quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O espírito da letra: uma resenha crítico-poética do livro Barthes, Loyola e outros textos

 escreve Derick Teixeira

  

Reprodução da capa de Barthes, Loyola: e outros textos (Foto: enviada pelo autor da obra

"Podemos dizer que Barthes e Loyola são, ambos, figuras da espiritualidade, mas tomados no que tem de mais corpóreo no espiritual: o espírito da letra".

Eis a resenha.

“Dar a vida não chega, não é um acorde consonante com a substância. Ressuscitar, sim, é o acorde perfeito”, Maria Gabriela Llansol, em O jogo da liberdade da alma

Quando Barthes publica Sade, Fourier, Loyola, em 1971, sua escrita percorre o movimento de retorno da espiral que é sua obra. Como Leyla Perrone-Moisés escreveu, certa vez, a tática barthesiana é a de “uma dialética desprovida de síntese, uma dialética em espiral” [1]. E é Barthes quem nos diz que na “na espiral as coisas voltam, mas em um outro nível; há um regresso na diferença” [2]. Nesse ponto de sua obra, o que retorna na diferença é a figura autoral, morta, para os estudos literários, desde a publicação de “A morte do autor”, de Barthes, em 1968. Não interessa, aqui, explicitar os motivos da chamada morte do autor, interessa-nos, antes, dizer que, no que ficou conhecido como “retorno da figura autoral”, o que resta do autor e retorna na diferença não é mais a figura biográfica que poderia guiar a leitura de uma obra: restam os fragmentos de um corpo que escreve e com o qual, conforme escreveu Barthes, podemos “coexistir” [3], “viver com”, ou, conforme o título de um de seus livros “viver junto”. É o que fazem Carlos Rafael Pinto [4] e Jonas Samudio [5], vivem juntos, escrevem juntos. Mas não falo aqui da vida civil, biográfica, dos autores, falo do que podemos chamar de uma vida biografemática, que é uma vida espiritual: aquela em que seguem, juntos, o que Barthes chamou de “o espírito da letra” [6].

É conhecido o dito: “a letra mata, o espírito vivifica”. Sim, mas conforme escreve Barthes, “seria simples se não houvesse precisamente um espírito da letra, que vivifica a letra; ou ainda: se o símbolo extremo não fosse precisamente a própria letra” [7]. E com o lado vivificante da letra, estamos também na presença da psicanálise de Lacan, pois com ele “também indagamos como, sem a letra, o espírito viveria” [8]. É na companhia da psicanálise, em seu aspecto mais ético que conceitual, que um autor morto pode ser lido e escutado na sua restante vida, conforme a expressão figural de Llansol, como vemos em Barthes, Loyola.

Em Barthes, Loyola, trata-se da mortificação do corpo, mas também da vivificação através do gozo da escrita, o resto vivo que figura no texto. Com efeito, estamos no campo daquilo que atravessa a morte e retorna em outro nível, em uma “leitura que desdobra uma escrita em outra, que fica às voltas de um prazer do texto: que isola significantes, os articula por combinatórias de significações, sons e imagens, ordena-os segundo o movimento de sístole e diástole do corpo” [9]. Todavia, o leitor verá que, em Barthes, Loyola, há também um outro movimento na espiral do texto: aquele em que os autores, dobrando-se sobre o texto lido, incluem, na diferença espiralar, seus corpos. Do corpo dos autores, restam a delicadeza do olhar que lê, dos ouvidos que escutam e os pontos de contato biografemáticos. Digo isso pois, em Barthes, Loyola, a leitura e a escrita dos fragmentos de vida parecem inseparáveis de uma escuta do texto em sua materialidade mais corpórea.

