Se a escrita existe há milhares de anos, a forma de escrever se transformou ao longo do tempo. Basta conferir como é a letra, por exemplo, de um idoso de 80 anos, de um adulto de 40 ou de um adolescente de 15. Apesar de haver muitas semelhanças, é possível identificar uma gradual simplificação na caligrafia. A principal mudança tem sido a perda da força do ensino da letra cursiva, que já chega a ser de uso opcional em algumas escolas.

Das primeiras pinturas rupestres à digitação em computadores e celulares, muita água – e tinta – rolou. Mais ou menos em 4.000 a.C., com a formação de sociedades agrícolas e propriedades privadas na Mesopotâmia, surgem os primeiros registros de uma forma de caligrafia, gravada em argila, com dados econômicos. Aos poucos, diante da necessidade de ter marcas que expressassem ideias, sentimentos e situações, nasceram representações gráficas mais abstratas, como os hieróglifos. A capacidade de gravar mensagens foi uma revolução.

– Se eu vivesse em 9.000 a.C. e quisesse mandar uma mensagem para a minha mãe, teria de fazer um relato oral curto, para que o mensageiro memorizasse e repassasse ao chegar. Se ele esquecesse, aquele relato se perderia. Na escrita, a mensagem estava fixada e conferia uma veracidade maior – pontua Eduardo Arriada, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) que estuda a História da Educação.

Da demanda por encontrar uma maneira de não precisar memorizar tantos caracteres diferentes – um para cada intenção – veio o alfabeto, que tem 26 letras, que, combinadas, formam palavras com significados distintos. A escrita era rebuscada e com os caracteres ligados uns aos outros, o que dava agilidade e evitava borrões nos manuscritos.

– Era mais simples fazer a curva com o fluxo do que uma linha reta quebrada, tanto com a pena de metal quanto com a de ave. Quando levanto a pena, busco tinta e volto ao papel, há um ponto de borrão. Por isso, as letras são contínuas, fluidas. Pegar a pena, molhar, dar uma batida fora, passar o mata-borrão, tudo leva tempo, e, no decorrer da história, cada vez eu preciso escrever mais e mais rápido – salienta Sandro Fetter, professor de Design da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que estuda tipografia e educação.

Escrever, nesses moldes, era trabalhoso e logo motivou a criação de funções como a de escribas e copistas, que compreendiam ou reproduziam esses sinais. Até a invenção de Johannes Gutenberg, que, no século 15, criou a tipografia, possibilitando que textos fossem copiados por meio de uma máquina, sem a necessidade de novos manuscritos, esses profissionais eram “superstars”, conforme Fetter.

– Os mestres calígrafos vestiam aquelas perucas, as roupas mais caras, eram da alta sociedade. Havia competições de quem fazia a letra mais linda e elaborada. Há livros da Idade Média manuscritos com ouro, com prata, com lindíssimos modelos caligráficos. Uma Bíblia manuscrita custava o equivalente a uma fazenda. O cara que era rico tinha um porta-bíblias com a Bíblia aberta numa das páginas mais bonitas na sua sala de estar ou de jantar, e ele próprio, provavelmente, não sabia ler. Aquilo era simbologia, poder – resume o docente da UFRGS. 

Com a tipografia, os superstars perderam força e uma novidade surgiu: a letra de forma, ou bastão.

– Antes de surgir a tipografia, as caligrafias eram maravilhosas, demandavam anos de treinamento. Era uma arte caligráfica, as letras todas elaboradas, trabalhadas. Quando chega a imprensa de Gutenberg, ele faz letras em caixinhas, que padronizaram o escrito – relata o professor da UFPel.

A letra de forma, contudo, era utilizada somente em materiais impressos – até o final do século 19, os manuscritos seguiram sendo feitos com escrita cursiva.

A história do ensino da escrita

No Brasil, o processo de alfabetização existe desde a colonização portuguesa. Ao longo de 400 anos, na falta do papel, que era caro, foram usados instrumentos como bancos de areia, trapos, algodões e pedras de ardósia. No Centro de Documento do Centro de Estudos e Investigações em História da Educação da UFPel, coordenado por Arriada, em Pelotas, estão expostas diferentes ferramentas usadas no decorrer dos séculos para o letramento dos alunos, como a própria pedra de ardósia.

