Monja Coen*
Zazen não é processo de santidade, de desligamento com a realidade da vida diária. É oportunidade de observar em profundidade a realidade
Há gosto para tudo. Há também desgosto por tudo. E entre o gosto e o desgosto, há, do verbo haver, de ter, existir.
Há quem goste de muita agitação, música, festas, seguidores. Há quem goste do silêncio, da quietude, sem procurar fama ou lucro.
Há gosto para ficar simplesmente sentada, olhando a parede branca, em silêncio, respirando. Centenas de milhares de conexões neurais se estabelecendo, acendendo e apagando. Quem vê de fora pode não entender. Pessoas estranhas... Seriam doentes? Estariam perturbadas?
Há muito tempo, um importante oficial do governo foi visitar um templo Zen, na China ou no Japão. O abade conduzia o oficial pelos largos corredores e grandes salões. Havia mais de mil monges residindo no local. Quando passaram pela sala de meditação, havia mais de 500 monásticos sentados de face para a parede.
Plataformas elevadas e um grande silêncio. Surpreso e maravilhado, o oficial perguntou ao abade se todos eles estavam em estados superiores de consciência, emitindo bem aventurança a todos os seres. O abade sorriu: "Um pensa na comida, outro, no sono. Um deles se lembra de uma desavença e outro quer passear".
"Mas, para que serve, então, ficar assim sentados?"
"Para entender a mente. Sentar apenas por sentar."
Zazen não é processo de santidade, de desligamento com a realidade da vida diária. É oportunidade de observar em profundidade a realidade.
Há um texto antigo que relata três tipos de personalidades resultantes do treinamento, da prática de Zazen: a pessoa do nível mais elevado não se interessa em saber como Budas surgem no mundo presente, nem se preocupa com a grande verdade que nem Budas podem transmitir. Essa pessoa não quer doutrinar outras. Nunca vê o mundo do ponto de vista dualista. Apenas come quando com fome e dorme quando cansado.
O segundo tipo abandona tudo, corta todas as amarras mundanas. Durante todos os dias e todas as horas, está sempre praticando e meditando sobre a verdade. Muito além das considerações sobre morte-vida, ir-vir-ficar. Sem dualidades, seu pensamento é iluminado. Sabedoria sempre brilhando.
O terceiro aspecto é do Zazen comum, que considera tudo sobre vários ângulos antes de se libertar do carma bom ou perverso. A mente se expressa naturalmente, sem desilusões, sem perturbações. Pensamentos mundanos podem surgir, mas a mente permanece imperturbável.
Cada aspecto tem sua característica, mas não há superior ou inferior.
Zazen, sentar-se em Zen, em silêncio, de face a uma parede é superior a construir templos e imagens sagradas. Apenas sentar-se e se libertar do nascer morrer é acessar a própria natureza desperta. Naturalmente pode ir e vir, ficar ou sair, sentar ou deitar. Capaz de ver, ouvir, compreender e conhecer as manifestações naturais do ser verdadeiro. Sem argumentar sobre conhecimento ou ignorância. O texto, de Mestre Keizan Jokin Daiosho Zenji, cofundador da Ordem Soto Shu, do século 14, termina assim: "Apenas faça Zazen com todo seu ser. Nunca se esqueça. Nunca o perca". Assim como foi escrito no passado, repito aqui a você. Sente-se, silencie, vá além do eu e do outro.
*Cláudia Dias Baptista de Souza, conhecida como Coen Rōshi ou Monja Coen, é uma monja zen budista brasileira de ascendência portuguesa, e missionária oficial da tradição Soto Shu com sede no Japão. Escritora. Conferencista.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/monja-coen/noticia/2023/08/sente-se-silencie-va-alem-do-eu-e-do-outro-cll462e2r001o0154o25mn2u8.html
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