domingo, 20 de agosto de 2023

Virtudes do piloto

 Por Leandro Karnal*

Cúpula do plenário da Câmara dos Deputados, no do poder político do País, em Brasília, em foto de 2001.
 Cúpula do plenário da Câmara dos Deputados, no do poder político do País, em Brasília, em foto de 2001. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Na cultura do Brasil, o exercício do poder implica mais adesão pessoal do que habilidade técnica

Mais valem cem gramas de fidelidade do que uma tonelada de competência.” É um ditado popular. Traduz uma convicção política enraizada na cultura do Brasil. O exercício do poder implica mais adesão pessoal do que habilidade técnica. Quero alguém que não me traia; preciso retribuir favores políticos; necessito solidificar alianças no Legislativo: esse tripé se impõe a tudo.

Sim, um ministério ou uma secretaria são cargos de “confiança”. São demissíveis ad nutum, expressão sofisticada para dizer revogáveis por uma das partes apenas. Não são estáveis na função. A demissibilidade é imediata, pois, como se diz, é cargo de confiança. Abalada esta última, extingue-se a posição para o ser indicado. Sim, um cargo político implica alianças que escapam, inclusive, à decisão do titular executivo eleito. Um presidente/governador/prefeito tem certas autonomias, contudo elas são limitadas pela realidade do jogo de poder. Ninguém é absoluto no seu cargo, nem o papa, nem o rei da Inglaterra, nem, menos ainda, o presidente do Brasil.

Para subir ao céu do poder, o foguete deve coletar combustível na Terra, e a conta chega antes do lançamento. Na filosofia da internet, “foguete não tem ré”. Na realidade política brasileira, foguete tem ré, zigue-zague, voo circular e até explosão no ar (impeachment).

Não sou ingênuo. Sei dos meandros da política pública. Também devo ser justo: trabalhei anos em escolas particulares, sou consciente de como o mercado tem sutilezas de fidelidade que superam a competência visível. Fui testemunha de professores péssimos, que atuaram durante anos apenas por serem muito ligados à direção. Um “puxa-saco” possui valor enorme em certas dinâmicas de comando. A macrofísica e a microfísica do poder se encontram na fragilidade dos egos de cúpulas decisórias. Diretores e diretoras fracos buscam instalar aduladores ou, mais frequentemente, olhos e ouvidos da direção no corpo dos professores. Sei de tudo isso. Não sou um romântico.

Minha questão para mercado e política pública: será que entre os correligionários e apoiadores existirá alguém minimamente formado, competente e capaz de dirigir uma reunião produtiva? Não seria possível escolher (do mesmo partido, da mesma igreja, da mesma orientação sexual, do mesmo time) alguém que não babasse verde? Não existiria uma única pessoa que, sendo confiável e dedicada a você ou a seu partido/empresa, além disso, fosse um bom profissional?

Minha questão é estratégica. Sim, um soldado confiável é fundamental na batalha. Porém, ele também deve saber empunhar armas. Se eu indico alguém apenas pelo fato de ser fiel e esqueço-me da atividade-fim, acabo sendo punido pela escolha política. Também não posso selecionar um inimigo, por mais competente que seja. Fidelidade é uma virtude, entretanto faz parte de um quadro mais amplo. Indicar gente fraca profissionalmente, ainda que capaz de morrer pela diretoria, torna o indicado um problema. Fazendo analogia histórica: mesmo um camicase, o guerreiro suicida japonês, deve, além da disposição de dar sua vida pelo imperador, acertar o navio norte-americano no Pacífico. Separar as duas funções torna o soldado inútil.

Eu indico um ministro, porque me ajudou na campanha e organizou arrecadações. Boa medida? Sim, se, além disso, tiver um mínimo de habilidade para o cargo. Caso contrário, posso encontrar outra função-prêmio para ele. Não seja ingrato; não seja insano. Não traia aliados, não destrua sua carreira política. Meu conselho não é maquiavélico. O autor florentino dizia que a palavra empenhada deve ser quebrada se contraria o plano do príncipe.

A Igreja Católica sempre foi muito boa em “promover para remover”. Aprendeu com o Império Romano, da qual surgiu. O cardeal começou a incomodar? O bispo está causando dificuldades? Virará vigário apostólico para a causa da unidade religiosa em Berna. Ninguém pode causar danos em Berna. Pouca gente sabe que é a capital da Suíça, uma cidade de inúmeras comissões.

Basta alçar o aliado ao posto do Conselho Executivo da Melhoria Lusófona. No entanto, para cargos sob a mira da imprensa... cuidado! Para funções que afetem de verdade o jogo, olho agudo! Fidelidade ajuda, mas se você planeja continuar existindo depois do seu mandato... pense bem. No final da vida, minha mãe tinha muitos médicos. Um era de um azedume indescritível (grosseiro, inclusive). Causou irritação em toda a família. O cavalo diplomado era competente e acertava mais do que os de fino trato. Mantivemo-lo até o fim. Não preciso de sorriso de quem cuida de problemas graves em uma UTI.

Sim, seria ideal que um profissional, por ter passado anos em formação, tivesse tido uma aula de boas maneiras. Porém, prefiro um médico tosco certeiro a um refinado cavalheiro incompetente. O ideal seriam as duas virtudes. Se prefere pensar de forma ainda mais dramática, imagine quais habilidades essenciais deve possuir o piloto que o leva, sobre o Oceano Atlântico, em um imenso avião. Tenho esperança de alguma fidelidade e de muita competência.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/virtudes-do-piloto/ 20/08/2023

Nenhum comentário:

Postar um comentário