quinta-feira, 3 de agosto de 2023

É por ali. Mas e se não for?

 Por Bruno Nogueira

 Juan Cavia

SOMOS FEITOS das escolhas que fazemos. Todos os dias damos por nós presos a um jogo que a força do hábito faz com que quase nos esqueçamos que o estamos a jogar, mas que nem por isso deixa de somar consequências: de entre tudo o que temos pela frente, que escolhas vamos nós fazer? Mal abrimos os olhos pela manhã, começamos logo a tentar acertar; e à hora a que nos vamos deitar, é bem possível que já tenhamos tomado mais decisões do que aquelas que conseguimos contar. Viver é por si só uma escolha, e é essa (a maior de todas) que traz tantas outras atrás dela. Há tantos caminhos possíveis ao longo da vida que é fácil errar em muitos.

Há outra maneira de ver as coisas que é bem mais optimista e dá descanso à cabeça: tomámos sempre as melhores decisões que conseguimos, tendo em consideração todas as hipóteses que tínhamos em mãos. Mas eis que surge um bicho de muitas pernas e braços, que se planta no interior das cabeças inquietas, para fazer a fatídica pergunta: “E se?” Se não soubermos domesticar a pergunta, o vírus do “e se?” alastra-se pelo corpo todo, deixa-nos o peito aos encontrões e afoga-nos em dúvidas. Pontos de interrogação que ganham tamanho e ficam o dobro de nós, até sermos só sombra. O vírus do “e se?” manifesta-se depois de já termos tomado uma decisão. Semeia-nos na cabeça pequenos excertos do que teria sido aquele fragmento da nossa história se tivéssemos escolhido outro caminho em vez daquele pelo qual optámos. Que outra versão de nós é que seríamos se naquele dia tivéssemos escolhido o “sim” em vez do “não”. O “e se?” é uma âncora que nos puxa com força para o fundo, e que faz turvo o caminho que dávamos como certo. Ficamos tão presos ao que não escolhemos que o sítio onde estamos quase parece não ser feito do que é, mas sim de tudo o que podia ter sido.

Essa pergunta que nos encurta o prazer do que acabámos de escolher às vezes aparece nas situações mais banais: “e se tivesse aceitado ir sair com os amigos que me convidaram?”, “e se tivesse escolhido outro destino de férias?”; ou em mergulhos mais fundos: “E se eu tivesse arriscado um outro amor em vez deste?” O “e se?” pode ser um formigueiro na cabeça, ou uma febre morna até ao dia em que morremos. Tem vários tamanhos, e pode consumir-nos a alma até sermos só hipóteses que não chegaram a acontecer. Fazer as pazes com isso é trabalho de uma vida inteira, mas nem assim é certo que tenha o efeito tranquilizante tão desejado.

Por cada decisão que tomamos há pelo menos mais uma que estamos a rejeitar. Estamos a dar um passo numa direcção que pode nem sempre ser a melhor, mas que foi a que mais nos seduziu de entre todas. Escolher é saber dizer que não a muitas histórias, é arriscar uma porta num corredor onde estão duas ou mais. Mas há uma armadilha que se esconde em cada escolha: só depois de a validarmos é que podemos começar a descobrir se acertámos ou não. É um mergulho para o escuro, onde não há água ou nada que se pareça à vista para amortecer a queda. Antes do salto apenas podemos avaliar se o queremos dar, mas nunca o que nos espera no embate. Uma má escolha pode ser um peso que quase nos deixa sem respirar, porque tem o requinte de malvadez de ter estado sempre ali, mesmo ao lado de uma escolha boa. Estavam todas à distância de um braço, mas o instinto fez com que nos debruçássemos para espreitar uma delas, aquela que julgávamos ser a que nos cumpria mais. E nesse espaço de nada, o “e se?” espreguiça-se para se mostrar de dentes à mostra e olhos semicerrados.

No meio de tantas estradas que ficaram à espera de serem percorridas por nós, resta-nos o descanso de sabermos que aquelas por onde andámos hão-de ter somado sempre qualquer coisa. Mesmo que nem sempre tenham sido as melhores, foi o facto de terem sido acidentadas que nos ajudou a apurar mais as escolhas que vieram a seguir. Afiaram a nossa intuição. Escolher mal às vezes pode acrescentar mais do que escolher bem, embora só se consiga ver isso depois do tempo fazer o seu trabalho.

O “e se” pode engolir-nos, porque não nos traz nada que não seja o que já não há maneira de ser. Projecta-nos para um futuro paralelo onde nos podemos ver, mas onde não podemos ser. A felicidade esconde-se naquilo que fazemos com as escolhas que fizemos. Sabê-las imperfeitas é meio caminho andado para adormecer a pergunta que está sempre a querer espreitar. Às vezes tenho inveja dos que são imunes a este vírus, como se a vida deles fosse quase só feita de certezas. Mas depois penso: e se eu precisar dessa dúvida para ter a certeza? 

*Humorista

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

Fonte:  https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/e-por-ali-mas-e-se-nao-for?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoManha+-+Alive&utm_medium=email&sfmc_segment=Alive&sfmc_term=Alive##utm##

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