Mulheres são, muitas vezes, agentes de mudança que lutam bravamente por paz e liberdade. Elas se organizam, protestam, mobilizam, reivindicam direitos, denunciam abusos
A escritora norte-americana Cynthia Enloe, referência máxima para feministas que pensam as relações internacionais, acaba de lançar “Twelve Feminist Lessons on War”. O livro é quase uma declaração de amor às suas áreas de interesse e às suas companheiras de front, que trabalham incansavelmente para que seja possível pensar segurança e insegurança internacional a partir de lentes feministas. No livro, Enloe nos conta as experiências de mulheres que habitavam territórios onde houve (e em alguns casos ainda há) conflitos deflagrados, como Ucrânia, Mianmar, Somália, Vietnã, Ruanda, Argélia, Síria e Irlanda do Norte. Seu objetivo? Demonstrar que a guerra das mulheres e a guerra dos homens são coisas diferentes.
Mulheres e homens experienciam a realidade de maneiras profundamente distintas em tempos de paz. Enloe nos lembra que o mesmo acontece quando seus territórios se tornam teatros de guerra. No livro recém-lançado e ainda sem tradução para o português, a professora da Clark University (EUA) fala sobre recrutamento e serviço militar, sobre crimes sexuais como arma de guerra e suas consequências nefastas e sobre o colapso econômico que segue grandes guerras. Além disso, a autora celebra ativistas feministas que conseguem o feito extraordinário de se manterem vivas e comprometidas - mesmo que tudo ao seu entorno pareça razão para capitular.
Mulheres brigam pela garantia de direitos e liberdade. Brigam pela paz, pelo bem-estar dos seus e pelo bem-viver de todo mundo quando a guerra eclode
Ao mergulhar nesses temas, Enloe nos convida a refletir sobre como as mulheres vivem momentos que antecedem guerras, períodos de conflito deflagrado e pós-guerras. O livro foi lançado meses antes da eclosão do conflito Hamas-Israel, e isso faz dele uma contribuição poderosa muitíssimo útil para quem quer entender o que se passa no Oriente Médio e o que nós temos a ver com isso. Ele guarda em si o frescor de algo escrito ontem, mas não está contaminado pelas narrativas apaixonadas do hoje.
As feministas que estudam paz, guerra e segurança internacional nos ajudam a compreender que o serviço militar é, reiteradas vezes, reservado exclusivamente aos homens. Há exceções, casos nos quais mulheres têm a possibilidade de tomar parte no conflito diretamente. Ainda assim, o serviço militar em tais contextos é majoritariamente uma atividade masculina. Contudo, mulheres desempenham papéis fundamentais para o desenrolar das guerras. Papéis esses que, tal qual ocorre em tempos de paz, são frequentemente invisibilizados.
Mulheres são mães, esposas, filhas, donas de casa, professoras, cozinheiras, lavadeiras, faxineiras, enfermeiras, ativistas que advogam pela paz… E mais: muitas vezes o são concomitantemente. Fala-se muito atualmente sobre múltiplas jornadas e esgotamento feminino. Imaginem essas mesmas engrenagens funcionando em meio a uma guerra? Enloe quer que pensemos sobre isso junto com ela.
Normalmente, as mulheres que experienciam guerras aparecem na literatura sobre segurança e insegurança internacional e nos jornais que cobrem conflitos internacionais como vítimas. É importante que seja assim. O estupro como arma de guerra é largamente documentado e, ao que tudo indica, está sendo empregado neste exato momento no conflito Hamas-Israel. A mutilação, a obrigação de levar a termo uma gravidez indesejada, a esterilização e a prostituição forçada são outros exemplos de crimes sexuais que compõem estratégias de guerra. Além disso, mulheres que vivem a guerra seguem vulneráveis às forças misóginas que as subjugam em tempos de paz. A violência doméstica, a discriminação, o assédio… tudo isso existe em tempos de paz e persiste quando conflitos armados são deflagrados. Há ainda a violência que mulheres experienciam nos campos de refugiados e nos abrigos, onde deveriam encontrar acolhimento. Enloe nos relembra diversas vezes ao longo de seu livro a pertinência de investigar as muitas formas de vitimização às quais são expostas as mulheres que experienciam a guerra.
Mas Enloe vai além. A autora nos lembra também que as mulheres são, muitas vezes, agentes de mudança que lutam bravamente por paz e liberdade. Elas se organizam, protestam, mobilizam, reivindicam direitos, denunciam abusos. São, em muitos casos, protagonistas de campanhas de êxito que contribuem de maneira vital para o fim de conflitos armados. Contudo, essa atuação raramente tem o devido reconhecimento e respeito. Nas discussões entre tomadores de decisão sobre cessar-fogo e em rodadas de negociações pela paz, essas bravas mulheres dificilmente têm assento. Os senhores da guerra não são chamados assim por acaso. São de fato, em sua maioria, senhores. E quando decidem que chegou a hora de negociar o fim das hostilidades, ignoram agentes de mudança mulheres e seguem dando de ombros para a representatividade.
