Por Fabrício Carpinejar*
Gilmar Fraga / Agencia RBS
O carro de som representa a evolução brega da serenata na janela. É um misto de comício e karaokê
Não tem sentido atravessar uma vida inteira sem um rotundo vexame no seu aniversário.
Em algum ano de sua trajetória, você deve merecer o constrangimento da telemensagem. Do carro de som parado na frente de sua casa, chamando seu nome incansavelmente, convocando-o para ir até a calçada. Não tem como se esconder debaixo da cama. O animador ficará gritando enquanto você não surgir na porta. É um terrorismo da alegria, com um discurso carregado de adjetivos pomposos: “esposo exemplar”, “esposa parceira”, “pai dedicado”, “mãe guerreira”, “filho obediente”, “filha modelar”.
O serviço, que fez sucesso no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, continua em atividade.
Se você ainda não recebeu a assombração bem-humorada e saltitante, é como vacina: prepare-se, terá a sua dose de fiasco.
O carro de som representa a evolução brega da serenata na janela. É um misto de comício e karaokê.
As músicas retrô são sempre as piores (denunciando a sua velhice), a poluição sonora é certa, os vizinhos vão aparecer para bisbilhotar, qualquer morador saberá que está mudando de idade, qualquer pedestre passando por ali na hora partilhará a estranha e imediata empatia com a sua retração.
Não tem como fingir que não é com você. Abriu-se uma danceteria no meio da rua, com luzes piscantes.
Aceitar dói menos. Desça e aguente.
E pense que não se encontra sozinho na vergonha. Quem faz a declaração demonstra que gosta de você acima de qualquer censura.
Triste é o amor platônico, não o amor público.
Os tímidos são os que mais sofrem. Porque quem não é adepto do exibicionismo costuma virar o alvo familiar, a vítima predileta. Jamais diga que odeia telemensagem: é chamar atenção para o valor do presente.
Não tem como fingir que não é com você. Abriu-se uma danceteria no meio da rua, com luzes piscantes.
Eu provei do veneno da algazarra. Meus amigos me aprontaram uma dessas na calada da noite, na véspera dos meus 41 anos. Eu só queria que acabasse. Desejei a morte rápida. Não demonstrei resistência para não prolongar a exposição. Obedeci a tudo o que foi pedido pelo contratado: dancei, cantei e pulei “Ilari, ilari, ilariê, oh-oh-oh/ Ilari, ilariê, oh-oh-oh/ Ilari, ilari, ilariê, oh-oh-oh/ É a turma da Xuxa que vai dando o seu alô”, emiti alguns murmúrios de agradecimento.
Meu comportamento dissimulado desencadeou efeitos colaterais. Transmiti o sinal errado de que estava curtindo a surpresa. E a festa jamais terminava.
Ganhei, inclusive, um banho de sidra na cabeça. Lamentei que não tinha sido champanhe. Meus amigos foram pães-duros.
Aquela maçã estragou as minhas roupas, que ainda fedem a perfume adocicado de antigo cabaré.
O negócio também contempla pedidos de namoro, despedidas e formaturas. Só acho que não é recomendável em reconciliações. Você não tem como prever se a pessoa já não estará acompanhada de um novo ficante.
*Fabrício Carpi Nejar, ou Fabricio Carpinejar, como passou a assinar a partir de 1998, é um poeta, cronista e jornalista brasileiro.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2023/08/festa-na-calcada-clkwz0di000bz0154kviv7uj6.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário