14/10/1968. Policial observa manifestação do Movimento Estudantil contra a censura imposta pela ditadura militar, meses antes da aprovação do AI-5 (Ato Institucional Nº5), que concedia poderes absolutos ao presidente durante o regime militar. Foto: Acervo Estadão
Ditaduras são arbitrárias. Elas ignoram a lei, mesmo a que elas próprias criaram. Um ditador é ruim, seja de esquerda, seja de direita
Temos a ideia da ditadura como fruto de um golpe e da quebra da lei. Não era assim na origem. Os romanos previam (legalmente) a figura de um ditador em situações de calamidades. Um perigo externo grave se aproximava de Roma como as tropas cartaginesas? Institui-se um ditador! Houve epidemia? Há risco de uma guerra civil? As ditaduras romanas começaram, provavelmente, na crise da Monarquia e transição para a República, século sexto antes de Cristo. O ditador tinha poderes excepcionais relacionados à crise e, sempre, eram temporários.
No mais violento século da história, o passado, as ditaduras foram uma marca forte. Surgiram governos autoritários, repressivos das liberdades básicas (como de imprensa), apoiados em polícias secretas e em uso de recursos como tortura ou campos de concentração. Temos exemplos de ditaduras de direita, como Rafael Trujillo, na República Dominicana (ditadura de 1930 a 1961), e Augusto Pinochet, no Chile (1973-1990). Temos exemplos de ditaduras de esquerda, como Stálin (morreu em 1953) e Mao Zedong (morreu em 1976). O autoritarismo, nos dois últimos casos citados, sobreviveu à morte dos ditadores.
O que eu acho notável, ao conversar com alguns seres, é que as características formais de ditadura (arbitrariedade, execuções clandestinas de opositores, fim da liberdade de expressão, etc.) não dependem de ela ser de direita ou de esquerda. Um ditador é um ditador. Alguns duram mais; outros matam bem mais. Toda ditadura viola direitos humanos. Todo ditador é um canalha autoritário, seja ele um piedoso católico de direita (como Salazar, em Portugal), seja um ateu militante de esquerda (como Pol Pot, no Camboja).
Minha questão aqui é outra. As pessoas, em geral, ao dialogarem comigo, tratam como ditadura aquele governo que matou pessoas próximas do espectro político de quem está atacando o governo autoritário. Então, se eu sou alguém de esquerda, o ditador é aquele que reprimiu a esquerda. No Brasil? Governo Médici ou Estado Novo de Getúlio Vargas. Na Europa? General Franco na Espanha. Sobre eles, a esquerda promove análises, escreve livros, constrói monumentos em memória das vítimas. Pinta-se a Guernica. São produzidos filmes sobre os horrores da repressão.
Se eu sou de direita, atenuo as ditaduras que atacaram militantes de esquerda (como a civil-militar, no Brasil, de 1964 a 1985). É comum a pessoa conservadora dizer que foram poucos os casos de repressão e, mesmo assim, incidiram sobre quem pegou em armas. O processo de “passar o pano” pode incluir sucessos econômicos (como em certo momento da economia chilena ou da brasileira nos governos militares).
Tente demonstrar a um militante de esquerda que Cuba foi (e é) uma ditadura sob os Castros ou seus sucessores. “Ah, mas melhorou a educação e a saúde! Há uma pressão externa dos EUA.” Isso serve, na consciência do militante de esquerda, para contestar a ideia de ditadura. Faça uma crítica ao governo Médici no Brasil. O direitista dispara: “Havia milagre econômico, emprego, a segurança nas ruas era muito maior e existia uma tentativa soviética de subvencionar a luta armada no Brasil. Era uma guerra!”. Isso serve, na consciência do militante de direita, para contestar a ideia de ditadura. Sempre achei isso estranho...
Se estou sendo torturado em um quartel brasileiro em 1972, com fios elétricos na área genital, creio que não atenua minha dor pensar que, na China de Mao, o número de mortos foi bem maior do que no Brasil (e foi). Discutir o culposo ou o doloso para alguém que foi atropelado por um caminhão é um debate para os herdeiros do morto – jamais para o cadáver.
Ditaduras são arbitrárias. Elas ignoram a lei, mesmo a que elas próprias criaram. Um ditador é ruim, seja de esquerda, seja de direita. O ditador pode ser um agnóstico, como Vargas; ateu, como Stálin; católico, como Franco: todos são completamente autoritários e indiferentes ao sofrimento de quem não concordar com eles.
Uma vez, na Rússia, ouvi de uma guia que não havia criminalidade nas ruas de Moscou durante o período da URSS. Lembrei-me de pessoas que dizem assim sobre o Brasil. Aparentemente, quando eu não sou preso, a ditadura é boa. Quando ela prende quem tem espectro político oposto ao meu, ela parece ser mais justa ainda.
Celebrar ditaduras é sempre um acidente ético e mostra que meu interesse exclusivo é na integridade do meu esfíncter. Quando ele não estiver em risco, que os outros morram, urrando nos porões. Matar ditadores e pendurá-los no posto de gasolina de ponta-cabeça, como Mussolini, é mais fácil do que matar o canalha que habita em cada um. Não é fácil defender nossa velha democracia hoje, claudicante e cheia de remendos. A opção à velhice é a morte. Ditadura é a morte. Esperança? Sempre na vida e no Estado Democrático de Direito. Fora de uma constituição promulgada, só existem horrores: sejam eles vermelhos ou com um rosário na mão.
* Historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros
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