O que não é legítimo é só criticar Israel com uma obsessão particular, ignorando o mundo ao seu redor
Terroristas do Hamas entram em Israel para massacrar e sequestrar mulheres, crianças e velhos. Há quem festeje. Há quem não festeje, mas "compreenda" a barbárie como um ato de resistência contra a política israelense.
Tranquilo, leitor sensato. Não vou comentar nada disso. Com a idade, deixei de gastar o meu latim com psicopatas ou antissemitas.
Só abro uma exceção para pessoas que suspeito mal informadas ou mal influenciadas.
Nesses casos, há uma pergunta que sempre faço a elas: "por que motivo você esbraceja tanto contra Israel, mas não adota a mesma postura com outros países que cometem atrocidades bem piores?"
Pense na China perseguindo os uigures. Pense em Mianmar fazendo o mesmo aos rohingyas. Ou na Índia brutalizando os muçulmanos da região de Caxemira.
Agora mesmo, há uma limpeza étnica a decorrer em Nagorno-Karabakh, com mais de 100 mil armênios fugindo às investidas do Azerbeijão.
Um antissemita não dá bola para nenhum desses conflitos. Não há lá judeus para acusar.
Mas quem recusa o rótulo de antissemita, tem de responder por sua gritante incoerência: por que Israel e não os outros?
Sempre faço essa pergunta, repito. Mas vejo agora que não sou caso único: o jornalista Jake Wallis Simons, no seu recém-publicado "Israelophobia: The Newest Version of the Oldest Hatred and What To Do About It", repete a pergunta com insistência. Só para mostrar como a "israelofobia" que corre solta é, na verdade, uma forma de antissemitismo.
Ponto prévio: para Simons, criticar Israel é legítimo; não existe nenhum estado que esteja acima da crítica.
Assino em baixo. Os assentamentos na Cisjordânia, o irredentismo dos fanáticos que desejam um "Grande Israel" entre o Mediterrâneo e o rio Jordão ou as pulsões populistas e iliberais de Binyamin Netanyahu com sua grotesca reforma judicial, tudo isso merece repúdio.
O que não é legítimo é só criticar Israel com uma obsessão particular, ignorando o mundo ao redor. Isso é suspeito, camarada. Isso é antissemitismo, quer você esteja consciente ou não.
Mas Simons tem outras perguntas para você. Como essa: "Diga um país que, historicamente falando, tenha uma ficha moral mais limpa que Israel."
Uma vez mais, Simons não afirma que a ficha moral de Israel é limpa. Não é. Longe disso.
Ele apenas convida o leitor a responder por que motivo Israel é o único país que, na linguagem da "israelofobia", não tem "direito a existir" por seus erros ou crimes.
Se Israel não tem, quem tem? Os Estados Unidos? A China? O Irã? Os países árabes da região?
Aliás, falando nisso, você consegue citar um país do Oriente Médio que tenha uma ficha mais suja que Israel? Um só?
Ou, inversamente, você é capaz de citar algo de admirável em Israel?
Se você não sabe responder a essas perguntas, cuidado com as companhias, alerta Simons. Elas sabem responder sem hesitar, colocando Israel no grande altar da monstruosidade. Isso é antissemitismo e ser um mero papagaio da propaganda antissemita não é destino que se inveje.
O livro de Jake Wallis Simons saiu no momento certo. Só para despertar em cabeças saudáveis a hipótese da manipulação ou do desconhecimento. Também aqui se aplica o preceito judaico de que salvar uma vida é salvar a humanidade inteira.
Mas o livro é também útil para relembrar a natureza do Hamas, que as boas almas percepcionam com as velhas lentes do conflito israelense-palestino. Basta escutar ou ler o que elas dizem com a guerra em curso.
Nessa visão das coisas, o Hamas quer o mesmo de sempre: um estado palestino independente ao lado de Israel, o fim dos assentamentos, o retorno dos refugiados das guerras de 1948 e 1967 e a divisão de Jerusalém entre os dois povos.
Se esse fosse o programa das festas, até eu concordaria com eles. Fatalmente, é preciso ler a carta fundamental do grupo onde os objetivos são outros e, até hoje, imutáveis: a destruição do estado de Israel. Ponto final, parágrafo.
Para usar o mesmo teste de coerência, você até pode concordar com esse objetivo. Mas, concordando, você terá de defender a destruição de todos os estados onde reina ou reinou a injustiça, o abuso e até o crime. Começando pelo seu, claro.
* Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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