segunda-feira, 23 de outubro de 2023

10 respostas de um professor judeu sobre antissemitismo

 

Homem segura bandeira de Israel. Ele está em uma calçada em frente a um grande cruzamento que está vazio.

Foto: Lisi Niesner/REUTERS - 17.OUT.2023
Homem segura bandeira de Israel em local próximo à fronteira com o Líbano

O ‘Nexo’ conversou com o historiador Michel Gherman, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre como o conflito entre Hamas e Israel tem sido tratado no debate público brasileiro

Os ataques do Hamas em 7 de outubro deixaram em torno de 1.400 mortos em Israel. Casas foram incendiadas e pessoas, massacradas a tiros — cerca de 200 civis foram tomados reféns pelo grupo extremista palestino. A ofensiva marcou o maior número de judeus assassinados em um dia desde o Holocausto, o genocídio promovido pela Alemanha nazista nas décadas de 1930 e 1940.

A reação do governo de Benjamin Netanyahu também vitimou milhares de pessoas. Em torno de 3.000 palestinos morreram em Gaza até quarta-feira (18). Além de bombardeios, houve corte no fornecimento de água, de eletricidade, de alimentos e de combustível à população palestina, o que levou a uma situação de crise humanitária.

A eclosão do conflito foi acompanhada do surgimento de debates dentro e fora das redes sociais. O historiador Michel Gherman — assessor do Instituto Brasil-Israel, professor de sociologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista no estudo do antissemitismo — disse ao Nexo que posições antissemitas aparecem muitas vezes nas discussões, e de diferentes formas.

O sionismo é outro conceito que permeia o debate público sobre o conflito entre Hamas e Israel. De acordo com o professor, trata-se de um conceito em disputa, e dentro do qual há diversas posições, detalhadas na entrevista abaixo.

Em 10 de outubro — dias após o início dos ataques —, Gherman foi hostilizado por estudantes (majoritariamente judeus) em um debate no Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ. No evento, o professor se colocou como um sionista favorável à criação do Estado da Palestina. Foi chamado de antissemita.

Leia abaixo a entrevista do Nexo com Gherman, feita por telefone em 17 de outubro de 2023.

O Hamas é um grupo antissemita?

Michel Gherman Essa pergunta pode ser respondida em quatro camadas. A primeira é quase de arqueologia histórica. O título de um dos grupos armados do Hamas [as Brigadas al-Qassam] é Izz ad-Din al-Qassam. É um nome em homenagem a uma liderança de origem síria que morreu em 1935 — uma figura cuja referência antissemita é muito clara. Ele era, inclusive, próximo de Hitler e tinha vínculos muito fortes com os massacres de 1921 e 1929, que acertaram principalmente a população judaica em cidades históricas da Palestina. Ninguém escolhe um nome de um antissemita fanático se não for antissemita.

Num momento mais próximo, as declarações do Hamas desde a década de 1980 deixam poucas dúvidas sobre o posicionamento antissemita, falando de alvos internacionais judaicos e também sobre conspiração judaica. Então, em termos de fundação, sim, é antissemita.

A terceira camada é a tentativa de retrocesso dessa perspectiva antissemita, que se deu em 2003, 2004, quando o Hamas tentou se colocar como um partido mais pragmático, de vínculos muito próximos com a causa palestina, aceitando, em condições muito específicas — a partir de uma ideia de trégua — a existência de Israel, com muitas condições, como o retorno total dos refugiados, o total retorno territorial ao arranjo de 1967 etc. Mas você percebe ali uma perspectiva conspiracionista judaica também. E, principalmente, os alvos do Hamas sempre foram alvos judaicos.

E, para terminar, a quarta camada é a dos atentados que o Hamas produziu quando invadiu Israel [em 7 de outubro]. É muito revelador que, entre as vítimas — apesar de terem havido vítimas árabes também —, 90% tenham sido judias. Então, mesmo agora, numa dimensão muito contemporânea, é difícil não ver antissemitismo, porque os civis israelenses são vistos pelo Hamas como inimigos tão cruéis quanto os militares. Não tem uma diferença entre civis e militares, por uma perspectiva ideológica. Até porque, na perspectiva conspiracionista que o Hamas tem, os civis são civis momentaneamente — no caso das crianças, vão crescer para serem soldados. Há uma perspectiva quase genética de antissemitismo. Então, nessas quatro camadas, o Hamas “gabarita”: ele é antissemita nas quatro.

Defender o Hamas é um ato antissemita?

Michel Gherman Eu acho que é um ato de estupidez, um ato de pouca compreensão da complexidade da realidade. É uma compreensão limitada sobre as possibilidades do conflito palestino-israelense.