Em Porto Alegre, a Faculdade de Educação da UFRGS conta com um acervo de mais de 300 cartilhas usadas para alfabetizar estudantes nos séculos 19 e 20. Na época, o processo de ensino da leitura e o da escrita eram diferentes e envolviam, muitas vezes, livros distintos.

Até a virada do século 20, a caligrafia dominante nas escolas era a inglesa, com suas letras inclinadas para a direita, rebuscadas e cheias de floreios. A partir daí, ocorre um higienismo na escrita. Trazido da Alemanha, esse movimento alertava para supostos riscos à saúde das crianças com aquele tipo de escrita e recomendava um formato verticalizado. Isso também facilitou para os canhotos, que, até então, frequentemente eram forçados a escrever com a mão oposta.

Jonathan Heckler / Agencia RBS
Os pesquisadores Sandro Fetter e Luciana Piccoli, na UFRGS

– A caligrafia vai se modificando também com relação aos nossos objetivos de ensino. Vai se passando a um entendimento de que, mais do que bela e rebuscada, a escrita precisa poder ser traçada de forma rápida e legível – pontua a professora Carolina Monteiro, da UFRGS, que estuda História da Educação.

Para além do texto cursivo, também nessa época o designer gráfico britânico Edward Johnston, considerado um dos pais da caligrafia moderna, inaugurou um tipo de fonte bastão sem serifa, famoso pelos letreiros do metrô de Londres até a década de 1980.

– Se eu vivesse em 9.000 a.C. e quisesse mandar uma mensagem para a minha mãe, teria de fazer um relato oral curto, para que o mensageiro memorizasse e repassasse ao chegar. Se ele esquecesse, aquele relato se perderia. Na escrita, a mensagem estava fixada e conferia uma veracidade maior.

EDUARDO ARRIADA

Professor da Ufpel

A forma como uma criança é ensinada a escrever varia em cada nação, de acordo com Fetter. Na França, por exemplo, onde há uma forte tradição na caligrafia, as cartilhas apresentam não apenas pautas horizontais, como também verticais, para o ensino da letra cursiva em tamanhos específicos. Já na Inglaterra, também um berço da escrita mais tradicional, hoje há letras ensinadas nas escolas que são uma mistura de forma com cursiva – a ideia é criar um modelo progressivo, que seja mais facilmente compreendido pela criança como sendo o mesmo caractere que ela conheceu em formato bastão. Na Holanda, cerca de 15 modelos circulam pelas instituições de ensino. Nos EUA e na Alemanha, são cerca de cinco. Na Finlândia, hoje as escolas só ensinam a letra de imprensa. A fonte, contudo, foi elaborada pensando na forma manual de escrever, de forma a, no futuro, quando a criança automatizar o ato de redigir, acabar “emendando” alguns caracteres naturalmente.

Em comum em quase todos os países está a dúvida sobre manter a obrigatoriedade ou não do ensino da letra cursiva, que, para nativos digitais, pode ser pouco conhecida e quase nada útil. Em 2011, mais de 40 Estados dos EUA tornaram essa parte do currículo opcional, tendência que foi, em parte, revertida por um movimento conhecido como cursive first (“primeiro a letra cursiva”, em inglês), segundo Fetter, que exaltava a importância de ensinar o estilo para, por exemplo, desenvolver a chamada motricidade fina.

Para Carolina, é natural haver um certo saudosismo, mas mudanças são inevitáveis. 

– Talvez, num futuro próximo, até os cadernos sejam substituídos, e não tem muito como brigar com isso. Mas muitas coisas se mantêm. Há anos existe uma discussão sobre se o livro vai se perder, mas o papel tem permanecido como forma mais perene de guardar registros. Na escola, muito da estrutura do século 19 se mantém – analisa Carolina.

