Por Thomas Friedman*
Soldados israelenses ao lado de corpos mortos por terroristas do Hamas no kibutz Kfar Azza. Foto: AP Photo/Ohad ZwigenbergAinda que operação possa ter sido planejada pelos líderes do Hamas meses atrás, origens emocionais do conflito podem ser explicadas por uma foto
Eu cubro este conflito há quase 50 anos e já vi israelenses e palestinos fazerem muitas coisas horríveis uns com os outros: palestinos suicidas explodindo discotecas e ônibus israelenses; caças de combate de Israel atacando bairros habitados por combatentes do Hamas em Gaza mas provocando também mortes massivas de civis. Mas eu nunca vi algo como o que aconteceu no fim de semana passado: combatentes do Hamas cercando homens, mulheres e crianças israelenses, olhando-os nos olhos, assassinando-os a tiros e, em um caso, desfilando com uma mulher nua em Gaza, berrando “Allahu akbar”.
A última vez que testemunhei esse nível de barbarismo cara a cara foi num massacre de palestinos — homens, mulheres e crianças — praticado por milicianos cristãos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, em Beirute, em 1982, onde a primeira vítima com que me deparei foi um idoso, de barba branca, com um buraco de bala na têmpora.
Ainda que não me iluda de nenhuma maneira em relação ao compromisso estabelecido há muito pelo Hamas de destruir o Estado judaico, hoje eu pergunto a mim mesmo: de onde vem esse impulso à la Estado Islâmico pelo assassínio em massa enquanto objetivo primário? Não conquistar território, simplesmente assassinar. Há algo novo aqui que é importante entender.
Já que não posso entrevistar a liderança do Hamas, me baseando em minha experiência na região eu vejo a coisa da seguinte forma:
Ainda que essa operação certamente tenha sido planejada pelos líderes do Hamas meses atrás, eu acho que suas origens emocionais podem ser explicadas em parte por uma fotografia que apareceu na imprensa israelense em 3 de outubro. Alguns ministros do governo israelense tinham ido a Riad, Arábia Saudita, em visita oficial inaugural, comparecer a conferências internacionais entre o fim de setembro e o início de outubro, e a viagem recebeu ampla cobertura da imprensa de Israel.
Mas, depois de ter vivido em Beirute e Jerusalém, eu fiquei atônito com uma foto incomum — uma imagem que, eu bem sabia, desencadearia reações emocionais distintas em ambos os mundos.
A foto foi tirada pela equipe do ministro das Comunicações de Israel, Shlomo Karhi, que tinha viajado a Riad para comparecer a uma conferência da União Postal Universal, da ONU, enquanto a comitiva israelense conduzia um serviço religioso em seu quarto de hotel, em celebração ao feriado judaico de Sucot. Um dos assessores tirou foto de um colega usando o tradicional xale judaico de reza e quipá, com um rolo da Torá nas mãos, e a vista de Riad ao fundo.
Para judeus israelenses, essa foto é um sonho tornado realidade — a expressão definitiva de finalmente terem sido aceitos no Oriente Médio mais de um século depois do início do movimento sionista no sentido da construção de um Estado democrático moderno na pátria bíblica do povo judeu. Poder rezar com uma Torá dentro da Arábia Saudita, onde nasceu o Islã e lar das duas cidades mais sagradas do islamismo, Meca e Medina, é um nível de aceitação que toca a alma de todo judeu israelense.
Mas essa mesma foto detona uma fúria poderosa e emocional em muitos palestinos, principalmente os afiliados a entidades islamistas como a Irmandade Muçulmana, o Hamas e a Jihad Islâmica da Palestina. Para eles, essa foto é a expressão absoluta do objetivo supremo do primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu: provar para todos os que não acreditam, realmente esfregar esfregar na cara de todos, o fato de que ele é capaz de alcançar a paz com os Estados árabes — até mesmo a Arábia Saudita — sem ter de ceder aos palestinos nem sequer um centímetro.
