Por NURIT PELED-ELHANAN*
Os israelenses aprendem na escola que os judeus têm direitos históricos sobre a palestina, e os refugiados palestinos são representados como os que querem entrar em Israel e não como aqueles que desejam retornar para a sua terra natal
Uma análise linguística e semiótica dos mais de vinte livros didáticos de geografia e de história publicados entre 1994 e 2010 e destinados tanto ao sistema escolar secular administrado pelo governo como pelas escolas independentes vinculadas aos ultraortodoxos, mostra que os livros didáticos de Israel visam reforçar uma marca territorialista da identidade judaica. Tal identidade situa os modernos israelenses como descendentes diretos dos heróis bíblicos.
Os livros didáticos israelenses precisam ser aprovados pelo Ministério da Educação. Por conta disso, apesar das diferenças existentes entre eles, todos igualmente partem de um mesmo pressuposto básico, a saber, uma identidade que considera como dados: os direitos históricos dos judeus sobre a Palestina; a existência do sionismo como a resposta dada aos judeus de 2 mil anos atrás para o seu país; a contínua presença do antissemitismo, da hostilidade árabe e da ameaça árabe; e a necessidade de uma maioria judaica acompanhada de um controle dos cidadãos israelenses a fim de manter o caráter e a segurança do Estado.
A história, segundo o historiador Keith Jenkis, é um “campo de força”, ou seja, uma cadeia de linhas de ação que organiza o passado com base em (e em proveito de) interesses estabelecidos. Isso inclui e ao mesmo tempo exclui, aproxima certos pontos de vista do centro da arena enquanto outros são empurrados para a margem, e isso ocorre de diferentes maneiras e em graus variados, de acordo com as forças que agem sobre os pontos de vista a incluir ou a excluir.
A observação de Keith Jenkins pode ser aplicada inclusive aos livros didáticos de geografia de Israel, sendo particularmente apropriada no caso dos mapas. Muitos deles incluem ou excluem certos pormenores geográficos ou políticos. Dentre os textos de geografia que examinei, todos tinham como título “Israel” ou “Terra de Israel”, mas nunca “Estado de Israel”. A única exceção foi Israel: o homem e o espaço, de Zvia Fine, Meira Segev e Raheli Lavi (Centro de Educação Tecnológica). Contudo, apesar de este texto em sua introdução apresentar seu assunto como “Estado de Israel”, ele omite as fronteiras pré-1967 – começando pelo primeiro mapa (de Israel e seus vizinhos) –, enquanto inclui os territórios ocupados, ignorando que estes nunca foram anexados ao Estado do ponto de vista legal.
Em um mapa que retrata a presença da população árabe em Israel, o livro informa que “não há estatísticas” para os territórios palestinos, cujos habitantes são descritos no texto como “trabalhadores estrangeiros”. Tal método, pelo qual a terra é tida como conquistada enquanto a existência das pessoas que nela vivem é ignorada, é conhecido por “silêncio” geográfico ou toponímico. Segundo A. K. Henrikson, o silêncio geográfico consiste em “espaços vazios, silêncios de uniformidade, de estandardização ou exclusão deliberada, o ato proposital de ignorar ou mesmo repressão de fato”.
Os silêncios geográficos no livro de Fine, Segev e Lavi expressam-se no fato de as cidades e povoados árabes – incluindo Nazaré e Acre, cidades mistas localizadas ao interior das fronteiras de 1967 – não terem sido marcadas, e pela ausência de instituições palestinas. Isso ocorre, por exemplo, em um mapa de universidades, que inclui todos os campi, bem como faculdades judaicas independentes nos territórios (em Alon Shvut e Elkana), mas nenhuma das universidades palestinas. O mapa de emprego aponta nos territórios os locais de trabalho israelenses, mas não os palestinos. Além disso, enquanto há um mapa com os “sítios nacionais, sítios culturais, [e] instituições administrativas e governamentais” em Jerusalém, não há referência alguma – com exceção do Muro das Lamentações – em relação à parte árabe de Jerusalém Oriental.
Surpreendentemente, um texto de geografia para o sistema escolar independente ultraortodoxo, Sfat Hamapa, de P. Dina (Yeshurun Press), é excelente. Ele assume uma clara postura ideológica, colocando nos mapas as fronteiras de 1967, e pondo questões que levam os estudantes para o cerne da questão. Por exemplo: “Considere por que motivo é muito importante saber as fronteiras precisas da Terra de Israel tal como elas são representadas na Torá.” “Por que as Colinas de Golã são tão importantes para nós?” “O que é a Linha Verde?” “Dê os nomes de alguns assentamentos judaicos construídos para além das fronteiras de 1967.” “Corte e cole artigos de jornais que tratem da controvérsia a respeito dos assentamentos em ‘territórios ocupados’ para além da Linha Verde.”
