Há poucas décadas Portugal mudou a sua natureza jurídico-religiosa de estado católico-romano para laico, quer por que os tempos mudaram, quer por que a democracia o exige, mas também devido à adesão à União Europeia (antiga CEE), que comporta dentro de si diferentes correntes religiosas cristãs ou mesmo outras religiões, abraâmicas ou não, e ainda devido às migrações e à globalização. Assim, ser católico já não define a condição de ser português.
O problema é que as mentalidades não mudam por decreto nem por textos constitucionais, e em regra demoram gerações a reformular-se. Ainda há uns anos se ouvia na Assembleia da República uma deputada de uma maioria parlamentar de direita afirmar que o estado português era católico. Claro que se retratou logo a seguir e classificou a afirmação como lapso, mas como já dizia Jesus: “do que há em abundância no coração, disso fala a boca” (Mateus 12:34).
O Censo de 2021 reza que 80% da população portuguesa se afirma católica. Mas são os próprios teólogos católicos que admitem que tal manifestação não passa de uma afirmação de natureza identitária ou cultural e não real, uma vez que a esmagadora maioria não é praticante. As missas apresentam cada vez menos assistência, pelo que se trata duma afirmação de fé por exclusão de partes, talvez por que os inquiridos ainda não estão preparados para se assumirem na mais recente categoria de “crentes sem religião”.
Se perguntarmos à maioria dos denominados católicos há quanto tempo não comungam teremos uma ideia mais aproximada da realidade do catolicismo português. Em 2001 só metade dos ditos praticantes eram comungantes.
Mas se os inquirirmos sobre quando foi a última vez que estiveram no confessionário o número ainda reduz mais. E se formos saber se concordam com a moral sexual daquela que dizem ser a sua igreja, ou sobre todos os dogmas, ficaremos nos mínimos. Se ainda assim lhes pedirmos que enumerem quantos são e quais os sacramentos da fé católica, no final ficaremos com a real dimensão do ser católico em Portugal.
De facto, o catolicismo português é sobretudo herdado e face aos fenómenos da desidentificação e da desinstitucionalização religiosas presentes na Europa, como bem revela a francesa Danièle Hervieu-Léger, especialista em sociologia das religiões, resta-nos apenas uma afirmação vazia que nem eles sabem por que razão ainda a invocam.
A autora publicou, em parceria com Jean-Louis Schlegel o seu último livro intitulado Vers l’implosion? Entretiens sur le présent et avenir du catholicisme (“Rumo à implosão? Conversas sobre o presente e o futuro do catolicismo”, em tradução livre, Seuil, 2022), onde aborda em especial a crise do catolicismo francês abalado pelos escândalos.
Ser católico não praticante – tal como sucede em qualquer outra confissão religiosa – não tem comparação, por exemplo, com a condição de ser adepto dum clube de futebol e não ser associado. É muito pior. Ao menos estes vibram com o seu clube de coração, apoiam os seus atletas, acompanham a evolução da sua equipa nas competições, assistem aos jogos – no estádio ou em casa – e torcem pelo seu emblema.
Para muitos denominados católicos não-praticantes o templo é apenas o local para realizar a sua cerimónia de casamento, o batizado dos filhos e o funeral dos pais, mas as motivações são pouco católicas, por assim dizer, como satisfazer o desejo impositivo dos pais ou registar as fotografias do acontecimento.
Já o caso dos funerais é mais específico, talvez por que no fundo são crentes e querem dar um enterro cristão aos entes queridos, embora não se identifiquem com a ortopraxia da confissão religiosa de que se afirmam fiéis nos Censos.
A questão da identidade religiosa é muito séria por que mexe com a história pessoal, a família, a religião e a transcendência.
Afirmar-se católico, num país demograficamente envelhecido e de maioria tradicional dessa confissão religiosa, é uma forma de não parecer diferente aos olhos de terceiros. Ainda que já não pareça tão mal alguém se afirmar como protestante, agnóstico ou mesmo ateu, como sucedia no passado, ainda assim é mais confortável para a pessoa refugiar-se no mainstream quando inquirida.
De todo o modo e de acordo com os especialistas, a tendência geral do país parece ser que no futuro próximo a percentagem de católicos desça e suba a dos “crentes sem religião”, dos evangélicos e de outras minorias.
*Doutorado em Psicologia, é especialista em Ética e em Ciência das Religiões; professor catedrático (ISP Atlântida, Luanda), diretor do Mestrado em Ciência das Religiões (Universidade Lusófona); coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e do NEPRE-Núcleo de Estudos em Psicologia da Religião e Espiritualidade; director das revistas científicas Ad Aeternum (Portugal) e Olhar Científico (Angola); investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Universidade de Lisboa) e do LUSOGLOBE (Lusófona Centre on Global Challenges). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Poeta e ficcionista.
Fonte: https://visao.pt/opiniao/vestigios-de-azul/2023-08-30-os-catolicos-que-nao-somos/
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