Tratando-se de diplomacia, a missão da vida de Netanyahu tem sido provar a todos que Israel pode ter sua fatia do bolo — a aceitação de todos os Estados árabes de seu entorno — e ao mesmo tempo devorar o território dos palestinos.
Eu não tenho ideia se a liderança do Hamas viu ou não essa foto em particular, mas eles têm estado plenamente conscientes da evolução em andamento que a imagem reflete. Eu acredito que uma razão para o Hamas não apenas ter lançado seu ataque neste momento mas também ter ordenado que a ação fosse a mais mortífera possível foi provocar uma reação exagerada de Israel, como uma invasão à Faixa de Gaza, que ocasione baixas massivas entre os palestinos que façam a Arábia Saudita a recuar do acordo intermediado pelos Estados Unidos atualmente em discussão para promover a normalização entre Riad e o Estado judaico — assim como para forçar Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Marrocos, que integram os Acordos de Abraão produzidos pelo governo Trump, a se afastar de Israel.
A essência da mensagem do Hamas para Netanyahu e sua coalizão de governo de judeus supremacistas e ultraortodoxos é a seguinte: vocês nunca estarão em sua casa por aqui, não importa quanto de nossa terra nossos irmãos árabes do Golfo lhes venda; nós vamos forçá-los a perder a cabeça e fazer coisas tão doidas com Gaza que forçarão os Estados árabes a se afastar de vocês.
Prestem atenção: o Hamas não mandou operadores atacar assentamentos judaicos na Cisjordânia sob ocupação israelense (e há muitos por lá), preferiu focar sua matança em localidades israelenses e kibbutzim fora do território ocupado.
“Eram os lares dos habitantes de Israel pré-1967, um país democrático e progressista — pessoas que vivem em kibbutzim e vão a festas celebrar o amor”, disse-me o escritor israelense Ari Shavit. Para o Hamas, “a mera existência de Israel é uma provocação”, afirmou ele. Em um único kibbutz, Be’eri, pelo menos 108 pessoas foram mortas a tiros, incluindo crianças.
Então como os EUA podem ajudar Israel da melhor maneira neste momento, além de posicionando-se sobre seu direito de proteger a si mesmo, conforme o presidente Joe Biden fez tão energicamente em seu discurso de hoje? Eu acho que os EUA precisam fazer três coisas.
Primeiro, eu espero que Biden esteja pedindo para Israel se fazer a seguinte pergunta enquanto planeja seu próximo passo em relação a Gaza: o que meus piores inimigos querem que eu faça e como eu posso fazer exatamente o oposto?
O que os piores inimigos dos israelenses — o Hamas e o Irã — querem é que Israel invada Gaza e se envolva em um exaspero estratégico que fará o imbróglio americano em Fallujah parecer festinha de criança. Estamos falando de combates urbanos de casa em casa que solapariam qualquer simpatia que Israel possa ter reunido na arena internacional, desviariam a atenção do mundo do regime assassino em Teerã e forçariam Israel a ampliar suas capacidades militares para ocupar perpetuamente Gaza e a Cisjordânia.
O Hamas e o Irã não querem absolutamente que Israel se abstenha de entrar em Gaza muito profundamente ou permanentemente.
E o Hamas também não quer que EUA e Israel sigam adiante, em vez disso, com as negociações para normalizar as relações dos israelenses com a Arábia Saudita como parte de um acordo que também exigiria de Israel abrir concessões reais para a Autoridade Palestina na Cisjordânia, que aceitou Israel como parte dos Acordos de Oslo.
Mas para Israel atender aos seus maiores interesses, não do Hamas e do Irã, provavelmente será necessário um amor bem rude entre Biden e Netanyahu. Nós não devemos nos esquecer de que Netanyahu sempre pareceu preferir lidar com o Hamas, um grupo persistentemente mais hostil a Israel do que seu rival palestino, a Autoridade Palestina — que Netanyahu fez tudo o que pôde para desacreditar, mesmo que a entidade trabalhe há muito tempo proximamente com os serviços de segurança israelenses para manter a Cisjordânia quieta; e Netanyahu sabe disso.
