Por Maria da Paz Trefaut — Para o Valor, de São Paulo
Wilson Rosa Júnior e Cristiano Carlos da Silva com os filhos biológicos Ian e Gael gestados em barriga solidária de prima — Foto: Gabriel Reis/Valor
Depois de complexos processos de fertilização e adoção, casais homossexuais com filhos compartilham vivências para educar e enfrentar incompreensões e preconceitos que ainda existem, apesar de iniciativas mais inclusivas
No primeiro domingo de cada mês, às 9h, o grupo Rainball tem um encontro marcado. Os participantes, cerca de cem famílias, são casais homoafetivos e seus filhos. Renata Galindo e sua mulher, Caru Ramos, sempre vão. Elas estão juntas há oito anos, são casadas legalmente e mães de Beatriz, de 5 anos. O evento tem lugar na Nossa Arena, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, um espaço com quadra de futebol society e quadras de areia para beach tênis, futevôlei e vôlei de praia. Enquanto os adultos jogam, as crianças brincam supervisionadas por uma monitora.
Galindo joga futebol e Ramos, beach tênis. Depois há um churrasco preparado pela organização e ao final cada família paga um valor pelo uso do espaço. As bebidas são compradas no bar. Os adultos levam apenas frutas para as crianças compartilharem. Entre os participantes, 90% são casais com duas mães, e apenas 10% com dois pais. O casal entrou no grupo Rainball, criado no WhatsApp, e passou a ir aos encontros para que Beatriz crescesse tendo amigos iguais a ela.
Com esse convívio, que já se estende há dois anos, aos poucos vão se formando minigrupos. “A gente acaba por encontrar pessoas com quem tem afinidades. E isso não acontece com todo mundo. Não é só porque sou lésbica que seria amiga de toda lésbica”, afirma Galindo.
Beatriz nunca perguntou por que não tem pai. “Damos muitos livros sobre isso, contamos histórias e, para ela, é óbvio que pode ter duas mães. A gente trafega numa classe que tem menos preconceitos. Sabemos que algumas crianças perguntaram para seus pais por que ela tem duas mães. Aí a resposta fica a critério de cada família. Às vezes, a criança nos olha com uma cara de interrogação, mas não de afronta.”
Galindo, no entanto, conhece histórias desagradáveis. “Tenho amigas que um feirante afastou da barraca de pastel com insultos: ‘Sai daqui sua sapatão! Onde já se viu ter duas mães?’ Nós nunca tivemos problemas na escola nem no condomínio onde vivemos, em Alphaville.” Ela diz perceber que, gradativamente, até a nomenclatura de exclusão está mudando. “Estão substituindo o nome ‘reunião de pais’ para ‘reunião de famílias’.”
Ramos tem uma loja de roupas femininas, e Galindo é gerente de logística de uma multinacional. Quando as duas se conheceram, imediatamente Ramos disse que queria ser mãe e avisou: “Ou vamos nessa juntas ou desce do barco”. A resposta de Galindo: “Embarquei. Conhecemos umas vizinhas que tinham feito fertilização e nos ensinaram o processo”. A gestação de Beatriz ocorreu na barriga de Ramos com óvulos de Galindo. Elas optaram pelo método Ropa (de recepção de óvulos da parceira), também conhecido como fertilização recíproca, que atribui um papel ativo às duas mulheres.
Para baratear o custo, Galindo doou metade de seus óvulos para um casal infértil que pagou pelo tratamento. “Fica-se numa fila porque a pessoa escolhe”, conta. “É um processo muito desgastante nos aspectos emocional, físico e financeiro. E bastante sofrido, porque as estatísticas jogam mais contra do que a favor. Mas demos sorte: colocamos dois embriões e a Bia veio na primeira tentativa”.
O sêmen foi adquirido no Banco de Doadores de Sêmen Nacional, que oferece menos detalhes do que os internacionais. “É uma planilha de Excel e você vai filtrando com algum critério”, explica Galindo, referindo-se a questões como raça e biotipo.
Renata Galindo (esq.), Caru Ramos e a filha Beatriz, que nunca perguntou por que não tem pai — Foto: Gabriel Reis/Valor
Formar família para casais homossexuais é muito mais fácil para as mulheres. O primeiro motivo: a gestação. Para os homens é preciso encontrar uma barriga disponível. A legislação brasileira permite apenas que a chamada “gestação de substituição” seja feita por parentes próximos. É proibido qualquer pagamento para que isso ocorra, motivo que tem levado casais masculinos ao exterior, onde a prática é autorizado, como México, Colômbia e Estados Unidos.
