Por Marcel Hartmann
Filósofo político estará em Porto Alegre na próxima semana para uma palestra sobre a instabilidade das democracias contemporâneas
Professor de Filosofia Política na Universidade Harvard, o norte-americano Michael Sandel, 70 anos, é um dos poucos filósofos pop do mundo. Autor dos best-sellers Justiça – O que É Fazer a Coisa Certa e A Tirania do Mérito, Sandel presidiu a Comissão de Bioética da Casa Branca e venceu o Prêmio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais. Seus livros foram traduzidos para 27 idiomas. Nesta conversa com GZH por videoconferência, realizada antes de sua palestra no Fronteiras do Pensamento, marcada para a próxima quarta-feira (9/8), Sandel critica a meritocracia e diz que elites são arrogantes por não reconhecerem que, muitas vezes, seu sucesso deriva do esforço de suas famílias. Ao assumirem conquistas dos outros como suas, têm menos empatia com os desfavorecidos.
O senhor pode esboçar as principais ideias que pretende apresentar na conferência da próxima quarta-feira?
Falarei sobre temas do meu livro O Descontentamento da Democracia
e como democracias ao redor do mundo estão profundamente polarizadas.
Pretendo fazer isso não apenas no palco, discursando para a plateia, mas
convidando o público a se juntar a mim em uma discussão sobre algumas
das grandes questões éticas e cívicas que enfrentamos hoje nas
sociedades democráticas.
Brasil e Estados Unidos são países muito polarizados. Por quê?
Democracias ao redor do mundo experimentam a polarização hoje.
As razões variam de um país para outro, mas há motivos comuns. Nas
últimas décadas, a divisão entre os vencedores e os chamados perdedores
tem se aprofundado, envenenado nossa política e nos dividido. Isso se
deve em parte ao aprofundamento das desigualdades
nas últimas quatro décadas. Também tem a ver com as mudanças de atitude
em relação ao sucesso que acompanha o aumento da desigualdade. Aqueles
que chegaram ao topo passaram a acreditar que seu sucesso é mérito
exclusivamente deles e que, portanto, merecem as recompensas que o
mercado lhes concede. Por implicação, aqueles que lutam e ficam para
trás devem merecer o seu destino. Assim, em nossas sociedades, não temos
apenas desigualdades de renda, mas também desigualdades de estima
social, honra, reconhecimento e respeito. Nos EUA, o que possibilitou a
eleição de Donald Trump foi sua habilidade em apelar para o sentimento
de ressentimento que muitos trabalhadores têm contra as elites. Muitos
trabalhadores sentem-se menosprezados. É essa política de queixa,
ressentimento e humilhação que tem alimentado figuras políticas
autoritárias e populistas de direita.
A base de seu argumento é o conceito de meritocracia. o que há de errado com a meritocracia?
Antes de descrever o problema, quero enfatizar o apelo da
meritocracia. A meritocracia significa que pessoas bem qualificadas
ocupam papéis sociais importantes. É algo positivo: se preciso de uma
cirurgia, quero que um médico bem qualificado a realize. Isso é mérito, e
é algo bom. Se a alternativa à meritocracia é atribuir empregos e
oportunidades com base no acaso do nascimento, como nas aristocracias
feudais, a meritocracia é uma alternativa libertadora. Se a alternativa à
meritocracia é conceder empregos com base no nepotismo ou corrupção,
então a meritocracia parece ser uma alternativa igualitária. Portanto,
esses são os argumentos em defesa da meritocracia que precisam ser
reconhecidos. Mas meritocracia não se trata apenas de colocar pessoas
bem qualificadas em papéis sociais importantes. O princípio fundamental
da meritocracia leva vencedores a acreditarem que seu sucesso é mérito
exclusivamente seu. Isso faz com que esqueçam a sorte e a boa fortuna
que os ajudaram e também o quanto são devedores daqueles que os ajudaram
a tornar suas conquistas possíveis. Todos somos devedores por qualquer
conquista que tenhamos alcançado, seja à família, aos professores, à
vizinhança, ao nosso país e aos tempos em que vivemos. Mas, na medida em
que acreditamos e somos incentivados a acreditar que somos
autossuficientes e vencedores por nós mesmos, tendemos a esquecer a
sorte e a dívida, somos tentados a adotar uma espécie de arrogância
meritocrática, um orgulho falso.