Netanyahu nunca quis que o mundo acreditasse que existem “palestinos bons”, dispostos a viver lado a lado com Israel, em paz, e tentasse encorajá-los. Por anos, ele sempre quis dizer aos presidentes americanos, “O que você quer que eu faça? Eu não tenho ninguém para dialogar no lado palestino”.
Foi assim que Israel chegou a um estágio em que a crescentemente custosa — moralmente e financeiramente — ocupação israelense da Cisjordânia não figurou no debate das últimas cinco eleições israelenses.
Ou, conforme o ex-subconselheiro de segurança nacional de Israel Chuck Freilich escreveu em um ensaio publicado pelo jornal Haaretz no domingo: “Por uma década e meia, o primeiro-ministro Netanyahu buscou institucionalizar a divisão entre Cisjordânia e Gaza, minar a Autoridade Palestina (AP) e conduzir uma cooperação de fato com o Hamas, tudo projetado para demonstrar a ausência de um parceiro palestino e garantir que não pudesse haver nenhum processo de paz que requeresse abrir mão de território na Cisjordânia”.
Finalmente, eu espero que Biden esteja dizendo a Netanyahu que os EUA farão de tudo ao seu alcance para ajudar a democracia de Israel a se defender dos fascistas teocráticos do Hamas — e de seus irmãos de alma do Hezbollah, no Líbano, caso eles entrem na briga.
Mas o lado de Netanyahu na barganha é ele ter de se reconectar com o Estado de Israel progressista e democrático, para que o mundo e a região vejam que esta guerra não é religiosa, mas uma guerra entre defensores da democracia e a vanguarda da teocracia. Isso significa que Netanyahu tem que mudar seu gabinete, expulsar os extremistas religiosos e criar um governo de unidade nacional com Benny Gantz e Yair Lapid.
Infelizmente, Netanyahu ainda está priorizando sua coalizão de extremistas, que ele precisa para se proteger de seu indiciamento por corrupção e completar seu golpe no Judiciário para furtar poderes da Suprema Corte de Israel. É realmente perturbador.
E esta é uma razão muito importante para Israel ter sido pego de guarda baixa, em primeiro lugar. Netanyahu, tão comprometido com sua agenda pessoal, estava pronto a dividir a sociedade israelense como nunca na história — e fragmentar suas próprias Forças Armadas no processo — para assumir o controle dos tribunais.
Eu lhes prometo que, se houver ou quando houver uma investigação sobre por que o Exército israelense não detectou absolutamente esse fortalecimento do Hamas, os investigadores descobrirão que os comandantes militares israelense tiveram de gastar tanto tempo simplesmente evitando que pilotos da Força Aérea e oficiais reservistas boicotassem seu serviço para protestar contra o golpe de Netanyahu no Judiciário — sem mencionar o tempo, a atenção e os recursos que tiveram de dedicar para evitar que colonos extremistas e fanáticos religiosos fizessem loucuras em Jerusalém e na Cisjordânia — que eles tiraram o olho da bola.
Washington só poderá proteger Israel a longo prazo das ameaças muito reais que os israelenses enfrentam se o país tiver um governo que reflita o melhor, não o pior, de sua sociedade e se esse governo estiver disposto a tentar forjar acordos de concessões com o melhor, não o pior, da sociedade palestina.
/TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO.
* Jornalista estadunidense, atualmente editorialista do jornal The New York Times. Suas colunas, concentradas principalmente no tema relações internacionais, são publicadas nas quartas e sextas.
Fonte: https://www.estadao.com.br/internacional/nunca-vi-nada-parecido-com-o-que-o-hamas-fez-em-israel-leia-artigo-de-thomas-friedman/
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