Atualmente, Fetter integra uma equipe mundial que realiza uma pesquisa que tem o apoio da Google. O objetivo é apresentar, na plataforma Primarium, as formas das letras e os modelos de ensino da escrita em 45 a 50 países. Em sua contribuição, o docente da UFRGS desenvolveu uma fonte chamada “letra brasileira”, gratuita para download. A ideia foi colaborar com as professoras no processo de alfabetização:

– Hoje em dia, as professoras produzem o seu próprio material, em vez de usar livros ou cartilhas prontas, porque as crianças chegam em estados de prontidão alfabética diferentes entre si, e é preciso customizar o material para cada aluno. Por isso, é importante existir uma fonte gratuita para elas.

O modelo conta com tipos de letra cursiva mais tradicionais, mas, também, um estilo de transição, nomeado de “pré-cursivo”.

A alfabetização no Brasil

Diferentemente de outros países, no Brasil, o início da alfabetização acontece em folhas sem pautas. 

– A gente começa no bloco, porque entendemos que a criança precisa aprender a se organizar no espaço da folha. Então, começamos sem a linha e, depois, vamos para uma pauta maior, até reduzir para a pauta usual de caderno – descreve a professora Luciana Piccoli, do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS.

Talvez, num futuro próximo, até os cadernos sejam substituídos, e não tem muito como brigar com isso. Mas muitas coisas se mantêm.

CAROLINA MONTEIRO

Professora da UFRGS, pesquisadora da História da Educação

Via de regra, a alfabetização começa com o ensino da letra bastão e, mais ou menos na metade do 2º ano do Ensino Fundamental, passa para a cursiva. O tempo dedicado ao estudo da caligrafia, propriamente, foi reduzido – o foco é aprender o significado de cada letra e como formar palavras e frases com elas, de uma forma legível, mas, não necessariamente, bonita.

– Muitas escolas deixam em aberto o uso da letra cursiva por entenderem que a criança deve escolher aquela que traça com mais facilidade – afirma Carolina.

Apesar da popularização do uso de recursos digitais nas escolas, a alfabetização ainda ocorre principalmente com lápis e caneta. Como na vida adulta o domínio é dos computadores e celulares, a fase escolar com frequência acaba sendo o único espaço de uso da letra cursiva na vida de uma pessoa.

– O trabalho com a escrita manuscrita ainda é muito forte nas escolas, mas, na graduação, vários estudantes já anotam, por exemplo, no celular. Vemos algumas técnicas que existem, como o lettering, mas é quase um exercício de caligrafia – observa a educadora da UFRGS.

Grasiela Kieling Bublitz, professora do curso de Letras da Universidade do Vale do Taquari (Univates) e pesquisadora da área de alfabetização, destaca que ainda há muito interesse das crianças na letra cursiva, por verem pessoas mais velhas escrevendo daquele jeito.

Deve-se dedicar um tempo ao ensino da letra cursiva, porque a motricidade fina precisa estar desenvolvida.

GRASIELA KIELING BUBLITZ

Professora do curso de Letras da Universidade do Vale do Taquari (Univates)

– Sem dúvida, deve-se dedicar um tempo ao ensino da letra cursiva, porque a motricidade fina precisa estar desenvolvida, para que a criança pegue o lápis direitinho e consiga escrever. A vontade de usar letra cursiva faz parte, muitas vezes, do interesse da criança pelo ambiente escolar – avalia Grasiela.

No entendimento da educadora da Univates, não se pode “rumar contra a maré” em relação ao uso de telas por crianças, mas não se pode esquecer do estímulo à escrita à mão, que desenvolve algumas capacidades cerebrais. Por isso, Grasiela ressalta a importância de escola e famílias oferecerem lápis, canetas e outros instrumentos desde cedo para os pequenos.

Na Univates, um projeto chamado Alfabeletrando atua com crianças que tiveram perdas na alfabetização durante a pandemia. Sua percepção é de que existe “um abismo” de diferença entre os alunos que têm acesso a recursos tecnológicos em casa e os que não têm, nesse processo de aprendizagem.