Ao pesquisar nos livros didáticos usados em escolas seculares geridas pelo Estado, observei haver justificativas para a ocupação amparadas em versículos bíblicos. No livro didático de geografia Artzot Hayam Hatihon, de D. Vadaya, H. Ahlman e J. Mimouni (Maalot Press), usado pelas classes de quinta série desde 1996, a seção “Um mar e seus muitos nomes” em verdade não apresenta os nomes que diferentes povos que vivem nas margens do Mar Mediterrâneo lhe dão. Ao invés disso, o texto oferece citações bíblicas: “Fixarei teus limites desde o mar Vermelho até o mar dos filisteus” (Êxodus, 23:31); “As vossas fronteiras se estenderão desde o deserto do Líbano e desde o rio Eufrates até o mar ocidental” (Deuteronômio 11:24). O título do mapa é “Ao norte e ao sul, ao oriente e ao ocidente” (Gênesis 13:14), com a explicação: “O sentido do verso consiste em que, no futuro, o seu país estender-se-á para o oeste, o leste, norte e sul”. O título aparece à direita do mapa intitulado “Israel”, e inclui todos os territórios ocupados sem quaisquer linhas de demarcação. A inclusão da Bíblia em um livro didático confere um selo científico de aprovação a uma profecia, ao mesmo tempo em que confere dimensão sagrada a um livro de geografia.
Um árabe com um camelo
Em um estudo publicado há oito anos, Ruth Firer, do Truman Institute for the Advancement of Peace, vinculado à Universidade Hebraica de Jerusalém, escreveu que “tão logo o politicamente correto chegou a Israel, tornou-se inconveniente o uso de linguagem áspera e discriminatória em livros didáticos”. Não obstante, nos livros que examinei em meus estudos, nenhum deles contém uma descrição ou imagem dos palestinos – seja dos que vivem nos territórios, seja dos que vivem em Israel – como modernos ou urbanos, como empregados na produção ou em profissões de prestígio.
Os refugiados palestinos são representados como pessoas que querem entrar em Israel e não como aqueles que desejam retornar para a sua terra natal; cidadãos árabes-israelenses são representados como o inimigo interno, uma ameaça demográfica e uma minoria inferior à maioria judia – individualmente, socialmente e economicamente. Os palestinos figuram nos textos apenas como representativos dos problemas que eles causam a Israel – atraso e terrorismo – ou como parte do “problema dos refugiados” que “envenenou as relações de Israel com o mundo árabe e a comunidade internacional por mais de uma geração”, segundo Elie Barnavi e Eyal Naveh em seu livro didático de história, Tempos Modernos 2 (Sifrei Tel Aviv Press).
As únicas imagens de palestinos nos livros didáticos de história por mim examinados retrata refugiados descalços descendo por uma via não identificada (Idan Ha’ayma Vehatikva, de Ketzia Avieli-Tabibian, Matah Press); tendas em um local e época não identificados (Hale’umiut Bayisrael Uba’amim, de Eyal Naveh, Naomi Vered e David Shahar, Rekhes Press); terroristas mascarados (The 20th Century, de Barnavi, Sifrei Tel Aviv Press); e lavradores atrás de um arado puxado por bois (Anashim Bamerhav, de A. Rapp and Z. Fine, CET Press).
O livro A geografia de Eretz Israel, de Y. Aharoni and T. Saguy (Lilach Press), traz uma caricatura de um homem com um bigode e vestindo um kaffyeh, ou conduzindo um camelo ou montado em um, e frequentemente acompanhado por uma mulher curvada, por crianças e, às vezes, por um velho beduíno – o texto refere-se sempre aos “árabes”. Tais são as imagens que moldam a maneira como os estudantes judeus de Israel veem árabes e palestinos, não apenas aqueles que são seus vizinhos, mas também aqueles que são seus conterrâneos, cidadãos israelenses.
Foi um milagre
Os livros didáticos de história retratam de maneira abundante os palestinos como parte de um problema nefasto, algo que poderia assemelhar-se a um desastre natural; aos estudantes são mostradas imagens de ruas vazias e inundadas com água, ou fotos aéreas de construções densas em campos de refugiados vazios. A culpa para este problema sem fim é imputada às vítimas, ou seja, aos refugiados que não se incorporaram aos países árabes, bem como aos líderes dos países árabes que se recusaram a absorvê-los.
