Miguel Oliveira Panão*
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No dia 29 de Agosto de 1952, o pianista David Tudor diante de uma pequena e selectiva plateia do Maverick Concert Hall na floresta próxima de Woodstock no estado americano de Nova Iorque, sentou-se e “tocou” a nova peça do famoso pianista John Cage intitulada 4’33”. Do bolso tira um cronómetro, fecha a tampa do piano e sentou-se quieto por 33 segundos. Depois, abriu e fechou de novo a tampa e ficou sentado por mais 2 minutos e 40 segundos. De vez em quando virava uma página da pauta musical da peça. Por fim, repetiu o processo de abertura e fecho da tampa, esperando, sentado por mais 1 minuto e 20 segundos. Ao fim dos 4’33” levantou-se, fez uma vénia enquanto alguns aplaudiam por conveniência e saiu do palco. O que se passou?
A peça 4’33” mostra o génio controverso de John Cage, capaz de chocar ou deslumbrar audiências com peças musicais disruptivas como esta. Muitos ficaram profundamente consternados com a ousadia, mas Cage explicou que as pessoas não compreenderam — «Não existe algo como o silêncio. O que eles pensavam ser silêncio, porque não sabiam como ouvir, estava cheio de sons acidentais. Podia-se ouvir o vento agitando-se lá fora durante o primeiro movimento. Durante o segundo, gotas de chuva começaram a marcar o telhado, e durante o terceiro, as próprias pessoas produziram todo tipo de sons interessantes enquanto conversavam ou saíam.» — Sem que as pessoas se dessem conta, Cage convidava-as a deixarem que a sua vida fosse pautada pelas melodias naturais que se escondem naquilo que nos parece ser o silêncio. Não pretendia chocar ninguém, mas explorar a natureza do silêncio, a sua intencionalidade, a escuta e desafiar a nossa capacidade de oferecer essa “melodia” aos outros.
A influencer do TikTok madymaio, desafiada pelo seu namorado a fazer uma caminhada silenciosa de 30 minutos, partilha num curto video de pouco menos de dois minutos, o essencial dessa experiência: desespero nos primeiros 2 minutos; e depois um momento de incrível clareza quando se dá conta de começar a “ouvir” os seus próprios pensamentos. O que ela descobre não é novo, mas demonstra, uma vez mais, que dar espaço ao silêncio acaba por levar à experiência de uma pessoa deixar-se pautar pela melodia de sons naturais que se entrelaçam com as nossas ideias, clarificando-as; com os nossos problemas, solucionando-os; e com as nossas angústias, pacificando-as.
O silêncio canta dentro de nós com uma voz interior que ao longo da vida aprendemos a escutar cada vez mais e melhor. Quando Jesus se retirou para o deserto, ou escuta as acusações durante o percurso da paixão, fez silêncio. Era um silêncio que continha um tipo de linguagem que nos convida mais a escutar do que a falar. Mas a vida no século XXI parece ter esquecido esta linguagem.
Nos debates, por exemplo, todas as pessoas referem o que alguém disse, mas ninguém pensa como o verdadeiro debate acontece dentro de cada um quando se silencia e nada diz. Dentro, o ruído da própria voz procura sobressair-se à necessidade de abrir espaço à voz do outro. Porém, quem consegue fazer uma pausa antes de responder dá espaço para que as ideias respirem e ressoem dentro de nós. A impressão que tenho é a de que o ritmo actual de consumo de informação retira-nos a oportunidade de sermos pautados pelo silêncio.
O silêncio não é como se pensa, habitualmente, a ausência de qualquer som, mas a falta de silêncio parece corresponder à ausência da liberdade interior de escutar aquilo que o espaço à nossa volta nos proporciona. A ditadura dos ecrãs, das interrupções ou contínuas distracções, são os empecilhos hodiernos à escuta do mundo real onde nos podemos humanizar através do profundo escutar.
Quando David Tudor “tocou” a peça de Cage dos 4’33”, ele partilha ter sido — «uma das experiências de escuta mais intensas que podemos ter.» — Deixar-se pautar pelo silêncio leva-nos a re-imaginar a música contida nos sons mais quotidianos. Essa era a experiência musical que Cage queria proporcionar sem explicação para ver se as pessoas conseguiam chegar lá por si mesmas. Essa foi, talvez, a sua ingenuidade porque num mundo ruidoso de informação, opinião e conhecimento sem compreensão, a superficialidade ensurdece. É preciso caminhar em silêncio com as pessoas, deixando-as falar tudo até nada mais terem para dizer. E quando se calarem, em vez de falarmos, poderíamos manter o silêncio das palavras pronunciadas para dar espaço às que emergem interiormente no coração do outro. Talvez digam o que raramente somos capazes de dizer: o que o outro precisa realmente de ouvir.
* Miguel R. Oliveira Panão é Professor Auxiliar da Universidade de Coimbra, no Departamento de Engenharia Mecânica de fevereiro de 2014. É licenciado (2002) e doutorado (2008) em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa. tem desenvolvido trabalho no âmbito do pensamento filosófico associado à Ética Ambiental e Diálogo entre Ciência e Fé. No âmbito da Ética Ambiental, co-editou um livro intitulado “Transformar os Limites em Possibilidades”, enquadrado no projeto “Ética para Situações-Limite” do “Centro de Estudos de Filosofia” da Universidade Católica Portuguesa. Outros dos seus trabalhos foram publicados em revistas de Cristianismo e Cultura como a Brotéria, Communio e Eborensia, Nuova Umanità (italiano), assim como dois dos seus trabalhos foram publicados pela Revista Portuguesa de Filosofia.
Miguel R. Oliveira Panão é Professor Auxiliar da Universidade de Coimbra, no Departamento de Engenharia Mecânica de fevereiro de 2014. É licenciado (2002) e doutorado (2008) em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa. Desde que obteve o seu grau de doutoramento, M. Oliveira Panão publicou mais de 25 artigos de engenharia em revistas internacionais com revisão por pares e participou em numerosas conferências internacionais, tendo em 2011 co-organizado uma na área da atomização de líquidos e sprays. Em 2008 recebe o Prémio de Melhor Jovem Investigador em Engenharia Mecânica na Universidade Técnica de Lisboa.
Além da sua atividade de investigação em engenharia, M. Oliveira Panão tem desenvolvido trabalho no âmbito do pensamento filosófico associado à Ética Ambiental e Diálogo entre Ciência e Fé. No âmbito da Ética Ambiental, co-editou um livro intitulado “Transformar os Limites em Possibilidades”, enquadrado no projeto “Ética para Situações-Limite” do “Centro de Estudos de Filosofia” da Universidade Católica Portuguesa. Outros dos seus trabalhos foram publicados em revistas de Cristianismo e Cultura como a Brotéria, Communio e Eborensia, Nuova Umanità (italiano), assim como dois dos seus trabalhos foram publicados pela Revista Portuguesa de Filosofia.
É membro da comissão central da iniciativa cultural internacional “EcoOne” dedicada ao desenvolvimento do pensamento filosófico e teológico da relação entre o ser humano e o mundo natural.
Fonte: https://diocese-aveiro.pt/cultura/modos-de-interacao-entre-ciencia-e-religiao-p-pautado-pautado-pelo-silencio/
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