânone à maneira de um leito de Procusto.

Decartes

“Bem Descartes teria querido, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus. Mas não pôde deixar de o pôr a dar um piparote para pôr o mundo em movimento.” Frans Halls (1582/1583-1666), Retrato de René Descartes, Museu do Louvre, Paris,  Foto © André Hatala / Wikimedia Commons

 

Seja como for, vivemos numa época atordoada, embotada pelo consumismo de todo o tipo (o capitalismo tardio visa transformar tudo em capital…) e esmagada com o aceleramento, pelo estilhaçamento, onde já só nas margens parece persistir ainda a possibilidade de uma paragem e de uma “abertura estupefacta à realidade”.

Blaise Pascal, porém, é-nos proposto pelo Papa Franscico acima de tudo, et pour cause, como um homem de fé. Mas de uma fé operante, jamais uma fé fideísta! De facto, tal como o seu grande mestre Agostinho nos relata nas Confissões que, em determinado momento (aquando da morte de um amigo íntimo), deixou de ter problemas e “passou a ser para si mesmo uma grande questão” (magna quaestio mihi factus sum) também Pascal, progressivamente, mas muito especialmente a partir da noite de “Fogo” de segunda-feira, 23 de novembro de 1654, compreendeu que a única realidade a que vale mesmo a pena, incomparavelmente, devotarmos toda a nossa vida é a Deus, a Jesus Cristo, ao destino último do homem e ao serviço dos pobres. E tal como Agostinho compreendeu e defendeu nos comentários ao Evangelho de São João que a única coisa que as Escrituras preceituam é o amor-caritas, assim também Pascal afirma ipsis verbis: “O único objecto da Escritura é a caridade.” / “L’unique objet de l’Écriture est la charité.” (n.º 670).

São verdadeiramente tocantes, num espírito superior como o de Pascal, estas palavras: “Se os médicos falam verdade (e Deus permita que eu recupere desta doença), estou decidido para o resto da minha vida a não ter outro emprego nem outra ocupação além do serviço aos pobres.” [8] Para este ‘rigor da caridade’, toda a Filosofia, de modo especial da cartesiana, mas outrossim toda a sapiência e erudição dos “filósofos e dos sábios”, bem como todas as Ciências, podem não ter nenhuma valia (sendo muitas vezes até um empecilho). Depende do modo como delas nos apropriamos. Para Pascal, se nos ficamos pelo “Deus” a que se chega pela Filosofia, como fez Descartes et alii, restamos apenas com um ‘ídolo do pensamento’ (pois até mesmo a “verdade pode ser idolatrada”, nota muito significativamente o Papa Francisco, pensando talvez na perícope da mulher adúltera e nas formas múltiplas de farisaísmo e de clericalismo). Donde a radical abertura de Pascal à Graça e ao único Mediador, Jesus Cristo.

É para esta “abertura [ainda mais] estupefacta à realidade” que, sem mérito nosso, nos foi dada em Jesus Cristo que tanto Pascal, no seu tempo, como o Papa Francisco, hoje, querem chamar a atenção e estimular quer os cristãos quer todos os homens e mulheres de boa vontade. A ideia-mestra é a de que a autognose que todas as sabedorias e filosofias aconselharam e buscaram só se encontra cumprida em Jesus de Nazaré. Só nos conhecemos verdadeiramente à luz de Cristo. Por isso também o desejo de felicidade, de bem-estar, de salus / saúde, de progresso e de qualidade de vida que tantas e tantas vezes, no pensamento ocidental, foi considerado como a razão e o motivo da demanda pelo conhecimento científico, encontra em Pascal uma resposta radicalmente cristocêntrica. Ora no esprit de géométrie e no mecanicismo que dele decorre não há qualquer lugar nem para Cristo nem para a caritas. Razão por que, no fim, Pascal declara: “Não posso perdoar a Descartes: bem ele teria querido, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus. Mas não pôde deixar de o pôr a dar um piparote para pôr o mundo em movimento. Mas depois disso nada mais há a fazer com Deus.” (n.º 77[9]).