Sabe-se que, para a abordagem do prazer e gozo do texto, Barthes, com a psicanálise de Lacan, toma o corpo que escreve, o corpo leitor e o próprio texto em sua dimensão erógena, pulsional. E, em companhia da psicanálise, sabemos que as zonas erógenas dizem respeito aos orifícios do corpo – dentre eles, “o mais importante é o ouvido, porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar”, e, conforme escreve Lacan, “certamente, não há apenas o ouvido, e que o olhar lhe faz uma eminente concorrência” [10]. Pensando a leitura que os autores fazem em Barthes, Loyola, poderíamos falar, citando Gabriel Balbo, em um “orolho” [11] que, ao mesmo tempo, lê e escuta sem que esteja atento somente aos sentidos da escrita. Em uma dimensão mais material que propriamente semântica, os autores escutam aquilo que sobrevive à mortificação que é toda palavra em sua face de representação da coisa – a palavra não é a coisa, a palavra mata a coisa. No entanto, no campo da letra, o corpo da palavra tem uma sobre-vida, segue, diferente, a partir do descontínuo e, nesse ponto, um nó pulsional se forma entre o corpo que escreve e o texto. Afinal, conforme escreve Barthes, já não se trata de buscar na vida do autor morto os elementos biográficos que explicariam a obra, trata-se de viver com um autor, e o corpo que escreve, lemos em O prazer do texto, é erótico, não biográfico, ele figura no texto sem que sua biografia venha doar sentidos à escrita [12].

Em Barthes, Loyola, trata-se de viver, escrever, ler e escutar juntos. Nas palavras dos autores, aqui, a leitura “isola significantes, os articula por combinatórias de significações, sons e imagens, [...] teatraliza-os num desejo de multiplicidade da voz” [13]. Assim, de ouvidos abertos para ver o vivo no campo da letra, os autores chegam à escuta da materialidade da escrita que se conta nas contabilidades que Inácio de Loyola, claudicante em corpo e texto, fazia; como a de seus pecados. A escuta dos espasmos, ofegâncias e lufadas de Roland Barthes. Mais, ainda, o olhar atento à materialidade da escrita, ao lado da escuta da forma, na “tradução pobre” dos poemas de Mestre Eckhart, pois trata-se de uma tradução que pretere “o que se quer dizer em nome da pobreza da forma de dizer” [14], a pobreza da materialidade diante do sentido – escuta do material, olhar sobre o descontínuo da letra impressa no branco da página. E, por fim, em “Uma página das lágrimas de Santo Inácio”, a transcriação dá a ver a visualidade da letra, afastada do servilismo comunicacional, mas próxima da materialidade imagética que Barthes não hesitou em chamar de “a verdade da escrita” [15]. Em consonância com o mistérios nas letras, sobre o qual nos fala Mallarmé, e não muito distante de “Um lance de dados”, aqui há um sentido mesmo indiferente ao lado de uma “vã camada suficiente de inteligibilidade” [16], camada de lágrimas sobre a página, vestígios do corpo que escreve.

Na escuta feita em Barthes, Loyola, tomando o pormenor que Barthes chamou de biografema, fragmento de um corpo, a queda que debilita Loyola faz o corpo que escreve se deslocar em claudicância: do exercício das armas, des-continuado, para, “ainda nas mãos, como a espada, do soldado, registrar os pontos de uma vida nas suas palmas” [17]. Texto que é exercício espiritual e prática da letra, por isso, vivificante: “Loyola acamado, com corpo fraturado, de ideias gestadas a partir da sua própria experiência e, como Barthes, ideias que se gestam, na enfermidade, a passos oscilantes, percorrendo, lentamente, um trajeto” [18]. Loyola escreve, com a força fraca da criação, gesta no enfraquecimento – é um texto que brota daquilo que cai, como Loyola mesmo golpeado. Do descontinuo, as marcas do corpo insistem na escrita. Conforme lemos: “a vida espiritual, tal qual escrita por Loyola em seus exercícios, assemelha-se a uma caminhada, que se perfaz a passos claudicantes” [19]. E, quando mais, as lágrimas que encharcam o corpo e suas páginas são “índice de gozo do corpo, do fluído que excede um corpo, são materiais tais lágrimas, como páginas” [20].

