segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Livro mostra como não se intimidar pela censura do mundo contemporân

Luiz Felipe Pondé*

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com lápis grafite e tinta nanquim sobre papel e, posteriormente, manipulada digitalmente, criando uma composição livre. A imagem horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, não apresenta uma narrativa linear. A imagem mostra parte de rostos com vendas nos olhos, outro rosto com um adesivo na boca e outro rosto ao fundo com os olhos fechados. Há uma imagem gráfica e estilizada de uma mão de cor chapada preta sobreposta aos rostos. Uma linha grossa preta reta atravessa,  transversalmente, a ilustração e um círculo vermelho sobreposto à arte no canto superior esquerdo.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 9 de outubro de 2023 - Folhapress

'O que Fazer?', do russo Nicolai Gravilovitch Tchernitchevski, publicado no século 19, tem tradução para o português

O livro mais lido na Rússia na segunda metade do século 19 não é nenhum dos grandes títulos conhecidos por nós. Trata-se de um livro literariamente frágil, mas de enorme valor como peça histórica no processo que levou à Revolução Russa de 1917. Que livro é esse? "O que Fazer?", de Nicolai Gravrilovitch Tchernitchevski, publicado em 1862 e que conta com tradução em português.

Jornalista e filósofo materialista que escreveu uma tese sobre Ludwig Feuerbach, Tchernitchevski foi um dos intelectuais mais influentes no pensamento revolucionário russo que levou ao golpe bolchevique de outubro de 1917. Era o livro de cabeceira de Lênin.

O autor escreveu enquanto estava preso em São Petersburgo por conta de sua atividade jornalística como editor da revista "O Contemporâneo" e pela defesa do movimento populista russo, que tinha como crença a ideia de realizar o socialismo a partir dos camponeses, os mujiques, que seriam, segundo eles, "naturalmente" socialistas.

Tchernitchevski foi um dos primeiros a defender a ideia de que a Rússia só mudaria por meio de uma revolução violenta. Seu personagem Rakhmetov, neste romance, será visto como o paradigma do revolucionário. "Um homem dedicado à causa", como normalmente é descrito, que "dormia numa cama de pregos" para se preparar para a dureza da revolução.

Rakhmetov é um asceta da revolução, como Lênin e Stálin gostarão de ser vistos. Trotski já não, viciado em mulheres e em roupas caras, além de vaidoso —traços de uma personalidade pouco bolchevique e que acabou por custar a sua vida.Apesar de Rakhmetov atrair as atenções do público especializado, ele não é o personagem principal do romance.

E por aqui começamos a contemplar onde está o verdadeiro valor estético do romance, muitas vezes desconsiderado em favor do culto ao revolucionário russo bolchevique, quer seria um neto de Rakhmetov. "O que Fazer?" é uma peça escrita para escapar da censura de então.

Seu valor estético está, precisamente, no modo de narrar a história de forma a não ter seu conteúdo real —a defesa da revolução socialista— descoberto pelos censores. Lembremos que o autor já estava preso quando escreveu —e depois foi mandado para a Sibéria e viveu pouco quando de lá voltou muitos anos depois.

O autor pede às autoridades que o permitam escrever um romance na cadeia —ensaios e panfletos, o que ele costumava escrever, não seria permitido, óbvio— e, recebendo a permissão, escreve uma história de amor. Uma clássica narrativa de um triângulo amoroso que o próprio narrador diz abominar como tema de ficção literária.

Temos aqui um narrador irônico, o que é comum na literatura russa. Aliás, vale lembrar, a ironia é odiada por toda forma de censura, até hoje. O personagem principal do romance é uma mulher, que começa a história menina, chamada Verinha.

Ela estará diretamente ligada ao suicídio que abre a narrativa. Afinal, qual censor prestaria atenção nas aventuras românticas de uma menina chamada Verinha?

Verinha se apaixona pelo professor do irmão, foge de casa com ele, para não ser vendida pela mãe como amante —uma espécie de "sugar baby" de então— para um jovem rico —uma prática comum na Rússia de então e, para alguns, até hoje em alguns lugares do leste europeu.

Ela acaba se apaixonando pelo melhor amigo de seu antes amado marido, levando a narrativa para a tragédia romântica. Essa mesma jovem fundará uma cooperativa de costureiras em que o lucro é dividido igualmente entre elas, recebendo elogios do narrador.

Como seria melhor se o mundo fosse assim e não o lugar de burgueses sovinas? A peça pode ser assimilada a uma das primeiras peças literárias feministas, pois o foco da história é a luta da menina Verinha para escapar do seu destino de mulher jovem, bonita e pobre na Rússia de então.

As estripulias que o autor faz na narrativa são fruto do seu esforço para escapar do vigilante olhar do censor. Daí decorrem duas perguntas importantes. Qual o tipo de censura que temos hoje no Brasil? Jurídica. E como não se deixar intimidar por ela? Toda censura visa gerar medo. Não tenha medo.

* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP. 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2023/10/livro-mostra-como-nao-se-intimidar-pela-censura-do-mundo-contemporaneo.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

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