Pouca gente tem noção do que é antissemitismo, é uma categoria muito vilipendiada [desdenhada], inclusive porque setores da comunidade judaica no Brasil usam o antissemitismo para quase qualquer coisa. Para alguns setores, se você tem uma posição contrária a Israel, você é antissemita; se você não gosta do Netanyahu, você é antissemita. De tanto usar a palavra antissemitismo, ela começou a ficar gasta.

Acho mais provável que as pessoas que eventualmente apoiam o Hamas aqui no Brasil tenham pouca noção do que é o Hamas e do que é antissemitismo, do que sejam antissemitas. Porque se temos uma quantidade tão grande de antissemitas no Brasil, estamos muito mal colocados.

O que é antissemitismo?

Michel Gherman Acho que há três categorias de antissemitismo. A primeira é o antissemitismo tradicional, que alguns chamam de judeu-fobia, que se vincula a uma dimensão cuja referência religiosa é central. É ligada ao fim do Medievo e ao início da Modernidade, em que as condições possibilitaram [o surgimento] da percepção de que os judeus são inimigos, porque mataram Cristo, e que são fracos e precisam ser superados e substituídos por cristãos. E que precisam ser colocados numa redobra para ver se se converteram de verdade. Essa é a judeu-fobia.

Tem uma segunda categoria, que é mais moderna, surge em torno da Revolução Francesa [fim do século 18], um pouco antes. Simplificando bastante, é um antissemitismo fundado nas referências contemporâneas de história, pelo qual os judeus são responsáveis pelas mudanças radicais do mundo. Essa onda tem a ver com a presença de grupos corporativos, tidos como “donos do mundo” — donos da economia, da mídia, da tecnologia, dos países... Os grupos que entraram nesse esquema e que foram transformados em inimigos são os jesuítas, os maçons e os judeus. Isso se fortaleceu no século 19, com a chegada de uma dimensão racial, que não substituiu a corporativa, mas se atrelou à dimensão de conspiração judaica. Você tem ali a lógica de complô, de um grupo pequeno que domina a humanidade.

A terceira categoria de antissemitismo é mais complicada. É a gramática antissemita. Ou seja, ontologicamente, o preconceito não tem a ver com a vítima, tem a ver com a percepção de quem produz a vítima. Por exemplo, machismo não tem a ver com mulheres, racismo não tem a ver com negros, antissemitismo não tem a ver com os judeus. Quem produz essas perspectivas são os homens machistas, os brancos racistas e os antissemitas. A categoria tem sentido no discurso de quem persegue.

O que tenho notado nos últimos anos é que há uma gramática antissemita que é filossemita, que adora o judeu. Mas é uma gramática antissemita. Ela adora o judeu porque ele faz parte de uma corporação internacional que mantém os laços com a cristandade. Nessa perspectiva, o judeu só existe para justificar uma percepção de mundo.

Defender a causa palestina implica defender o Hamas?

Michel Gherman Eu acho que no Brasil esse um-a-um entre a causa palestina e o Hamas está mais forte do que em outros lugares. Acho que isso tem a ver com a posição da extrema direita brasileira. A extrema direita brasileira trabalha com a ideia que a professora Isabela Kalil chama de pânico moral. Tem a ver com uma percepção de que alguma coisa muito grave está sendo feita e que é preciso ir contra essa coisa porque senão a gente vai perder nossos filhos. Aí pode ser desde banheiro unissex até professores que doutrinam alunos.

E aí o pânico moral sobre o Hamas — que pega emprestado do pânico moral sobre o Islã, e é uma perspectiva profundamente islamofóbica — produz uma mobilização da extrema direita. Principalmente porque o governo Lula é historicamente comprometido com a solução de dois Estados — [que] é uma causa palestina vinculada à OLP, à Autoridade Nacional Palestina, e não ao Hamas.

Mas, na perspectiva do pânico moral e da islamofobia, defender o Estado palestino é defender o Islã e é defender o Hamas — mas é também defender o Estado Islâmico, e é também defender aqueles que lutaram contra as cruzadas no século 11 e 12. É uma cosmovisão típica da islamofobia.

Também há pessoas na esquerda brasileira que defendem o Hamas a partir de perspectivas estúpidas, porque têm leituras equivocadas, porque promovem uma espécie de pânico moral ao contrário, de que os sionistas vão invadir o mundo.

Mas acho que defender a causa palestina é exatamente o contrário: é não defender o Hamas. Se tem algum inimigo à causa palestina hoje, é o Hamas. Aliás, o Hamas é um aliado histórico de uma extrema direita israelense para enfraquecer a Autoridade Nacional Palestina. Fortalecer o Hamas hoje é enfraquecer a causa palestina. Defender o Hamas hoje é atacar a causa palestina, isso me parece claro.