No que diz respeito a Barthes, o pormenor que atinge o corpo dos autores de Barthes, Loyola, para, em seguida, tomar lugar no texto, é a “dificuldade em respirar depois de qualquer esforço”, a respiração que ofega: “espasmos, em suas lufadas: interrupções, a descontinuidade do ar em seus atravessamentos pelo corpo. Fragmentos do inteligível, em contínua dispersão e mobilidade” [21]. Se olhar e escuta se encontram, no âmbito da leitura, como duas zonas erotizadas no campo daquilo que Barthes chamou de prazer do texto, erotismo da leitura, há ainda uma outra erogeneidade, mais sutil, pouco comentada, mas evidente na leitura que os autores fazem da escrita barthesiana. Trata-se do erotismo respiratório, nas palavras de Lacan: a “erogeneidade respiratória é pouco estudada, mas, evidentemente, é pelo espasmo que ela entra em jogo” [22]. Assim, se a ofegância, no âmbito biográfico de Barthes, é marca de uma mortificação do corpo, escrita da tuberculose em seus pulmões, no âmbito biografemático, é o que resta vivo, pois cheio de gozo, e insiste na escrita, fazendo um nó entre um corpo adoecido e um corpo vivificado, no texto.

Caminhada claudicante de Inácio de Loyola, seu corpo encharcando de lágrimas suas páginas, fluxo que se descontinua; respiração que se interrompe em Barthes, como o espasmo do corpo amante. A leitura, aqui, torna-se escuta que entrevê o corpo na materialidade do texto, sem que o dado biográfico venha elucidar algum sentido, pois, no campo da letra, já não interessa o semântico, mas a realidade corpórea do texto, onde o corpo se enoda com o escrito. Nesse ponto, podemos dizer que Barthes e Loyola são, ambos, figuras da espiritualidade, mas tomados no que tem de mais corpóreo no espiritual: o espírito da letra. E é também no campo do espírito da letra que se traduz, pois, aqui, traduzir é “ressuscitar um texto em sua diferença” – o sentido mata, reafirma a mortificação, a tradução da letra vivifica, na diferença. Por isso, a “tradução pobre” que se lê aqui dá continuidade à espiral do texto, conduz à outra volta do parafuso, e as coisas retornam, mas, conforme escreveu Barthes, “em um outro nível”.

Para Barthes, a escrita carrega os restos do corpo que escreve, suas anamneses: “chamo de anamnese a ação – mistura de gozo e de esforço – que leva o sujeito a reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de lembrança. O biografema nada mais é do que uma anamnese factícia” [23]. É com delicadeza que se manuseia um biografema, sem fazê-lo vibrar demasiadamente, posto que a vibração, aos poucos, poderia encerrar o texto no cárcere da biografia doadora de sentido. Em Barthes, Loyola, o biografema não vibra, mas desliza, desloca-se, metonimicamente, como lubrificado pelos fluidos dos corpos, do corpo que escreve, dos corpos leitores: a fratura, a claudicância, o descontínuo de toda escrita, as lágrimas, as lufadas, os espasmos, de um corpo apaixonado, o vivo. Nessa leitura lúbrica em que o vivido desliza, sem encerrar sentidos, a escrita aparece como espaço de anamnesis (ana: trazer de novo, mnesis: memória), ela é como o lugar de um “mais, ainda”, mais uma vez, a memória do corpo; lugar de insistência daquilo que persiste mesmo na descontinuidade, ainda que ofegante, claudicante e em lágrimas – a escrita, conforme escreve Barthes, recorrendo à Lacan, “só conhece insistências” [24].

Atravessando as experiências mortificantes dos autores, escrevendo as marcas de tais experiências, Jonas Samudio e Rafael Pinto escutam sobretudo o vivo que resta e insiste, retorna sempre em diferença, como em uma espiral da escrita. E na leitura espiralar, que conduz uma escrita a outra, às voltas do prazer, delicadamente, os autores se aproximam de onde “só podemos chegar mancando” [25], no vivo que está mais além do prazer, que ultrapassa os limites da experiência confortável e apaziguada da vida e da linguagem.

