domingo, 27 de agosto de 2023

Isto não é um beijo

 Por Bárbara Wong *

 



Jennifer Hermoso podia estar a celebrar e a gozar o título de campeã do Mundial de Futebol Feminino, feliz, sem grandes preocupações senão as de receber felicitações e palavras de incentivo. Em vez disso, por causa de um homem que lhe segurou na cabeça para lhe aplicar um beijo na boca, a atleta de 33 anos está envolvida em algo que não desejava.

Certamente, já viu e reviu as imagens que se tornaram virais do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) a agarrá-la, beijá-la e a dar-lhe umas pancadas nos rins. Certamente, já se perguntou, vezes sem conta, porque não reagiu, porque não fez nada. No balneário, com as companheiras, durante os festejos, com um sorriso comprometido, disse que não gostou, mas o que podia ter feito?

Quando vi as imagens, perguntei-me se Luis Rubiales faria o mesmo a Iker Casillas, ex-capitão da equipa espanhola, ou a outro jogador masculino. No cúmulo da alegria e do entusiasmo que será ganhar um campeonato, se o presidente da RFEF se poria aos beijos a todos os jogadores. Talvez sim, beijos nas faces, mas não na boca, certo? Então, porquê este comportamento e por que não admitir que é um erro, que é um abuso de poder? Porque está entranhado na sua masculinidade.

Rubiales que, como tantos dirigentes desportivos, não tem um currículo imaculado, diz que não esperava reacções negativas ao seu gesto — teve outro, junto da rainha Letizia e da princesa Sofia, em que agarrou os genitais de maneira grosseira e, por esse, pede desculpa sem nenhum "mas...". E, depois de, primeiramente, ter desvalorizado o beijo, acabou por pedir desculpas, sem pedi-las, ao dizer que foi consentido e que presta aquelas declarações "porque as pessoas se sentiram magoadas com isso". Ou seja, não há remorsos ou o reconhecimento de que não há consentimento quando nos agarram a cabeça com as duas mãos, sem nos dar tempo de reagirmos ou de respirarmos.

O dirigente foi, desde logo, condenado por inúmeros elementos do ainda Governo de Pedro Sanchez. O próprio se pronunciou sobre o tema, na terça-feira, mostrando a porta de saída ao presidente da federação: "As desculpas que o senhor Rubiales apresentou são insuficientes. Penso até que são inapropriadas e, por isso, tem de ir mais longe."

"A forma como as autoridades espanholas responderam ao assédio sexual flagrante, que vitimou a estrela de futebol Jennifer Hermoso, é uma lição importante para as empresas e organizações em geral, em todo o lado: Tomar medidas contra o infractor mesmo quando a vítima não se queixa", escreve Bobby Ghosh, colunista da Bloomberg. Ou seja, Jennifer Hermoso teve o apoio que precisava para se distanciar da federação e do seu presidente — afinal, disse o El País, a jogadora negou que tenha feito as declarações que foram divulgadas pela própria RFEF e que diziam que o gesto tinha sido consentido. Durante a semana, a campeã de futebol veio exigir medidas exemplares à própria federação.

Esta sexta-feira, tudo caiu em saco roto. Rubiales não se demitiu e o beijo consentido foi um "beijinho", igual ao que poderia ter dado a uma das suas três filhas, declarou. Foi consentido, insiste, depois de Hermoso ter dito que não houve consentimento. Primeiro foi um beijo consentido, depois um "beijinho", para a próxima não aconteceu ou será como o cachimbo de Magritte — isto não é um beijo.

As reacções não se fizeram esperar e, mais uma vez, Rubiales ficou sozinho, bem se pode queixar do "falso feminismo" — a culpa é sempre das feministas, nunca do sistema patriarcal em que vivemos —, mas ao lado da jogadora não estão só algumas das suas companheiras, estão também nomes como Iker Casillas, David de Gea ou Borja Iglesias. Aparentemente, o assunto não está ainda arrumado, para mal da atleta.

"A jogadora viu-se envolvida em algo que não desejava e está numa posição fragilizada, quando devia estar a desfrutar uma grande conquista e a preparar o futuro", declara a portuguesa Leila Marques Mota, antiga atleta paralímpica na modalidade de natação nos Jogos de Atlanta1996, Sydney2000, Atenas2004 e Pequim2008 e actual vice-presidente do Comité Paralímpico de Portugal e coordenadora do grupo de trabalho para a igualdade de género no desporto.

No domingo em que a selecção feminina espanhola ganhava à inglesa, terminei de ler Nós contra os Outros, de Fredrik Backman. Trata-se da história de uma pequena cidade sueca, num lugar esquecido, que vive para o hóquei. Após a violação da jovem Maya pelo capitão da equipa, a cidade divide-se. A culpa, já se sabe, é da vítima. Maya continua a ir à escola, para ser maltratada pelos colegas, uma vez que a cidade acabou por perder o campeonato. Depois de ser descoberta a homossexualidade de um dos jogadores, também ele tem de enfrentar as condenações e os preconceitos dos colegas. Maya diz-lhe que os dois não são vítimas, mas sobreviventes.

No caso de Jennifer Hermoso, com aquele beijo, Luis Rubiales roubou-lhe a alegria e a paz. Imerecidamente. Por isso, a Jennifer Hermoso desejo que não se sinta uma vítima, nem uma sobrevivente, mas que continue a ter o apoio necessário para se sentir, sempre, uma campeã do mundo.

Boa semana!

*Editora

Fonte:  https://www.publico.pt/2023/08/27/newsletter/impar

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