Em 4 de outubro, dias antes dos atos terroristas encampados pelo Hamas e da ofensiva que Israel liderou em resposta, milhares de ativistas feministas israelenses e palestinas se reuniram em Jerusalém. O encontro foi liderado pelo grupo Women Wage Peace, com sede em Israel, e pela rede Women of the Sun, com sede em territórios palestinos. Tanto a Women Wage Peace quanto a Women of the Sun foram fundadas após a Guerra de Gaza de 2014. Ao fim do encontro, as ativistas presentes fizeram um apelo conjunto a líderes políticos e pediram medidas capazes de dissipar as tensões no território. Infelizmente, não foram escutadas.
Fica pior. Tragicamente, a ativista canadense-israelense Vivian Silver, fundadora da Women Wage Peace, está entre os israelenses supostamente sequestrados ou assassinados no ataque do Hamas. De acordo com a revista Time, seu filho Yonatan lhe enviou uma mensagem no fatídico dia 7 de outubro desde Tel Aviv que dizia “estou com você”. Silver respondeu “eu te sinto aqui”. Família e companheiras de luta não souberam mais notícias de Silver desde então.
Após o ataque do Hamas, a Women Wage Peace publicou em suas redes sociais a imagem de uma pomba ensanguentada. Uma semana depois, o grupo emitiu uma declaração sobre a rápida escalada de violência em Gaza que dizia, numa tradução livre, que “toda mãe, judia e árabe, dá à luz seus filhos para vê-los crescer e florescer, e não para enterrá-los”. O comunicado dizia ainda: “é por isso que, ainda hoje, no meio da dor e do sentimento de que a crença na paz entrou em colapso, estendemos a mão em paz às mães de Gaza e da Cisjordânia”. Mesmo diante do fracasso de seus muitos esforços pela paz e diante da incerteza sobre o paradeiro e o estado de uma de suas fundadoras, a Women Wage Peace emitiu uma declaração marcada pela solidariedade e pela sororidade. Uma declaração emblemática do poder e da determinação do feminismo.
Esses grupos não são o único exemplo de ação coletiva feminina e feminista na região. O coletivo Women in Black, por exemplo, nasceu em 1988 e reúne milhares de mulheres pacifistas com trajetórias relevantes. Elas são conhecidas por organizar vigílias e são uma força importante. Em 2001, o grupo foi nomeado para o Nobel da Paz. A politóloga Siobhan Byrne, em artigo recente para o The Conversation, contou a história do Women in Black e listou outras articulações feministas de igual expressão. São muitos os exemplos de mulheres pacifistas cujo trabalho é invisibilizado quando a guerra eclode e cuja contribuição não é comemorada quando ela termina.
Em seu aclamado livro “A guerra não tem rosto de mulher”, a escritora Nobel de Literatura de origem ucraniana Svetlana Aleksiévitch reúne relatos em primeira pessoa de soldadas soviéticas que lutaram durante a Segunda Guerra Mundial. Dentre elas, está uma maquinista cujo marido vai servir o Exército deixando-a sozinha com o filho pequeno. O mesmo se passa com suas primas e vizinhas. O filho único da maquinista um dia lhe pergunta: mamãe, o que é papai? A criança não se lembrava do pai, jamais o viu novamente. Não compreendia sequer o que a ideia de pai significava. A maquinista segue seu relato: “Eu moro com a família do meu filho. (...) Não quero me separar do meu filho, dos meus netos. Tenho medo de me separar deles por um dia. Meu filho também não sai de perto de mim. Logo vai fazer 25 anos que trabalha e nunca viajou um dia sequer. (...) Quem esteve na guerra sabe o que é se separar por um dia. Só por um dia”.
Não é fácil ser mulher nem cá nem lá. Nem antes nem agora. Temos que lutar para que seja bom ser mulher lá na frente.
Mulheres brigam pela garantia de direitos e liberdade em tempos de paz. Brigam pela paz, pelo bem-estar dos seus e pelo bem-viver de todo mundo quando a guerra eclode. Quando a paz é restaurada, esse loop se repete. E se repete. E se repete. Cynthia Enloe, Svetlana Aleksiévitch, a maquinista Maria Aleksandovna Árestova e Vivian Silver devem aguçar nossa curiosidade. A curiosidade, em especial a curiosidade feminina que nos faz feministas, é disruptiva. Revolucionária. É o motor de um projeto de libertação amplo. É a física que pode nos levar a outro mundo. Mulheres que, ao dividir conosco suas experiências e seus trabalhos, ampliam nosso entendimento de quem somos e do que podemos ser.
Manoela Miklos é internacionalista, mestre e doutora em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/10/22/Mam%C3%A3e-o-que-%C3%A9-papai-Sobre-feminismo-e-guerra?posicao-home-esquerda=3&utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes
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