Essa é a ideia da arrogância meritocrática?
Sim, isso é o que eu quero dizer com a arrogância e a falta de
humildade que frequentemente elites desenvolvem e que é reforçada pela
meritocracia. Ao longo da História, elites sempre tiveram uma tendência à
arrogância. Mas, em sociedades onde as pessoas se tornam líderes
simplesmente por nascerem em uma família nobre em vez de nascerem
camponeses, as elites não podiam dizer a si mesmas que chegaram ao topo
devido aos seus próprios esforços. Já em sociedades meritocráticas como a
nossa, ensinamos que o sucesso depende dos esforços e talentos de cada
indivíduo. É aí que se vê a tendência das elites em direção à arrogância
e à crença de que são as responsáveis pelo seu sucesso.
Em sociedades meritocráticas como a nossa, ensinamos que o sucesso depende dos esforços e talentos de cada indivíduo. É aí que se vê a tendência das elites em direção à arrogância.
O
senhor acabou de mencionar que a meritocracia leva ao ressentimento
contra as elites e que isso pode contribuir para o surgimento de regimes
populistas, como o de Trump ou Bolsonaro. Por que isso acontece?
Tanto Trump quanto Bolsonaro angariaram votos de alguns
eleitores abastados, tradicionalmente conservadores, que defendem
políticas conservadoras ou de centro-direita, buscando menos
regulamentação governamental, menos redistribuição e impostos mais
baixos. Essa é a base tradicional dos partidos de centro-direita nos
Estados Unidos, como o Partido Republicano. No entanto, Trump e
Bolsonaro também conquistaram o apoio de eleitores de baixa renda e da
classe trabalhadora. Isso requer uma explicação especial, porque
tradicionalmente esses eleitores votavam em partidos mais à esquerda do
espectro político. Portanto, a pergunta que precisa ser respondida é:
como Trump e Bolsonaro conseguiram conquistar um apoio tão substancial
entre os eleitores de baixa renda e da classe trabalhadora? A resposta
para esse enigma está relacionada à raiva, ao ressentimento, ao
sentimento de queixa e até mesmo à humilhação que muitos eleitores,
deixados para trás pela globalização, sentem, especialmente em relação
às elites.
Por sentirem que não eram bons o suficiente para ter sucesso?
Sim, essa é a conexão com o lado sombrio da meritocracia e a
falta de humildade entre as elites. E isso foi piorado pelo
ressentimento contra as elites. Durante quatro décadas, a desigualdade
cresceu na era da globalização neoliberal. E os partidos de
centro-esquerda falharam em muitos casos, certamente nos Estados Unidos,
em abordar essas desigualdades.
Então o senhor vê uma conexão entre a globalização e os aspectos negativos da meritocracia.
Sim, especialmente a versão impulsionada pela financeirização
da globalização. Em vez de abordar as fontes estruturais das
desigualdades crescentes, os partidos de centro-esquerda responderam à
desigualdade com a promessa de mobilidade individual ascendente por meio
do Ensino Superior. Eles ofereceram o seguinte slogan: se você deseja
vencer na economia global, vá para a universidade, o que você ganha
dependerá do que você aprendeu. Essa foi a mensagem não apenas de
políticos de centro-direita como Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos
anos 1980, mas também de seus sucessores nos partidos de
centro-esquerda. Eles não questionaram a premissa fundamental de que,
agora, os mecanismos de mercado são os principais instrumentos para
alcançar o bem público. Eles ofereceram mobilidade individual em vez de
abordarem a desigualdade estrutural. O que essa abordagem ignorou foi
que a maioria das pessoas em nossas sociedades não possui diploma
universitário, nem mesmo em países ricos. É uma loucura criar uma
economia que estabelece como condição necessária para o trabalho digno
um diploma que a maioria das pessoas não possui. Ainda houve um erro
adicional na resposta dos partidos de centro-esquerda: não perceber o
insulto implícito em seus conselhos. O insulto era o seguinte: se a
solução para a desigualdade é você melhorar individualmente após ir à
universidade, então, se você enfrenta dificuldades na nova economia, a
falha deve ser culpa sua.