Os estudantes leem que o problema é conveniente aos líderes árabes, sobretudo como propaganda anti-Israel. Por exemplo, Naomi Blank argumenta em seu livro didático de história Pnei Hame’a Ha’esrim (A face do século XX, Yoel Geva Press) que “a questão dos refugiados remete a um problema insolúvel, que alimenta o conflito no Oriente Médio, joga lenha na fogueira /…/. Líderes dos Estados árabes têm usado os refugiados palestinos como um instrumento em proveito de seus interesses políticos”.
Enquanto o currículo tem como diretriz oferecer uma apresentação de uma variedade de posições a respeito de problemas relevantes, os pontos de vista dos palestinos nos campos da política, da cultura e da economia são excluídos. Em Bonim Medina Bemizrah Hatihon, frequentemente citado no relatório Bar-Tal/Adwan, os autores Domke, Orbach e Goldberg tentaram incluir o ponto de vista de um historiador palestino, Walid Khalidi, acerca dos refugiados. Este intento fez com que o livro passasse a ser rejeitado pelo Ministério da Educação. O historiador israelense Benny Morris foi chamado para, em uma versão corrigida, reapresentar a perspectiva palestina.
Outros livros também desconsideram historiadores não israelenses exatamente na medida em que seus autores pretendem estar eles próprios representando os múltiplos pontos de vista acerca das controvérsias entre israelenses e árabes. Abraham Hadad, em Toldot Yisrael Veha’amim Betkufat Hashoah Vehatekuma (Dani Press), e Shula Inbar em 50 Shenot Milhamot Vetikvot (Lilach Press) oferecem suas próprias interpretações para o tópico “a posição árabe”. De acordo com estes autores, os palestinos provocaram o desastre que os acomete e os líderes dos países árabes querem que o desastre continue.
A fuga dos palestinos em 1948 é descrita, em todos os livros que pesquisei, como uma “migração em massa” ou como uma “temerosa retirada” originada por pequenos atos não planejados de expulsão, mas em sua maior parte por rumores exagerados acerca da crueldade dos judeus, que permanece como mito nas narrativas palestinas, tal como descrito no livro Haleumi’ut Bayisra’el Uba’amim. Em seu livro, Inbar descreve como David Ben-Gurion visitou o povoado de Salameh e tentou, sem sucesso, entender as razões de uma velha mulher cega para a fuga.
Muitos dos livros didáticos apoiam explicitamente a recusa de Israel em permitir o retorno dos refugiados, sendo que alguns deles expõem em detalhes como Israel tem atuado para prevenir-se de que isso aconteça. O resultado dessa política é enfatizada por todos como sendo algo positivo para os judeus. Bar Navi (1998), considerado por Firer e Adwan (2004) como “progressista”, afirma que a “fuga em massa” dos árabes de Israel causada pelo massacre de Dir Yassin “solucionou um problema demográfico de grande envergadura” “e mesmo uma pessoa ponderada como (o primeiro presidente) Haim Wiezman disse que esse episódio foi um milagre”.
Esse livro “progressista” não é diferente dos livros ultra-ortodoxos que dizem: “Foi um milagre que os árabes de Haifa, Katamon (nas redondezas de Jerusalém) e Jaffa tenham ido embora e deixado tudo nas mãos de judeus”, escreve Yekutiel Fridner em seu livro para o sistema escolar independente ultraortodoxo Toldot Hadorot Ha’ahronim: Yisrael Ve’umot Ha’olam Metkufat Hamahapaha Hatzarfatit ad Lamilhemet Sheshet Hayamim (Yeshurun Press). Direitos Humanos e Direito Internacional não são de modo algum discutidos.
Foi apenas uma campanha
Nestes livros, massacres cometidos pelas Forças de Defesa de Israel ou pelas forças militares Haganá, Irgun e Lehi – que ocorreram antes da fundação do Estado – tornaram-se “ações”, “campanhas”, “histórias” e “batalhas”, ou mesmo “ações punitivas”. O massacre de Deir Yassin, ocorrido em 1948, o massacre em Kafr Qasem em 1956 e o ocorrido no povoado jordaniano de Qibya em 1953 são apresentados como ações que tiveram resultados positivos (ignorando a condenação pela comunidade internacional e o mal-estar de lideranças políticas).
Tais resultados incluem uma faixa contínua de assentamentos judaicos no corredor para Jerusalém, uma aceleração da “retirada rápida” dos árabes palestinos (como em Deir Yassin), a elevação na moral das tropas e a segurança dos cidadãos israelenses (como em Qibya), e uma oportunidade para declarar que os soldados não poderiam cumprir ordens que fossem obviamente ilegais e o início do processo de desmantelamento do governo militar de Israel nos territórios (Kafr Qasem). A lição que se tira de todos os livros didáticos que examinei é que todas as injustiças que os israelenses cometeram são justificadas caso previnam a injustiça que possa talvez ser cometida contra nós.
