sábado, 7 de outubro de 2023

A “escuridão brilhante” de Jon Fosse, Prémio Nobel de Literatura 2023

 PorLuís Ricardo Duarte

Foto: DR

Autor de uma das obras "mais marcantes numa direção ideal”, a Academia Sueca acaba de distinguir Jon Fosse com o Prémio Nobel de Literatura de 2023. Em janeiro, falámos com o autor de “Septologia”, o seu monumental romance de 1300 páginas, que está a ser publicado em Portugal pela Cavalo de Ferro

Duas linhas, uma roxa, outra castanha, cruzadas mais ou menos a meio do quadro. Linhas pintadas devagar, com uma tinta a óleo que começa a percorrer a tela e a criar os seus próprios efeitos. Encerrados os gestos, um pintor olha para a sua criação. Demora-se no que fez, atento aos detalhes e às texturas, ao que é mais sugerido do que concretizado. Nesse processo, dá início a uma longa viagem pela sua própria vida (tão semelhante à de um qualquer ser humano), pela essência da arte e do divino, sem se esquecer dos muitos atropelos do quotidiano. Assim se apresenta O Outro Nome, as duas primeiras partes do monumental romance Septologia, de Jon Fosse, que a Cavalo de Ferro começou a publicar em Portugal.

Se o teatro já havia consagrado o escritor norueguês como uma das vozes mais singulares da literatura europeia das últimas décadas, este seu novo projeto literário reforçou esse estatuto, com elogios da crítica e inúmeros prémios. Na Noruega, o Rei Harald V atribuiu-lhe o usufruto de uma residência junto ao Palácio Real, uma das maiores honras concedidas a um artista do seu país. Na Escandinávia, já recebeu os principais galardões literários. E nos universos das línguas inglesa, francesa ou alemã, as traduções dos seus livros começam a destacar-se.

Na sua “prosa lenta”, como Jon Fosse gosta de lhe chamar, O Outro Nome desafia a velocidade de alguma ficção contemporânea. Aos chamados “page turners”, que alimentam thrillers de todos os géneros e feitios, contrapõe o compasso, a espera e a repetição, ao jeito das grandes sinfonias da música clássica. No centro, a voz interior de Asle, pintor abandonado à sua solidão. Uma voz que, mais tarde, se desdobra num outro Asle, que o leitor nunca saberá realmente (pelo menos nestes dois volumes iniciais) se é o mesmo, uma projeção ou uma duplicação. Este segundo Asle também é pintor e viúvo, mas com um problema de alcoolismo já abandonado pelo primeiro.

 

Escrevo como quem está a ouvir e a compor música, no sentido em que uma nota pede outra, uma frase abre caminho à seguinte

Jon Fosse

Para quem conhece o teatro de Jon Fosse, largamente representado em Portugal, ou as suas novelas anteriores, algumas já publicadas pela Cavalo de Ferro (como Manhã e Noite e Trilogia), este será um reencontro com uma prosa que deve muito à poesia, uma narrativa que se faz sobretudo através da afirmação do esplendor da voz íntima das personagens. Para quem o descobre pela primeira vez, a leitura de O Outro Nome será certamente o confronto com um romance que desafia o leitor, que o embala e confunde, num encantamento que tem tanto de poético quanto de musical.

É, aliás, à música que Jon Fosse, 63 anos, recorre para descrever à VISÃO as duas primeiras parte de Septologia. Não gosta, nem se sente capaz, de falar sobre o que escreveu. Nem vê a arte como uma mimetização da vida ou uma construção muito pensada. O seu primado é o da escuta. Não faz planos, nem aceita decisões prévias. “Escrevo como quem está a ouvir e a compor música, no sentido em que uma nota pede outra, uma frase abre caminho à seguinte”, afirma. “E não é necessariamente ouvir qualquer coisa que está em mim, mas sim lá fora, no mundo, à minha volta, por descobrir. Se o dia corre bem, a certa altura sinto que o que estou a escrever já estava escrito. Apenas tenho de o fixar o mais rapidamente possível.”