Disposição para a graça, para o salto da fé

Juízo final. Michelangelo

Michelangelo (1475–1564), O Juízo Final, Capela Sistina: Pascal defende que só resta a aposta na existência de Deus (Verdade, Bem, Felicidade eterna…).

 

Ainda duas breves notas finais, porque de algum modo a Carta Apostólica consegue fazer eco de praticamente todo o pensamento de Pascal. Mas a nossa razão tem de parar algures. É ela, porém, que reconhece a necessidade desta paragem; não é a imposição extrínseca de algum padre-mestre.

Uma palavra apenas sobre o célebre argumento da aposta (argument du pari) que, muito compreensivelmente, não consta na Sublimitas et miseria hominis, embora seja um dos argumentos pascalianos que muito tem dado que pensar a certos espíritos interesseiros, cínicos e calculistas… A edição de Léon Brunschvicg designa toda a III.ª Secção, que compreende os n.ºs 184 a 241, com o título “A necessidade da aposta” / “La nécessité du pari”. Mas é sobretudo o longo ‘pensamento’ n.º 233 que aqui mais nos interessa. “Examinemos, pois, este ponto e digamos: ‘Deus existe ou não existe’.” A razão não pode determinar e resolver por si o assunto. Há uma distância infinita que ela não pode percorrer.

Então, que aposta devemos nós fazer: que Deus existe? Ou que Deus não existe? Um céptico diria: não se sabe nem uma coisa nem outra. Prefiro não escolher nada. E manter a liberdade para criticar aqueles que escolhem: “o melhor é não apostar.” (“le juste est de ne point parier.”) Pascal atalha de imediato esta saída de pista: “Sim, mas é preciso apostar. Isto não é voluntário. Já estais embarcados.” (“Oui; mais il faut parier. Cela n’est pas volontaire: vous êtes embarqué.”) Então se é inelutável ter de apostar, defende Pascal, a única aposta que resta (a um sério jogador de apostas) é a aposta na existência de Deus (Verdade, Bem, Felicidade eterna…). Porque apostando pouco (o que está em jogo da parte do jogador é a sua razão limitada, a sua vontade finita, o seu conhecimento, a sua felicidade) – ou mesmo quase nada, porque é sempre algo finito em comparação com o infinito – podes vir a ganhar tudo, se Deus existir realmente. E se apostares que Ele existe, e ele não existir, então também não perdeste nada que não viesses a perder depois. Todavia, se apostas que Deus não existe, e ele existir realmente, então fizeste a aposta mais errada de todas: perdeste tudo!, quando podias ganhar tudo. Qualquer jogador que pense exclusivamente nas probabilidades em jogo, no valor das apostas e no seu interesse próprio jamais hesitará em apostar na existência de Deus. “Consideremos os dois casos: se ganhais, ganhais tudo. Se perdeis, não perdeis nada. Apostai, pois, sem hesitar, em que ele existe.” / “Estimons ces deux cas: si vous gagnez, vous gagnez tout; si vous perdez, vous ne perdez rien. Gagez donc qu’il est, sans hésiter.”

Mas verdadeiramente que valor dava Pascal, especialista no cálculo das probabilidades, a este ‘argumento suplementar’ para levar um racionalista a acreditar? Pouco. É apenas uma razão de merceeiro, apenas um raciocínio lançado aos interesseiros e aos jogadores de casino. Ser levado a acreditar na existência de Deus apenas por esta contabilidade comercial tipo “deve & haver” revelaria tão-só um egoísmo calculista, ou seja, as piores disposições morais. No contexto coevo, porém, o argumento era muito importante: Pascal sabia que era inútil forçar alguém a crer. Tal não era nem é possível nem desejável. Obrigar alguém a acreditar só pode criar hipócritas. Mas Pascal acreditava sinceramente na possibilidade de persuadir alguém até um certo ponto do caminho e de, aí, desobstruí-lo e dispô-lo para a graça, para o salto da fé. O argumento da aposta pode levar um racionalista interesseiro até certo ponto, porque “àqueles que a não têm [fé], só a podemos dar pelo raciocínio, esperando que Deus lha conceda pelo sentimento do coração.” (cf. n.º 281)

Papa Francisco durante a Via Sacra na JMJ Lisboa 2023. Foto JMJ Lisboa 2023.

