Por LISZT VIEIRA*
Os evangélicos usam o Conselho Tutelar como porta de entrada e caminho para a eleição de vereadores
A eleição, domingo 1/10, para o Conselho Tutelar (CT) em todo o Brasil, confirmou o avanço dos evangélicos nas estruturas de poder. As Igrejas Evangélicas crescem na base da sociedade, ao contrário da Igreja Católica que sempre exerceu sua influência de cima para baixo. Ao longo das últimas décadas, as várias denominações evangélicas, desde as tradicionais como a batista, até a neopentecostal, passaram a ocupar espaços de poder no Congresso e até mesmo no STF.
A bancada evangélica tornou-se um ator político no Legislativo, ao lado da bancada da bala e do agronegócio. São agendas complementares, uma vez que o agronegócio e a indústria de armas não estão preocupados com uma pauta religiosa fundamentalista, já que os evangélicos apoiam seus projetos. Segundo a DataFolha, a proporção de evangélicos no Brasil está em torno de 30% da população brasileira. Atualmente, entre 18 e 20% dos parlamentares são evangélicos. Mas é importante não esquecer que eles, tradicionalmente, se dividem em relação ao Governo, mas se unem, com raríssimas exceções, na defesa de uma pauta conservadora em matéria de costumes.
Este ano, porém, a maioria dos evangélicos quer fazer oposição ao governo Lula. O Partido Republicano (PR), com forte influência da Igreja Universal, emplacou um Ministro. Mesmo assim, seus parlamentares querem estar na oposição. O Partido Republicano afirmou que, mesmo após a indicação do deputado Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) para o Ministério de Portos e Aeroportos, não fará parte da base do governo (G1, 7/9/2023). Breve saberemos o desfecho desse imbróglio.
Esse tema relacionado à força política dos evangélicos me faz lembrar a visita ao Brasil do cientista político norte-americano e brasilianista Thomas Skidmore, autor do livro Brasil: De Getúlio a Castelo. Ele visitou o Brasil no início dos anos 1990 e buscou diálogo com professores universitários e pesquisadores brasileiros. Thomas Skidmore se tornou conhecido ao liderar um abaixo assinado nos EUA contra a prisão do intelectual marxista brasileiro Caio Prado Jr pela ditadura militar em 1970. Ele próprio teve problemas quando, 1984, após um seminário, foi intimado a depor no Departamento de Polícia Federal e ameaçado de deportação. Na ocasião, foi defendido por diversos intelectuais brasileiros. Apesar disso, foi acusado por alguns de ser agente da CIA. Fora da área universitária, encontrei militantes de esquerda para quem qualquer cidadão norte-americano é, foi ou será agente da CIA. Infelizmente, a ignorância não é monopólio da direita.
Na visita ao Instituto de Ciências Sociais da UFRJ (IFICS) no início dos anos 1990, Thomas Skidmore perguntou aos sociólogos se alguém pesquisava movimento evangélico. Ninguém: quase todo mundo pesquisava classe operária e sindicalismo. Ele alertou os professores para a importância de pesquisar o movimento evangélico que, naquela ocasião, ninguém levava a sério, a maioria dos pesquisadores estava convencida da prioridade de estudar a classe trabalhadora, sindicalismo e temas afins. A dimensão política dos evangélicos não estava no horizonte. E, se estava, não era percebida.
Ao longo das últimas décadas, os evangélicos cresceram horizontalmente na base da sociedade, recebendo o apoio e a cooperação de seus irmãos de crença e mesmo dos pastores, nem todos são canalhas e corruptos. De uns tempos para cá, começaram a crescer verticalmente, ocupando espaços de poder no aparelho de Estado. Isso se deve à influência da Teologia do domínio, oriunda dos EUA, segundo a qual não se trata mais de aceitar o sofrimento na terra para ter direito a ir para o céu. Trata-se de ocupar todos os espaços de poder na terra para transformar toda a nação em cristã e preparar assim o retorno de Jesus Cristo a nosso mundo. Creio que, juntos com os militares, os evangélicos seriam os primeiros a apoiar uma ditadura na certeza de que seria imposta de cima para baixo uma ordem conservadora, cristã e autoritária. Não faltam versículos da Bíblia para justificar isso.
A eleição para o Conselho Tutelar não é uma avant première das eleições municipais ano que vem, mas traz indicações que não devem ser desprezadas. Na eleição de domingo 1/10 para os CTs, os candidatos evangélicos ou por ele apoiados tiveram votação expressiva. Ainda é cedo para avaliações confiáveis, com números e percentagens, mas é inegável o avanço evangélico na votação, principalmente nas periferias das grandes cidades. Os evangélicos usam o Conselho Tutelar como porta de entrada e caminho para a eleição de vereadores.
Salvo casos isolados e de militantes que atuam nos Conselho Tutelares defendendo o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), os partidos de esquerda e as entidades da sociedade civil não organizaram lista de candidatos, nem orientaram os eleitores. A maioria não sabia onde votar, e se podia votar em apenas um ou em vários candidatos. Nem quanto tempo dura o mandato de um Conselheiro Tutelar, são quatro anos. Enquanto isso, os evangélicos avançam, penetrando até na Polícia, como é o caso da Universal nas Forças Policiais (UFP) e dos PMs de Cristo.
Uma vez no poder, os partidos de esquerda, em nome da governabilidade, preferem o acordo por cima com os evangélicos, sempre que possível. Mas, a partir deste ano, parece que o jogo vai mudar. Os evangélicos querem cargos no poder, mas ao mesmo tempo querem ficar na oposição defendendo suas bandeiras e fortalecendo sua agenda fundamentalista. Os confrontos recentes vêm ocorrendo, não no Congresso ou no Executivo, mas no STF, como, por exemplo, a votação da descriminalização do aborto. Não vi até agora nenhum líder político, ligado ao governo, assumir publicamente a defesa da descriminalização do aborto, esclarecendo que não se tratar de incentivar, apenas deixar de ser crime.
O tradicional desprezo da esquerda pelas questões identitárias e de costumes, consideradas na prática como “não-políticas”, leva os partidos e organizações de esquerda a fechar os olhos e, em nome da governabilidade, não dar combate à agenda da sociedade patriarcal, onde ainda predominam a misoginia, o racismo e a homofobia. Mutatis mutandis, já tive oportunidade de chamar a atenção para os limites da governabilidade no caso da tentativa de golpe militar frustrada em 8/1. Se prevalecer o amiguismo e o corporativismo, e nenhum militar for punido severamente pelos crimes cometidos, novas tentativas de golpe militar virão em futuro próximo, é questão de tempo.
Infelizmente, os partidos praticamente atuam só na institucionalidade, com pouca e às vezes nenhuma capilaridade na sociedade. Nos anos 1980, na infância do PT, muitos de nós gritávamos a palavra de ordem “um pé no social, outro no institucional”. Será que hoje os partidos políticos de esquerda ficaram capengas?
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]
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