O que é sionismo? Há mais de uma definição para esse conceito?

Michel Gherman O sionismo é um movimento que defende a identidade nacional do povo judeu. Veja que não falei em defesa da criação do Estado, não falei sequer que defende a identidade nacionalista. O sionismo é muito amplo.

Alguns desses elementos de identidade nacional judaica [se] vinculam à criação de um Estado, outros sequer têm isso, [se] vinculam à criação de uma coletividade nacional judaica, vivendo lado a lado com palestinos na Palestina.

O sionismo é tão diverso que a definição que vincula todas as correntes sionistas é a que estabelece a criação de uma identidade nacional judaica, vinculando-a a algum tipo de soberania judaica nacional.

O sionismo é racista? É colonialista?

Michel Gherman Há sionismos — sobretudo na direita — que são profundamente racistas e colonialistas. Principalmente a partir da noção religiosa — e tenho uma crítica muito forte a esses movimentos — de que o sionismo é um instrumento para a redenção. Quando ele é um instrumento para a redenção, ele começa a dizer respeito não à identidade nacional judaica, mas à identidade religiosa judaica.

Quando o sionismo começa a se vincular a perspectivas colonialistas, racistas e fundamentalistas religiosas, ele começa a funcionar do mesmo jeito que os movimentos fundamentalistas religiosos do Islã. Acaba enfraquecendo essa perspectiva de identidade nacional e caminhando em direções colonialistas.

O que significa ser sionista em 2023?

Michel Gherman Primeiro, para mim, significa manter essa identidade nacional judaica como uma referência fundadora da minha identidade judaica. E não estou dizendo identidade nacionalista judaica. É uma identidade nacional judaica, que aproxima os judeus do mundo todo a partir de uma perspectiva de língua, de pertencimento... de identidade no sentido amplo da palavra.

Segundo, significa lutar por um Estado palestino. O Estado judeu só vai existir de maneira completa se o Estado palestino também existir de maneira completa. Então, de maneira contraditória, significa, em última instância, lutar pelo Estado Nacional Palestino.

O terceiro ponto significa lutar contra a ocupação dos territórios palestinos de 1967 [Gaza e Cisjordânia]. Enquanto houver uma cidadania diferenciada dentro do Estado judeu — ou seja, cidadãos com origens diferentes sendo tratados de maneira diferente —, aquele movimento nacional judaico não está completo. É preciso que o sionista lute pelo final da ocupação e da discriminação institucional que os palestinos sofrem nos territórios de 1967. Ser sionista, para mim, é não defender a forma como Israel tem tratado a questão palestina nas últimas décadas.

Há muitos outros pontos. É lutar pelo fim de discriminações identitárias que cidadãos árabes sofrem dentro do Estado Nacional judaico. É lutar por uma identidade nacional judaica que não seja baseada em perspectivas religiosas ou teocráticas — enquanto houver uma influência tão poderosa das perspectivas religiosas dentro do Estado de Israel, não há um Estado Nacional judaico sendo criado. É ser a casa nacional judaica para todos os judeus que acham que podem ser vinculados a ela, indo morar nela ou não.

Hoje, nenhuma dessas perspectivas, com exceção da cultura, estão resolvidas. Hoje, há discriminação institucional aos palestinos, ocupação, discriminação (que pode não ser institucional) dentro de Israel. Há uma relação muito clara entre religião e Estado que precisa ser superada. Há um vínculo muito profundo entre Israel e setores específicos da identidade judaica mundial, e não com todos os setores — muitos judeus no mundo se sentem cada vez menos pertencentes a essa identidade nacional, porque ela está vinculada cada vez mais a perspectivas específicas.

O sionismo de direita é hegemônico hoje em vários setores das comunidades judaicas do mundo. O sionismo está no meio de um processo de desconstrução muito duro, muito radical. Para mim, não faz nenhum sentido que eu abra mão do meu sionismo, porque eu estou no meio de uma batalha por uma identidade nacional judaica que está em disputa justamente com aqueles grupos que reivindicam o sionismo como um elemento deles — e que, na minha perspectiva, são antissionistas, porque nenhuma dessas categorias que considero sionistas são legítimas para eles. Ao mesmo tempo, se essa perspectiva neossionista — que é religiosa, de branquitude, colonizadora, arabofóbica, anti-judaica no sentido de que aceita somente um tipo de judaísmo — ganhar a disputa ideológica, eu perco.