Os protagonistas de O Outro Nome são pintores porque Jon Fosse procurava um artista, alguém que se confrontasse, como ele, com o ato criativo. Se, no início, tinha alguma ideia vaga sobre o que queria escrever, era apenas essa. Um criador. Mas essa escolha também se pode explicar pela sua paixão antiga pela pintura, nomeadamente a pintura a óleo. Em jovem, na sua demanda por uma vocação, que soube desde cedo que estaria ligada às artes, pintou intensamente, hábito que hoje tenta recuperar.

O peso da dramaturgia

 

Foto: Getty Images

Com o tempo, no entanto, a escrita e a literatura ganharam protagonismo e resolveram a sua indecisão adolescente, que também passou pela música. Tornou-se, depois, um dramaturgo de enorme sucesso, com peças atrás de peças, encomendas atrás de encomendas, produções um pouco por todo o mundo. “Tenho amigos em imensos países e isso devo-o ao teatro”, garante. Em Portugal, lembra a sua relação com os Artistas Unidos (AU) e com Jorge Silva Melo, que começou a encená-lo em 2000, com Vai Vir Alguém, a que se seguiram, entre outros espetáculos, O Senhor Outono, A Noite Canta os Seus Cantos, Inverno ou Lilás. A mesma companhia apresentou, no passado dia 24, em versão radiofónica, na Antena 2 (ainda disponível na RTP Play), Vento Forte; e prepara, para 14 de março, no Teatro da Politécnica, em Lisboa, a estreia de Foi Assim, dois textos agora publicados na coleção Livrinhos de Teatro dos AU e da Snob Editora. “Tenho uma relação muito forte com Lisboa e muito boas memórias do Jorge”, assegura.

Mas, a certa altura, o teatro tornou-se um fardo. Não por ter encontrado uma fórmula que se repetia, mas porque sentiu que dominava o processo. Também acusou a vertigem que escrever uma peça implicava, nomeadamente pelos prazos apertados. “Sentia-me muito cansado. Na última peça que escrevi, vi-me literalmente a arrancar as palavras do meu corpo”, garante. Surgiu então a vontade de regressar à raiz do seu percurso literário.

Nascido em 1959, em Haugesund, no Norte da Noruega, Jon Fosse cresceu sob o jugo dos elementos da Natureza – o mar, o vento, as montanhas, a luz ou a falta dela. Uma queda aos sete anos, que o levou ao hospital, confrontou-o pela primeira vez com a ideia de morte, que percorre muitos dos seus livros, incluindo Septologia. Talvez aí tenha encontrado a sua vocação artística e semeado um certo misticismo que envolve a sua ligação à escrita.

Sei alguma coisa sobre alcoolismo, a criação, os ciclos da vida. Mas é preciso fazer uso da imaginação para poder transformar as nossas vivências num discurso literário universal

Jon Fosse

Formou-se em Literatura Comparada na Universidade de Bergen e publicou o seu primeiro livro em 1983, Vermelho, Preto, escrito em Nynorsk, uma das duas variantes do norueguês (a minoritária). “Não quero que esse livro seja traduzido para nenhuma língua”, diz, entre sorrisos. Mas foi um marco no seu percurso, o início de uma série de romances e novelas que o notabilizou no seu país. Também experimentou a poesia, a partir de 1986. O Teatro só se afirmaria na década seguinte, com Alguém vai Chegar, encenado pela primeira vez em 1996.