– Tem muita coisa legal, tecnologicamente falando, que pode beneficiar a leitura e a escrita e desenvolver habilidades importantes. O que não se pode conceber é que as telas tomem a maior parte do tempo dessas crianças, mas o professor e os pais, se possível, devem possibilitar esses meios, sem deixar que o uso seja excessivo – diz Grasiela. 

Jonathan Heckler / Agencia RBS
Sala de aula no Colégio Dom Bosco: todos os tipos de letras são apresentados, e seu uso é flexibilizado

Como é nas escolas do RS

Em muitas escolas, ainda é tradição que os alunos adotem, a partir do 2º ano do Ensino Fundamental – quando é considerado que a motricidade fina das crianças está mais desenvolvida –, a letra cursiva em suas atividades. É o caso, por exemplo, do Colégio Anchieta, em Porto Alegre, onde os pequenos estudam o estilo no primeiro semestre. No segundo, ocorre a Festa da Letra Cursiva, na qual se fantasiam e participam de bate-papo com professores. No Colégio Madre Bárbara, em Lajeado, no Vale do Taquari, trabalha-se com cadernos de caligrafia.

Outras instituições, porém, têm adaptado suas práticas, apresentando todos os tipos de letra, mas flexibilizando seu uso. Essa foi a decisão do Colégio Dom Bosco. Em visita da reportagem de GZH à escola, a professora Patrícia Gallego mostrava para os pequenos ilustrações que contavam sobre a história da escrita, com homens da caverna fazendo pinturas rupestres. Depois, entregou à turma carvões e argila para eles desenharem. A atividade consistia em mostrar o desenho para os colegas, que procuravam adivinhar o que estava ilustrado ali.

– O que o Benjamin quis comunicar ali, pessoal? – perguntava Patrícia.

– Ele tá fazendo carinho num animal! – arriscava um aluno.

– Ele quer matar um animal! – tentava outro.

Jonathan Heckler / Agencia RBS
A alfabetizadora Patrícia Gallego diante dos alunos

Benjamin, por fim, disse, meio envergonhado, que só tinha desenhado uma pessoa. A professora aproveitava o engano para resumir o ensinamento:

– Vocês viram? Por isso, surgiu a escrita. Porque, com os desenhos, nem sempre as pessoas entendiam o que se estava tentando comunicar – observou a docente.

Conforme Patrícia, o resgate histórico do tempo da escrita foi motivado por uma necessidade de mostrar às crianças a evolução das letras e a importância de escrever.

– Vamos mostrando os registros, até chegar no alfabeto, para despertar essa vontade de querer escrever, conhecer as letras, os sons das letras, para poder juntar e formar as palavras e, aos poucos, transmitir a mensagem que eles querem para os colegas – relata a alfabetizadora.

Sobre a flexibilização do uso da letra cursiva, a docente ressalta que o processo de alfabetização se inicia com a letra bastão e, depois, são mostrados todos os outros tipos de letra.

– A gente tem a bastão, tem a minúscula, tem a forma da letra cursiva também, que era muito usada antigamente, mas que hoje acaba sendo opcional. A gente mostra para eles. As meninas têm um interesse maior em fazer a letra desenhada, né? E a gente mostra para elas. Mas a maioria acaba optando pela script, mesmo – analisa Patrícia, que trabalha há 18 anos ensinando a ler e escrever.

Com o tempo, a educadora tem percebido que há menos alunos interessados em aprender a escrever com letra cursiva. Eles se interessam em ler e querem escrever, mas, muitas vezes, relacionam a escrita com ferramentas digitais, como o WhatsApp. No entanto, como costumam jogar muito em aparelhos eletrônicos, têm uma necessidade latente de aprender a ler, para compreender aquelas mensagens.

 Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2023/08/caligrafia-com-os-dias-contados-entenda-por-que-a-letra-cursiva-perde-forca-nas-escolas-e-no-cotidiano-da-sociedade-clkwwb7a300al0154f66xq8an.html?utm_source=salesforce&utm_medium=email&utm_campaign=GZH_Newsletter_BoletimGZH&utm_content=Boletim%20GZH%208.8.23