O Papa Francisco na Via-Sacra durante a JMJ: na Igreja cabem “todos, todos, todos” Foto © JMJ Lisboa 2023.

 

A outra palavra final é apenas para comentar e esclarecer o que parece ser, para nós, uma das afirmações mais actualizantes e mais decisivas do Papa Francisco, em todo o documento. Apesar de reconhecer naturalmente que “não soam como verdadeiras” certas posições de Pascal sobre a predestinação “tiradas da teologia do último período de Santo Agostinho” (asserção importante no que respeita ao estudo dos últimos escritos do bispo de Hipona contra os pelagianos), o autor das Lettres Provinciales é desculpado porque, com recta intenção, acreditava estar a atacar o pelagianismo presente no tal jésuitisme dos seguidores de Luís de Molina.

Acontece que o Papa Francisco, sem querer reabrir a vexata quaestio em torno do modo como a Graça e a Natureza concorrem para o agir humano em concreto, afirma inequivocamente: “há que reconhecer que o ‘neopelagianismo’, ao pretender que ‘tudo depende do esforço humano canalizado através de normas e estruturas eclesiais’, ‘nos intoxica com a presunção de uma salvação ganha com as nossas forças’.”[10] Na Exortação Gaudete et Exultate / Alegrai-vos e Exultai é bem claro o teor do neopelagianismo que ele tem mira: é o daqueles que manietam o Evangelho e sufocam o Espírito, presumindo-se já salvos apenas por se acobertaram mimeticamente sob regras que têm por indiscutíveis e por se alaparem à sombra das estruturas clericais. Seria caso para lembrar como o professor Costa Freitas muitas vezes terminava as suas aulas na Universidade Católica: São Nietzsche ora pro nobis!

Blaise Pascal morreu em Paris, no dia 19 de agosto de 1662. Segundo uma antiga e justa tradição, este terá sido o seu vere dies natalis / o seu verdadeiro dia de natal. Com a Sublimitas et miseria hominis, o Papa Francisco quis aproveitar a oportunidade para, entre outras coisas, com este pensador de escol, dar uma lição ao jésuitisme de todos os tempos, o dos presumidos salvos, perfecti, presunção que continua a esclerosar por dentro a Igreja. Embora nesta caibam “todos, todos todos”, Francisco sabe muito bem do que fala e para quem fala: “Aquele mundanismo espiritual que se insinua em nós e do qual nasce o clericalismo. Clericalismo não só dos padres: os leigos clericalizados são piores do que os padres. É esse clericalismo que nos arruína.” (Homilia no Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, 4.ª-feira, 2 de agosto de 2023). O problema é que “há [sempre] bastante luz para quem nada mais deseja senão ver, e bastante escuridão para quem possui a disposição oposta.”[11]

 

