Anselmo Borges*
1.
Quando a Igreja aparece nos meios de comunicação social e mesmo no
linguajar habitual, a referência é a Igreja enquanto instituição de
poder e a hierarquia: Papa, cardeais, bispos, monsenhores, cónegos,
padres... O que pensa a Igreja sobre isto ou aquilo? Esta pergunta está,
em princípio, referida à hierarquia: o que pensam a Cúria Romana, os
cardeais, os bispos, os padres?...
No
entanto, a palavra Igreja/Igrejas apareceu no início do cristianismo
para designar a comunidade/comunidades de cristãos e cristãs,
baptizados, discípulos de Jesus, que acreditavam no Evangelho, notícia
boa e felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, nunca, nem na morte, nos
abandona, e todos os homens e mulheres são seus filhos, devendo, por
isso, ser tratados como irmãos.
Evidentemente,
aumentando o número, teve de haver coordenadores das comunidades —
bispos, presbíteros, diáconos. Mas eram servidores — Jesus tinha dito
que Ele veio “para servir, não para ser servido” — e não senhores. Foi
numa história longa e complexa que foi surgindo a Igreja como
instituição de poder, luxo e esplendor, com a hierarquia de um lado e
os fiéis do outro, aqueles com todo o poder, os que mandam, e estes como
os que obedecem. Uma observação: Não se viu no fim de semana passado,
televisões, por exemplo, a exultar com o esplendor de barretes
cardinalícios e mitras? Jesus, porém, tinha apelado à simplicidade e
disse: “sois todos irmãos”.
2.
Poucos dias depois da sua eleição, estive na televisão e disse que
Francisco era um cristão, um Papa cristão, e esta era a sua novidade e
revolução. Parece-me que esta minha perspectiva se vem confirmando cada
vez mais, e a sua confirmação decisiva é a convocação do Sínodo sobre a
sinodalidade, cuja primeira sessão se iniciou no passado dia 4, indo até
ao dia 29, seguindo-se a segunda sessão em 2024.
Francisco
tem sublinhado que o único modo de ser da Igreja no século XXI só pode
ser este: “o sinodal”. Que se entende por sinodal? Trata-se de uma
palavra de origem grega e significa caminhar juntos. De facto, se, pelo
baptismo, somos todos membros da Igreja, então todos devem participar,
pois o que é de todos por todos deve ser decidido e assumido.
O
documento apresentado para o debate nesta sessão é ele próprio sinodal.
De facto, é o resultado de todo um processo. Começou em 2021 nas
dioceses de todo o mundo e todos os católicos foram convocados a
pronunciar-se, daí resultando documentos das conferências episcopais.
Houve um segundo momento: foram convocadas as assembleias continentais, e
surgiram os respectivos textos finais. E aí está o texto final, o
“instrumento de trabalho” para o Sínodo, onde se sublinha “o apelo claro
a superar uma visão que reserva só para os ministros ordenados (bispos,
presbíteros, diáconos) toda a função activa na Igreja, reduzindo a
participação dos baptizados a uma colaboração subordinada”, e se advoga
“uma concepção ministerial da Igreja no seu conjunto”, com o
reconhecimento da “dignidade baptismal” como eixo de toda a participação
na Igreja.
Trata-se
de um documento com muitas perguntas, algumas verdadeiramente
revolucionárias, pois colocam a Igreja perante uma autêntica revolução,
revolução que começa logo por, pela primeira vez, um Sínodo dos Bispos
contar com padres, religiosos e religiosas e leigos, homens e mulheres,
com direito a voz e voto. Exemplos:
“Que
medidas concretas são necessárias para chegar às pessoas que se sentem
excluídas da Igreja por causa da afectividade e sexualidade (por
exemplo, divorciados recasados, pessoas LGBTQ+, etc.)?” Aqui, permito-me
confessar que, assumindo toda a responsabilidade naquela situação
concreta, não hesitei em dar, numa celebração adequada, uma bênção a um
casal de lésbicas.
Face
à tragédia brutal da pedofilia, vem ao debate a urgência de criar “uma
cultura de prevenção de todo o tipo de abusos”, e a pergunta: Não deverá
haver também na Igreja “separação de poderes, órgãos de supervisão
independentes?”.
“A
maior parte das Assembleias continentais e as sínteses de numerosas
Conferências episcopais pedem que se considere de novo a questão do
acesso das mulheres ao diaconado. É possível colocar a questão e de que
modo?”. Aqui, pergunto eu como foi possível ignorar a pergunta pela
ordenação presbiteral e episcopal das mulheres. Um escândalo.
No
contexto dos ministérios ordenados, é inevitável a pergunta pelo
celibato opcional e pela ordenação de homens casados. Mais: “É possível
que, sobretudo em lugares onde o número de ministros ordenados é muito
reduzido, os leigos possam assumir o papel de responsáveis pela
comunidade? Que implicações tem isto na compreensão do ministério
ordenado?” E “como deve evoluir o papel do Bispo de Roma e o exercício
do primado numa Igreja sinodal?” Aí está uma questão essencial, quando é
necessário aprofundar a sinodalidade com as outras Igrejas cristãs, num
compromisso ecuménico renovado.
No
contexto de um mundo globalizado e da urgência do combate por um mundo
justo e em paz e de todas as questões levantadas pelas novas
tecnologias, como não convocar para “gestos de reconciliação e de paz
com outras religiões”, no aprofundamento do diálogo inter-religioso?
3.
Quando há quem clama: “Heresia!”, só se pode esperar que Francisco se
mantenha em funções até 2025 para estabelecer o “documento final” do
Sínodo que não permita voltar atrás.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 7 de outubro de 2023
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-revolucao-da-igreja-e-na-igreja-1562403
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