O Valor teve contato com alguns casais de homens que realizaram o procedimento nos EUA. Nenhum quis contar sua história, nem mesmo no anonimato. Uma das razões para esse silêncio pode ser o alto preço. Uma barriga de aluguel nos EUA custa por volta de US$ 130 mil, fato que tem feito da Ucrânia um destino preferencial de reprodução, algo que foi interrompido com o início da guerra. Ali, o procedimento custava entre R$ 30 mil e R$ 50 mil em 2019.
“Atendi vários brasileiros que foram para Kiev com a ajuda de escritórios em São Paulo que assessoram casais homossexuais”, conta o advogado Diogo Machado de Melo, professor de biodireito da Universidade Mackenzie e diretor-administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo. “Na Ucrânia a mulher normalmente usa a possibilidade da barriga de aluguel para criar um filho que já tem. O requisito oficial para servir de barriga de aluguel é ter tido pelo menos um filho.”
Machado de Melo conta que certos países, como a Itália, por exemplo, não aceitam registrar italianos nascidos em Kiev, por entender que é um turismo de procriação. “Com a Inglaterra acontece a mesma coisa”, relata. “Mas no caso do Brasil havia uma pegadinha. Como na Ucrânia é uma política de Estado, eles permitiam que a certidão de nascimento já saísse no nome dos contratantes, que, de posse dela, iam ao consulado brasileiro e a traduziam. Imediatamente, você tinha um brasileiro nascido no estrangeiro.”
No caso do registro de crianças filhas de pais homossexuais, ainda há dificuldades para isso, mas a situação evoluiu muito positivamente na última década. “Temos um sistema de registro público de 1973, um Código Civil atualizado em 2002. E é óbvio que a legislação não acompanha muitos reconhecimentos que o STF só efetivou após 2012, como o das famílias homoafetivas”, diz o advogado. “Aí, como não tínhamos legislação a respeito, foi o Conselho Federal de Medicina que começou a emitir resoluções para atender seus principais cliente. Quem eram? Casais homoafetivos.”
Esse apoio legal acabou por ser fundamental e leva Machado de Melo a concluir: “Nossa legislação não evoluiu a ponto de atender às necessidades de família dos casais homossexuais, mas, ao mesmo tempo, o regime administrativo, as resoluções do Conselho Federal de Medicina com o amparo do Conselho Nacional de Justiça [que fiscaliza os serviços de registro civil em âmbito nacional] têm atuado para suprir essa lacuna. Entendo que com muita eficácia e com muito mais facilidade do que há dez anos”.
Foi exatamente com a gestação interfamiliar que Wilson Rosa Júnior, de 32 anos, e Cristiano Carlos da Silva, de 37, conseguiram ter filhos biológicos com o sêmen de cada um inoculado numa prima que se ofereceu para ser barriga solidária. Ian e Gael nasceram prematuros, e o casal os acompanhou durante 18 dias na UTI. Silva é engenheiro de produção na indústria petroquímica e Rosa, empresário de telefonia. Estão juntos há 6 anos e os bebês têm 1 ano e 4 meses.
“O Carlos sempre quis ser pai, e eu aderi”, diz Rosa. “Agora estamos na montanha-russa de sentimentos que é a paternidade.” Eles se casaram no papel, com cerimônia e festa e jogaram o buquê. “Só não teve véu e grinalda.” A paternidade, porém, trouxe uma vivência forte de preconceitos.
Tiago Pessoa (esq.), Paulo Tardivo, Davi e Sara: filhos da mesma mãe biológica com pais diferentes — Foto: Gabriel Reis/Valor
“Acho que o preconceito ainda é velado. Moramos em Santos, uma cidade superconservadora, e isso nos traz preocupação. Se o homossexual já é discriminado, com duas crianças é mais pesado ainda. Mas a gente não entra no embate: a pessoa que olha torto vai ter como resposta um comportamento amoroso.”
Rosa acredita que as dificuldades começam com a ideia vigente de que, por serem homens, não são capazes de cuidar das crianças. “Quando um bebê chora no restaurante, sempre vem uma funcionária perguntar: ‘Você não quer me entregar o bebê para eu tentar acalmá-lo?’. É incrível, mas só porque sou homem parece que não tenho condições de cuidar do meu filho. Também já tivemos problemas com pais homofóbicos...”
O casal pretende contar tudo para os meninos à medida que crescerem. “Vamos contar desde a prima que gestou. É uma história tão bonita que não temos por que esconder”, diz Rosa. “A questão de eles terem nosso sangue é legal, mas existem tantos modelos de família... quando ela se ofereceu já íamos entrar na fila de adoção.” A ideia deles no futuro é adotar uma menina. “Ela já tem nome, Ana Clara, queremos uma mulher para bagunçar esta casa. Aqui tem muito homem.”