Escutar o espírito da letra, a escrita no seu seu ponto de letra, para ler que aquilo que mata vivifica no mesmo movimento: a escrita que mata o autor, a queda de Loyola, a tuberculose de Barthes, a escrita deste livro. A letra, afinal, é o que sobrevive à morte da coisa e resta, não na sua plenitude, mas no ponto do fragmento, como o biografema: fragmentos de um corpo que tocam o futuro corpo do leitor, também ele prometido à dispersão.

Sobre os lançamentos

28 de outubro, sábado, das 16h às 19h, na Livraria Mandarina (R. Ferreira de Araújo, 373, Pinheiros - São Paulo, SP).

10 de novembro, sexta-feira, das 19h30 às 21h, no Centro Loyola (R. Sinval de Sá, 700, Cidade Jardim - Belo Horizonte, MG). Com a participação do prof. Dr. Derick Teixeira, para uma conversa com os autores sobre o livro.

Notas

[1] PERRONE-MOISÉS. A palavra calma, p. 12.

[2] BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 21.

[3] BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 15.

[4] Escritor, professor e, atualmente, pesquisador da obra de Carolina Maria de Jesus e dos estudos decoloniais, no doutorado em Teologia, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE-BH), com bolsa da CAPES [e-mail: rafaelpinto.email@gmail.com]

[5] Escreve, lê, corta, costura, ensina. Dedica-se às relações entre mística, feminino, erotismo, poesia, tecidas no corpo e na escrita. Com livros e artigos publicados, atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre as literaturas e os femininos, na UFMG (CNPq/PDJ) [e-mail: alfjonasss@yahoo.com.br]

[6] BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 102.

[7] BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 102.

[8] LACAN. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, p. 513.

[9] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 14.

[10] LACAN. O Seminário 23: o sinthoma, p. 19.

[11] BALBO. A língua nos causa, p. 129.

[12] Cf. BARTHES. O prazer do texto, p. 66.

[13] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 14.

[14] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 55.

[15] BARTHES. La peinture et l’écriture des signes, p. 3.

[16] MALLARMÉ. Divagações, p. 186.

[17] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 21.

[18] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 34.

[19] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 36.

[20] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 40.

[21] PINTO; SAMUDIO. Barthes, Loyola e outros textos, p. 28.

[22] LACAN. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, p. 832.

[23] BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 126 (grifos do autor).

[24] BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 9.

[25] FREUD. Além do princípio de prazer, p. 205.

Referências:

BALBO, Gabriel. A língua nos causa: abordagem diferencial do autismo na psicose através do estudo do tipo de articulação entre o ouvido, o visto e o falado. In: VORCARO, Angela (Org.). Quem fala na língua? Sobre as psicopatologias da fala. Salvador: Ágalma, 2004. p. 123-150.

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Trad. Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 2014.

BARTHES, Roland. La peinture et l’écriture des signes. Colóquio Artes, 18-19, abril-junho de 1974.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 496-533.

LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 807-842.

LACAN, Jacques. O Seminário 23: o sinthoma. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MALLARMÉ, Stéphane. Divagações. Trad. Fernando Scheibe. Santa Catarina: Editora UFSC, 2010.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A palavra calma. In. PINO, Claudia Amigo; BRANDINI, Laura Taddei; BARBOSA, Márcio Venício (Orgs.). Roland Barthes plural. São Paulo: Humanitas, 2017. p. 7-15.

PINTO, Carlos Rafael; SAMUDIO, Jonas. Barthes, Loyola e outros textos. Campinas: Saber Criativo, 2023.

* Doutor em Teoria da Literatura pela UFMG, em resenha da obra Barthes, Loyola: e outros textos (Saber Criativo, 2023) de Carlos Rafael Pinto e Jonas Samudio.

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