Regressar à prosa significava, para Jon Fosse, conceder-lhe tempo, até para as narrativas mais pequenas. Na verdade, afastar-se da dramaturgia, aprendendo a recusar os muitos convites que recebia, também representou outra mudança na sua vida: deixar os hábitos boémios que sempre cultivou, às vezes para lá do limite. “Houve períodos em que bebi excessivamente, andava de viagem em viagem, de festival em festival…”, recorda. Com a ideia de mudança na cabeça, chegou a internar-se numa clínica para abandonar o vício. A sua conversão ao catolicismo data desta altura, por volta dos anos 2012, 2013. Divorciado, encontrou, no decorrer deste processo, a sua segunda mulher. Fez-se outro.

Um novo abrigo

As 1300 páginas de Septologia começaram aí, na afirmação da lentidão, que emprestava aos seus dias outra velocidade. Claro que antes houve um período de silêncio, três ou quatro anos em que não foi capaz de escrever uma linha. Mas, a certa altura, um convite para uma residência literária num castelo francês chegou no momento apropriado. Passou a acordar ainda de madrugada (“deito-me muito cedo desde que deixei o uísque”) para escrever até às 9 da manhã.

Se a vida recatada o ajudou a ter uma nova disponibilidade para a escrita, socorreu-se também da sua enorme experiência. Dessa forma, conseguiu converter uma dramaturgia frenética num murmúrio que se prolonga pelos dias e pelas páginas. “Senti-me seguro nesse lugar dentro de mim em que me recolhi”, afirma. “Tornou-se o meu abrigo, e é a partir dele que continuo a escrever, como se voltasse a ser o jovem de 20 anos cheio de possibilidades que outrora fui. Cada vez mais, escrever é escapar-me de mim, das minhas circunstâncias, e partir em busca de qualquer coisa que me supere, que seja maior do que a vida.”

Ainda assim, há nos dois pintores de O Outro Nome muito da sua vida, não no sentido estritamente autobiográfico, mas das vivências que acumulou. “Essa também é a matéria da escrita. Sei alguma coisa sobre alcoolismo, a criação, os ciclos da vida. Mas é preciso fazer uso da imaginação para poder transformar as nossas vivências num discurso literário universal.”

Para Jon Fosse, escrever é uma outra forma de conhecimento, como a filosofia, o que talvez explique a inclusão de várias passagens ensaísticas em Septologia. Foi a primeira vez que o fez. Tem várias recolhas de ensaios, mas nunca os tinha fundido com o romance. Nas rememorações dos dois Alse emerge uma toada reflexiva que, no entanto, nunca assume a roupagem académica. São pensamentos, notas e apontamentos de quem vive mergulhado, como o próprio Jon Fosse, numa “escuridão brilhante.”

O pintor duplicado

É quando surge um novo pintor, em tudo igual ao que conhecemos nas primeiras páginas, que O Outro Nome (Cavalo de Ferro, 320 págs., €20,45) se multiplica em significados. Não é apenas uma duplicação (aqui também se joga com a longuíssima tradição literária do tema do duplo), mas também uma sobreposição de experiências. Entramos, assim, no campo da variação, tão da natureza da música clássica, universo a que este romance também almeja. No fluxo de pensamentos das personagens, descobrimos o que há de partilhável numa vida comum (ou artística) e as pequenas diferenças que mudam o rumo de uma existência (ou de um quadro). Mesmo equacionando a hipótese de estarmos perante projeções (nunca saberemos se são uma e a mesma pessoa), é sempre uma reflexão – poderosa, cativante, labiríntica – sobre o que se é, podia ter sido ou se espera ser. Como em La Reproduction Interdite, famoso quadro de Magritte, a pintura (ou o romance) só nos devolve o que o espelho não mostra.

Fonte: https://visao.pt/visaose7e/livros-e-discos/2023-10-05-a-escuridao-brilhante-de-jon-fosse/?utm_term=VIS%3F%3F%3F%3FO+PLUS%3A+Videos%2C+podcasts%2C+fotogalerias.+O+melhor+da+nossa+semana+multimedia&utm_campaign=Sites+Trust+In+News&utm_source=e-goi&utm_medium=email

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