Para Rosa, os filhos são sinônimo de mudança e vieram para unir gerações. “Espero que Ian e Gael abram portas para muitas famílias. Eles significam tudo para nós. E para nossas mães, que nunca acreditaram que poderiam ser avós. Toda mãe recebe um baque quando sabe que o filho é gay. É preciso encarar como normal homens gays com filhos, é uma nova configuração de família.”
Para os homens, as complicações da vida social com a paternidade começam no fraldário. “Todos os fraldários estão no banheiro feminino”, queixa-se Tiago Pessoa, ator e criador de conteúdo, 42 anos. “Essa é uma das coisas absurdas que a gente continua vivendo. Quer dizer que o pai de um casal hétero não pode trocar a fralda? Isso é papel de mulher?” Pessoa é casado com Paulo Tardivo, chef de cozinha, 40 anos. Juntos adotaram Sara, de 10 anos, e Davi, de 5.
As crianças são irmãs biológicas. Eles tinham intenção apenas de adotar um filho, mas, ao chegarem ao abrigo, em Itapipoca, no Ceará, descobriram que ele tinha uma irmã e não quiseram separá-los. “Não gostamos de romantizar a adoção, mas fomos tomados por um sentimento de compaixão e decidimos adotar os dois”, conta Pessoa. “Sempre sonhei ser pai, mas, quando passei a me entender como gay, achei que colocaria meu sonho na gaveta, que aquilo não seria possível. Aí a gente se preparou para ser pai de um e vieram dois.”
Na adoção não costuma ser possível arrumar um quarto antes ou reunir um pequeno enxoval, porque nunca se sabe com antecedência a idade da criança que vai chegar. “Foi tudo dia após dia”, lembra Pessoa. “David é preto, Sara é branca, e sabemos que são da mesma mãe com pais diferentes. Mais do que isso, eles não informam.”
Pessoa afirma que seu “combo familiar” é sujeito a preconceitos. “Somos dois homens gays casados, com dois filhos nordestinos, um preto e uma mulher. Conversamos muito com eles, porque sabemos que precisam estar preparados para o que virá.”
Mariana Elisabetsky: Nós tivemos que fazer um processo com advogado para registrá-los. Hoje você vai no cartório, e é de graça” — Foto: Gabriel Reis/Valor
Apesar das dificuldades, Pessoa acredita que os filhos foram a melhor decisão que tomaram. “Dá muito trabalho, tem o caos da vida, da cidade, muito perrengue e agressões na internet, onde criamos páginas no Instagram e no TikTok para falar da dupla paternidade, mas eles compensam tudo isso e acham muito natural ter dois pais.”
Mulheres homossexuais que constituíram família percebem que há uma diferença entre a aceitação de casais masculinos e femininos.
“Nossa sociedade tem como maior ditado o princípio de que mãe só existe uma. No nosso caso, somos duas, mas aceitar uma família que não tem nenhuma mãe é quase impossível. Como pode uma criança não ter mãe? Por mais que tenha dois pais, duas figuras de cuidado”, diz Marcela Tiboni, 41 anos, escritora e influenciadora, casada com Melanie Graille, 34 anos, consultora imobiliária, mães de Bernardo e Iolanda, gêmeos de 4 anos.
Tiboni já escreveu 3 livros para contar a experiência familiar: “Mama - Um relato de maternidade homoafetiva” (2019), “Maternidades no plural” (2021) e “Desmama: Memórias de uma mãe com outra mãe” (2022). “A nossa escolha foi de que a Mel gestasse com seus próprios óvulos, e eu optei por amamentar quando as crianças nascessem”, conta ela, que produziu leite por um protocolo de indução à lactação.
“Usei muita máquina de extração de leite com acompanhamento de uma especialista em amamentação e de uma obstetra”, conta Graille. “Quando eles nasceram, eu já tinha meio litro de leite congelado. Nossa equipe médica conhecia o protocolo, mas não sabia como seriam os resultados. Fomos descobrindo. Hoje, essa mesma equipe acompanha 80 casais de mulheres lésbicas e trans pelo Brasil.”
O casal já começou a namorar pensando nesse processo. A escolha da gestação se deu em função da idade. Graille é mais nova e, portanto, tinha mais óvulos disponíveis. “Eu e a Mel fomos construindo esse lugar juntas, porque o desejo que tínhamos vinha junto com uma grande quantidade de desinformação que carregávamos”, diz Tiboni.
“Fui criada numa sociedade machista como uma menina que deveria casar e ter filhos. Quando, com 17 anos, me assumi como lésbica, a sociedade me tirou esse sonho. Porque uma mulher lésbica não poderia ter filhos e constituir família.”
Ela conta: “Vivi um momento de luto no fim da adolescência porque acreditava que uma mulher lésbica não podia ter filhos, até o momento de entender que a Cássia Eller já tinha tido filho com a Maria Eugenia, no final dos anos 2000, assim como tantos outros casais de mulheres”.