Como Trump e Bolsonaro conquistaram apoio tão substancial entre eleitores de baixa renda? A resposta está relacionada à raiva e ao ressentimento, especialmente em relação às elites.
O filósofo Byung-Chul Han critica o autoempreendedorismo e o foco na autoprodutividade atuais. há ressonância com suas ideias?
Acredito que concepções do eu e, em particular, a crença de que
somos autossuficientes e autogerados está no cerne da ideologia
meritocrática que critico. Como mencionei anteriormente, o lado sombrio
da meritocracia surge das atitudes em relação ao sucesso que ela
incentiva. Falamos sobre a falta de humildade que ela promove entre os
bem-sucedidos. É uma certa concepção de liberdade humana que diz: “Sou
verdadeiramente livre se for autossuficiente e autogerado. E se todos na
sociedade têm uma chance igual de serem autossuficientes e autogerados,
então as recompensas que o mercado me concede são resultado do que eu
mereço moralmente”. Essas duas ideias se unem. Sou crítico de ambas as
suposições. Desafio a ideia de que a liberdade consiste em ser
autossuficiente e autogerado e também a ideia de que os bem-sucedidos
merecem tudo o que o mercado lhes concede.
Nossa sociedade tende a associar o conceito de meritocracia à ideia de sucesso. O que o sucesso significa para você?
Sucesso em termos de riqueza, honra e prestígio deve surgir de
um sentimento de satisfação de que cultivei meus dons, desenvolvi meus
talentos e os apliquei em prol do bem comum. O sucesso está conectado,
em última instância, a contribuir para uma certa concepção de boa vida.
Mas o que o sucesso significa para muitos em nossa sociedade? Talvez se
possa dizer que a compreensão dominante de sucesso em nossa sociedade é
chegar ao topo em termos de renda, riqueza e prestígio, e fazê-lo de uma
forma que me permita dizer que eu mereço. Essa é uma noção equivocada.
Para desafiar essa compreensão dominante de sucesso, temos que
questionar uma suposição muito difundida: de que o dinheiro que as
pessoas ganham é a medida de sua contribuição para a economia ou o bem
comum. Facilmente caímos nessa suposição, mas ela é equivocada pelos
seguintes motivos: se fosse verdade, teríamos de concluir que a
contribuição do gestor de fundos de hedge é mil vezes mais valiosa do
que a contribuição de um enfermeiro, um professor ou um médico. Mas
mesmo os libertários mais apaixonados da economia de livre mercado
teriam dificuldade em defender essa ideia. E acredito que a maioria das
pessoas rejeitaria essa ideia também. Isso significa que nós, como
cidadãos democráticos, precisamos recuperar a questão de o que é
valioso, de o que conta como uma contribuição e de o que é o bem comum.
Essas são questões para os cidadãos debaterem, não porque concordaremos
todos com a resposta, mas porque a democracia só florescerá quando
estivermos debatendo questões fundamentais sobre valores, justiça e bem
comum.
Não
devo motivar meus filhos a trabalharem duro em suas vidas? Como posso
ensiná-los a valorizar seus esforços e o trabalho árduo, sem cair no
lado sombrio da meritocracia?
É uma pergunta importante. Devemos encorajar nossos filhos a
trabalharem duro e a cultivarem seus dons, reconhecendo ao mesmo tempo
que os talentos que os capacitam a progredir não são completamente
mérito deles. Uma mensagem é a importância de trabalhar duro. Outra é
reconhecer os elementos de sorte, fortuna e contingência que determinam
quais contribuições somos capazes de dar. Essa segunda lição pode
cultivar em crianças uma humildade saudável em relação a seus dons e
conquistas. Precisamos manter essas duas lições em equilíbrio. Sem um
senso de humildade em relação aos nossos talentos, dons e conquistas, é
muito difícil se importar com aqueles menos afortunados do que nós. Se
eu acredito que meu sucesso é mérito exclusivamente meu, então as
dificuldades dos outros são simplesmente falhas deles. É sobre ter
orgulho e permanecer humilde.