Há apoios visuais que acompanham estes materiais, mas as imagens e outros materiais adicionais dão enfoque para os soldados israelenses, não para as atrocidades que eles possam ter cometido nem tampouco para as vítimas de tais atrocidades. O texto que descreve o massacre de Deir Yassin no livro Idan Ha’eima Vehatikva, por exemplo, aparece logo depois de uma imagem de soldados israelenses nas ruínas da fortaleza de Kastel, próximo do local onde ocorreu o massacre, bem como da letra da canção popular Shir Hare’ut, que fala da camaradagem entre os soldados. Já no livro Hale’umi’yut Beyisra’el Ube’amim, há uma descrição do massacre em Qibya ao longo da qual soldados da Unidade 101 são retratados como modelos de coragem, ousadia, devoção e adjetivos semelhantes, ao passo que Idan Ha’eima Vehatikva mostra uma foto de Ariel Sharon e seus combatentes, acompanhado de Moisés Dayan, que veio para congratulá-los por sua “missão” bem-sucedida em Qibya, figurando ainda a letra da canção popular “Hasela Ha’adom”, que fala da coragem imprudente de rastejar pela margem do Rio Jordão para visitar a cidade antiga de Petra.
As vidas e o sofrimento das vítimas não gozam de nenhum “tempo papel”, para usar uma expressão do filósofo Roland Barthes [NT: O “tempo papel” diz respeito à apresentação da História através da enunciação, do discurso ou da narração, que varia segundo as opções do narrador. Segundo Barthes, o “tempo papel” contrasta com o “tempo histórico (ou cronológico)”, no qual os acontecimentos históricos efetivamente se passam]. Nesses livros, as descrições de massacres não geram empatia para com as vítimas nem solidariedade humana para com sua dor.
Chances para a paz
Um aspecto comum de todos os livros didáticos estudados é a descrição dos palestinos, tanto daqueles que são cidadãos do Estado de Israel como daqueles que habitam nos territórios, vistos como um problema a ser resolvido. Uma solução de paz para o conflito é insistentemente retratada como sendo impossível, e os palestinos são sempre culpados pela violação dos cessar-fogo e acordos. (As violações dos Acordos de Oslo por Israel são descritas como atos de extremistas, tal como Baruch Goldstein, o médico israelense que assassinou 29 devotos palestinos na Caverna dos Patriarcas em 1994).
O autor do livro didático ultra-ortodoxo Yekutiel Fridner assume o orgulho da astúcia de Israel em assegurar-se de que a Resolução 242 das Nações Unidas definisse a retirada das forças de Israel de “territórios” ocupadas na Guerra dos Seis dias, ao invés de falar “dos territórios”, dando a entender que se tratavam de alguns deles, e não de todos eles. Tais palavras, exulta Fridner, permitiu a Israel manter o controle de partes da Cisjordânia quando esta foi dividida em áreas administrativas – incluindo o assentamento Gush Etzion, Beit El e Ariel, e partes de Jerusalém Oriental. Ele acrescenta que enquanto “os palestinos ‘comprometeram-se’ em dar aos judeus acesso a sítios judaicos sagrados, estas promessas não tinham muito valor”.
Em suma, os livros didáticos que examinei tendem a alimentar nos estudantes hostilidade para com e alienação e ignorância a respeito das vidas, da cultura, dos líderes e das potenciais contribuições dos palestinos para a nossa sociedade e país. Nenhum dos livros contém uma alusão sequer aos benefícios que a paz pode trazer.
Dito isso, só posso tirar a seguinte conclusão: não apenas falta educação para a paz em Israel, como os livros didáticos usados nas escolas judaicas em Israel estão educando ativamente para o ódio. Professores interessados em leituras críticas da história e geografia, ou em educação para a paz, necessitam de um treinamento para lidar com as maneiras pelas quais os livros didáticos à disposição passam suas mensagens politicamente carregadas, e tudo que diga respeito a isso.
Esse preparo é vital para Israel, cujos livros didáticos representam ideologias políticas e sociais poderosas e sacralizadas, e um sistema educacional que torna difícil para professores e estudantes desenvolver o pensamento crítico e com isso incidir sobre o discurso padrão, ou envolverem-se em debates sobre a realidade e justiça desse discurso.
*Nurit Peled-Elhanan é professora de educação e linguagem na Universidade Hebraica de Jerusalém. Autora, entre outros livros, de Ideologia e propaganda na educação: Palestina nos livros didáticos israelenses (Boitempo).
Tradução: Antônio David e Sarah de Roure para o portal Carta Maior (em 7 março de 2013)
Publicado originalmente no jornal Haaretz.
Fonte: https://aterraeredonda.com.br/livros-didaticos-em-israel/ 27/10/2023
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