A família de Tiboni aceitou tranquilamente o fato de as crianças não terem sua genética. E, neste ano, as crianças entraram numa escola pública da zona oeste de São Paulo. É uma vivência nova com diversidade de gênero, raça e origem social. A escola tem crianças de 4 a 6 anos.
“O que a gente percebe é que a surpresa delas em saber que o Bernardo e a Iolanda têm duas mães é zero”, observa Tiboni. “É a coisa mais natural do mundo. A surpresa, muitas vezes, vem ao saberem que nós somos casadas. Muitas delas nos abordam e dizem: ‘Mas vocês são ca-sa-das? Duas mulheres casadas?’ E querem entender um pouco mais sobre essa possibilidade da qual nunca ouviram falar.”
Tiboni sempre escuta as perguntas, explica, conversa. O acolhimento tem sido muito grande: de professoras, pedagogas, diretora. Hoje ela é presidente do conselho fiscal da Associação de Pais e Mestres, faz palestras sobre gênero e sexualidade para as professoras, está dentro da escola.
“Foi uma forma que encontrei de participar desse ambiente escolar público, democrático, para que mais pessoas pudessem entender a composição da minha família e de tantas outras.”
Famílias homoafetivas são como as outras: casam e separam. A roteirista Mariana Elisabetsky não está mais com a esposa com quem vivia quando decidiu ter Mia e Gael, agora com 12 anos. Mas a outra mãe continua a ser a mãe de fato, ainda que Elisabetsky hoje tenha outra namorada bastante presente na vida dos pré-adolescentes. A guarda é compartilhada, e as crianças passam uma semana em cada casa. “Demos uma alinhada nas regras, porque sentimos que eles estavam escapando pelas frestas”, conta Elisabetsky.
Para ela, um dos privilégios de morar na zona oeste de São Paulo é ter uma experiência mais humanista, onde há mais aceitação de configurações homoparentais. “Há famílias mais conservadoras e crianças que não entendem. Os meninos têm muita prática em explicar. Outro dia a Mia falou: ‘Minha amiga não consegue entender que você não teve um namorado...’ A falta de uma figura masculina é um assunto que bateu mais recentemente na casa. Um dia desses o Gael comentou: ‘Ah, se eu tivesse um pai, ele jogaria bola, videogame...’ Acho que ele está precisando dessa figura e se apega aos pais de amigos. Eu só agradeço aos pais que ajudam e ao avô.”
A roteirista diz que, desde que teve as crianças, muita coisa melhorou. “Nós tivemos que fazer um processo com advogado para registrá-los. Hoje você vai no cartório e é de graça.” Nomenclaturas também estão mudando. Na escola, os comunicados já não chegam endereçados aos “queridos pais”. Agora se usa “aos responsáveis”.
Neste ano, Mia e Gael mudaram de escola e foram para a Camino School, uma instituição trilíngue que prega a diversidade. “Há escolas que se dizem muito liberais, mas não são”, afirma Elisabestky, pela experiência que teve.
A pedagoga da Camino, Letícia Lyle, diz que as novas famílias constituídas por pais homoafetivos são um assunto necessário, urgente, mas que ainda é um tabu. “Como pedagoga, acho que é fundamental a criança se ver reconhecida na sua raça, nas suas diferenças e na sua organização familiar.”
Ela acredita que muitas vezes as escolas têm receio de discutir esses temas para não serem acusadas de doutrinação. “Abrir espaço, incluir e dar voz para uma realidade existente é muito diferente de tentar convencer alguém de qualquer coisa”, diz Lyle. “Hoje as escolas estão com medo de enfrentar determinados temas, mas a realidade se impõe.”
Lyle acredita que é preciso separar o que se acha de uma realidade de fato. “As famílias homoafetivas são reconhecidas por lei”, diz. “Claro que há as famílias mais tradicionais que conversam ou não com essa realidade. Mas existe uma realidade. A escola não só deve acolher e aceitar famílias homossexuais e diferentes, mas, por ser um estabelecimento educacional, também deve ajudar essa convivência escolar e a naturalização de algo que é lei.”
A educadora diz não ter visto, mas saber que acontece um estranhamento de famílias tradicionais com aquelas que têm costumes diferentes. E que, em geral, isso é devido a valores religiosos ou morais com os quais determinadas famílias foram constituídas. Por isso, Lyle acredita que essa normalização faz parte de um processo histórico e que ainda vai demorar um tempo para acontecer. O que cabe aos educadores é criar, além do respeito, um espaço de convivência entre as diferenças. “Nosso desafio é como ser, efetivamente, inclusivo.”
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