[1] Carta Apostólica Sublimitas et miseria hominis do Papa Francisco no IV Centenário do nascimento de Blaise Pascal, Roma – São João de Latrão, 19 de junho de 2023. O título absolutamente pascaliano inspira-se em inúmeros Pensamentos, por exemplo, o n.º 397 (ed. Brunschvicg): “A grande grandeza do homem reside no facto de ele saber que é miserável. Uma árvore não sabe que é miserável.” Ou o n.º 347: “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante.”
[2] Título completo: Lettres écrites par Louis de Montalte à un provincial de ses amis et aux RR. PP. Jésuites sur le sujet de la morale et de la politique de ces Pères (Cartas escritas por Luís de Montalto a um provincial de amigos seus e aos Reverendíssimos Padres Jesuítas acerca da moral e da política destes Padres).
[3] A Sublimitas et miseria hominis faz mesmo questão de citar a 17.ª Carta [Provincial] ao Reverendo Padre Annat, Jesuíta, de 23 de Janeiro de 1657 (cf. Pascal, Les Provinciales, Mozambook, 2001, p. 232), na qual Pascal declara que ‘não é de Port-Royal’: “Ainsi, je n’aurai pas grand peine à m’en défendre, puisque je n’ai qu’à vous dire que je n’en suis pas, et à vous renvoyer à mes Lettres, où j’ai dit que je suis seul, et en propres termes, que je ne suis point de Port-Royal, comme j’ai fait dans la 16. qui a précédé votre livre.” / “Assim, não terei grande dificuldade em defender-me, pois basta-me dizer-vos que não o sou e remeter-vos para as minhas Cartas, onde disse que estou só e, por palavras minhas, que não sou de Port-Royal, como fiz nas 16. que precedeu o vosso livro.”
[4] Cf. ed. Brunschvicg, n.ºs 11, 61, 67, 74, 109, 110, 131, 134, 137, 139, 141, 143, 150, 152, 153, 161, 162, 163, 164, 166, 167, 168, 170, 171, 174, 190, 194, 294, 324, 328, 390, 430, 435, 461, 462, 553, 628, 930, 957, 962, 960 e 970.
[5] N.º 434: “Quelle chimère est-ce donc que l’homme? Quelle nouveauté, quel monstre, quel chaos, quel sujet de contradiction, quel prodige! Juge de toutes choses, imbécile ver de terre, dépositaire du vrai, cloaque d’incertitude et d’erreur: gloire et rebut de l’univers. Qui démêlera cet embrouillement?”
[6] “L’homme n’est ni ange ni bête, et le malheur veut que qui veut faire l’ange fait la bête.” (n.º 358; cf. n.º 140).
[7] Píndaro, Oitava Pítica, v. 95. “Efémeros! Ser alguém? Ser ninguém? Sonho de uma sombra é o homem.” Esta ideia antiga, também bíblica, traveja grande parte da antropologia ocidental, possuído dentro o D. Quijote de La Mancha, todo o teatro shakespeariano (v.g., Hamlet), e depois a dramaturgia contemporânea de S. Beckett, de B. Brecht, e os romances e contos de J. Joyce, Proust, R. Musil, etc. O Papa Francisco, professor que foi de Literatura, sabe muito bem que, com Blaise Pascal, está a tocar uma das cordas mais sensíveis de toda a cultura ocidental.
[8] Gilbert Périer, Vida de Pascal, in Michel Le Guern (ed.), Obras completas, I, Paris, 1998, p. 91 (apud Carta Apostólica Sublimitas et miseria).
[9] “Je ne puis pardonner à Descartes: il aurait bien voulu, dans toute sa philosophie, pouvoir se passer de Dieu; mais il n’a pu s’empêcher de lui faire donner une chiquenaude pour mettre le monde en mouvement; après cela, il n’a plus que faire de Dieu.”
[10] A Carta Apostólica Sublimitas et miseria hominis remete para os n.ºs 57-59 da Exortação Apostólica Gaudete et Exultate, de 19 de Março de 2018, sobre os novos pelagianos.
[11] N.º 430: “Il y a assez de lumière pour ceux qui ne désirent que de voir et assez d’obscurité pour ceux qui ont une disposition contraire.”

Covilhã, 18 de Agosto de 2023

José Maria da Silva Rosa é professor da UBI – Universidade da Beira Interior

Fonte:  https://setemargens.com/a-grandeza-e-a-miseria-do-homem/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

Nenhum comentário:

Postar um comentário