Há correntes sionistas de todos os tipos, da extrema esquerda até a extrema direita. Desde o sionismo comunista até o sionismo ultraliberal. Exigir agora que somente um tipo de sionismo seja legítimo é ser antissionista. É negar a pluralidade do sionismo em sua essência. Não há sionismo sem pluralidade.

A batalha é entre duas perspectivas de sionismo. Uma delas é a que considero mais teocrática, colonialista e com elementos de racismo. A outra é a que considero mais universalista, secular [menos ligada à religião] e com elementos de possibilidade concreta de resolução do conflito palestino-israelense. As maiores vítimas desse sionismo de direita que está colocado no poder [em Israel] são os palestinos. Mas não são as únicas vítimas. Judeus seculares em Israel também são vítimas dessa perspectiva. Judeus de esquerda também são vítimas.

Ser antissionista é ser antissemita?

Michel Gherman Depende de qual antissionismo. Se é um antissionismo que discorda da criação do Estado de Israel por conta do resultado disso — como, por exemplo, a situação de prejuízo radical e dolorido aos povos que lá estavam antes —, não é antissemitismo.

Mas se você fala sobre antissionismo a partir de uma perspectiva de domínio do mundo, que Israel domina os EUA e a mídia internacional e vende armas para todo o mundo, e que Israel é o grande problema do mundo, isso é antissemitismo.

Ou seja, a preocupação não é o que você defende, é como você defende.

E há uma gramática antissemita que é profundamente vinculada ao antissemitismo. Ela pode ser, inclusive, a favor de Israel. Por exemplo, há grupos de extrema direita que trabalham com a ideia de que Israel é o lugar mais importante do mundo, que todas as decisões devem ser tomadas a favor de Israel, que os palestinos são inimigos do mundo. Essa é uma lógica antissemita, porque entende que Israel faz parte de uma corporação, de um complô internacional. A diferença é que a perspectiva desses grupos sobre Israel é positiva.

Ao mesmo tempo, se eu troco a palavra judeu por sionista e continuo produzindo o mesmo tipo de gramática, continuo sendo antissemita. Se em vez de falar que “os judeus são problemas do mundo”, e que “temos que extirpar os judeus do mundo, eles controlam a mídia e controlam toda a economia mundial”, alguém trocar para “Israel é o problema do mundo” e “temos que extirpar Israel do mundo, Israel controla a mídia e a economia mundial”, continua sendo antissemitismo. A pessoa pode até fingir que está falando sobre outra coisa, mas está falando a mesma coisa. Ela pode não acionar a palavra “judeu”, mas a gramática antissemita está lá.

Ser crítico ao governo de Israel é ser antissemita?

Michel Gherman Não. Ser crítico a um governo, seja ele qual for, não é criticar as estruturas nacionais em torno desse governo. Eu era profundamente crítico ao governo Bolsonaro e nunca fui antibrasileiro. Posso ser crítico a um determinado governo entendendo que as condições concretas que levaram à eleição desse governo são muito específicas e que as políticas produzidas por esse governo podem mudar em outro mandato.

Existe essa confusão [entre Estado de Israel, governo de Israel e povo judeu], que não é produzida somente por grupos não-judeus e antissemitas. É produzida também por grupos judeus, inclusive sionistas de direita.

Se alguém é antissemita por criticar o governo Netanyahu, então a maioria de Israel é antissemita. Isso é um problema: se tudo é antissemitismo, nada é antissemitismo. Se você fala que tudo é antissemitismo, você gasta o termo até chegar num nível em que isso passa a ser um discurso retórico de um grupo específico. Por isso é tão importante colocar o debate sobre antissemitismo.

O antissemitismo aparece no debate brasileiro sobre o conflito no Oriente Médio? Se sim, como? Quem o comete?

Michel Gherman Está sendo cometido por conta de uma crítica descuidada das práticas do governo de Israel. Acho que nem a direita nem a esquerda têm consciência do que é o antissemitismo.

O antissemitismo de direita é mais sofisticado, é mais difícil de ser localizado, porque aparece como filossemitismo.

Mas acho que há um antissemitismo na esquerda — principalmente em setores mais radicalizados — que se utiliza de perspectivas conspiracionistas para entender Israel e, nesse sentido, os judeus. Há diferentes tipos de antissionismo: os tipos conspiracionistas são antissemitas e são mais frequentes hoje na ultra esquerda do que em outros setores da população brasileira.

O antissemitismo também vem de uma perspectiva colonialista sobre o judeu, de que eu só te aceito se você for como eu. Mas as pessoas podem ser judias do jeito que quiserem, sem precisar pedir permissão.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2023/10/18/10-respostas-de-um-professor-judeu-sobre-antissemitismo?posicao=1

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