Isso
é válido do ponto de vista educacional. Mas que tipo de políticas
públicas o senhor acredita que podem ajudar a lidar com os efeitos
negativos da meritocracia?
Precisamos apoiar instituições que promovam a mistura de
classes, como espaços públicos que reúnam pessoas de diferentes origens.
Lembro-me quando eu era jovem, sempre fui fã de beisebol e gostava de
ver meu time favorito. Isso foi na metade da década de 1960. Ir a um
estádio de beisebol era uma experiência de mistura de classes. É
verdade que alguns assentos eram mais caros, mas o ingresso era
acessível. Metaforicamente, quando chovia, todos se molhavam. Agora, 60
anos depois, a experiência de ir a um evento mudou. Não é mais acessível
para aqueles de renda mais baixa. Frequentemente, há espaços VIP, ou,
como vocês chamam no Brasil, o “camarote”. Já não é mais verdade que,
quando chove, todos se molham. Destruímos o aspecto de mistura de
classes de ir a um estádio esportivo. Isso ocorre em escolas, museus,
transporte público e educação. É um símbolo da transformação da
sociedade civil e da vida social nos últimas 50 anos.
É por isso que o senhor diz que o mercado agora regula nossos debates morais e públicos?
Essa é uma das formas como acontece. Porque se temos cada vez
menos instituições que promovem a mistura de classes, então há menos
ocasiões para o debate público. É cada vez mais difícil nos vermos como
cidadãos que compartilham uma fé comum envolvidos em um projeto comum.
Temos agora plataformas de debate público cada vez mais dominadas por
gigantes empresas de redes sociais que não tomam responsabilidade
perante ninguém, nem mesmo perante a democracia. A segunda forma de
considerar como enfrentar a polarização é criando novos espaços para o
debate público, porque confiamos em plataformas que nos isolam em bolhas
com mentalidades semelhantes. O efeito das redes sociais não foi nos
unir, mas nos separar. E a razão é o modelo de negócios dessas empresas,
que exige que elas capturem nossa atenção e a mantenham o maior tempo
possível. É uma nova arena pública, uma arena perversa. Em vez de nos
ensinar a virtude de ouvir aqueles com os quais discordamos, ela nos
ensina que eles são nossos inimigos.
O
senhor fundamenta suas suposições na ética das virtudes de Aristóteles.
Que tipo de virtude acha que as pessoas devem considerar ao enfrentar
nossas discussões?
Há virtudes cívicas e virtudes públicas. Há uma conexão entre a
humildade como virtude pessoal e a humildade como virtude cívica. E
isso remonta a Aristóteles: a ideia de que a reflexão ética e a
deliberação política dependem de reconhecer que não podemos excluir
questões de virtude sobre o que é uma boa vida quando debatemos o que
torna uma sociedade justa. Alguns filósofos e pensadores políticos dizem
que vivemos em sociedades pluralistas, e que isso significa que parte
de nosso pluralismo é o fato de discordarmos sobre o significado de o
que é bom. Portanto, não deveríamos basear princípios de justiça em uma
concepção particular de virtude; deveríamos perguntar aos cidadãos sobre
suas convicções morais fora, no momento em que entram na esfera
pública, porque trazer argumentos morais e noções contestáveis de o que é
uma boa vida para o debate político pode levar a discussões
conflituosas sobre questões éticas. Esse é o argumento contra trazer as
questões de virtude para a esfera pública. Mas aqui está minha resposta e
por que acho que Aristóteles estava certo: não é possível manter noções
de o que é uma boa vida fora da esfera pública porque algumas das
questões mais fundamentais a serem decididas exigem debater questões de
valores. O que conta como uma contribuição verdadeiramente valiosa para o
bem comum? Isso depende de debater o que é o bem comum. Que formas de
trabalho e contribuição são verdadeiramente valiosas? Se fugirmos desses
debates, então deixamos a avaliação para o mercado. Isso nos leva de
volta à virtude cívica que precisamos agora. A humildade é uma virtude
cívica que está em falta, especialmente nas elites financeiras. Há outra
virtude cívica que precisamos cultivar, e essa é a virtude de ouvir as
opiniões daqueles com quem discordamos. As redes sociais não cultivam a
arte de ouvir.
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