Se você 'costumava morar' em Nova Iorque é porque morava lá, sei lá, às segundas e quartas?
Outro dia um amigo confessou que gostava dos meus textos, mas sentia neles falta de uma pitada de rancor, de intolerância, de raiva da humanidade. Segundo esse amigo, grande leitor do Millôr Fernandes e do Mark Twain, um pendor para a compaixão pode fazer muito bem às almas que buscam o céu, mas não aos textos que buscam o riso. Pois bem, meu caro, hoje estou num dia ruim: mãos à obra.
Gostaria de abrir os trabalhos nesta crônica intolerante com um esclarecimento: quem elogia uma obra de humor afirmando ser "bem-humorada" está fundamentalmente enganado. Bom humor não leva à comédia, leva ao abraço, ao coraçãozinho de mão ou à patinação no Ibirapuera.
O humor nasce do mau humor, da roubada, da desgraça. Como disse o supracitado Mark Twain, um dos melhores piores humores que já passou por este vale de lágrimas: "não existe riso no céu". Não estou no céu, estou na Terra, de ressaca e com conjuntivite. Bora resmungar.
Tenho ódio da onda de anglicismos irrefletidos que trazemos para o português. Já escrevi sobre o tema mais de uma vez, Sérgio Rodrigues idem, mas nos acusarem de repetição é como reclamar de alguém continuar matando moscas numa sala cheia delas. Com o agravante de que os anglicismos, ao contrário das moscas, não morrem, só se multiplicam.
"Eventualmente", em português, significa "de vez em quando". "Eventually", em inglês, significa "finalmente". Pois não me canso de ler, inclusive na imprensa, frases como "O cachorro tanto pulou sobre a cerca que eventualmente conseguiu fugir".
Na mesma seara do "eventualmente" está o "costumava". Em inglês não existe o pretérito imperfeito: "morava", "cantava", "chorava". Eles precisam de duas palavras auxiliares, I "used to" live, I "used to" sing e por aí vai. A tradução correta de "I used to live" é simples: "Eu morava". Mas os maus tradutores —e aqueles que pagam mal os bons tradutores, obrigando-os a fazer o trabalho nas coxas— deram nisso: "I used to live" é "Eu costumava morar". Não é raro você ler frases como "Na infância eu costumava morar em Nova Iorque". Amigo, em português, se você "costumava morar" em Nova Iorque é porque morava lá, sei lá, às segundas e quartas? Ou só nas horas ímpares, vai saber?
Não existe mais "medir", mas só "mensurar". "Precisão" morreu, dando lugar à "acurácia". "Pistas" agora são "evidências" e para rimar o "público" virou "audiência".
Odeio os anglicismos mal colocados tanto quanto o dialeto da esquerda identitária universitária. De uma hora pra outra, tudo passou a ser "atravessado". "Eu sou atravessado pelo meu gênero, minha classe". "No atravessamento entre a antropologia e a sociologia..." (Imagino que essa São João com Ipiranga das ciências sociais fique em algum corredor da FFLCH). E os "afetos"?
Faz uns anos que qualquer emoção, humor, sentimento, é "afeto". Quando ouço alguém dizer que é "atravessado por afetos" (o que, infelizmente, não é incomum), visualizo uma espécie de São Sebastião cheio de flechas, cada uma com uma etiquetinha pendurada. "Amor". "Ódio". "Preconceito", "Vergonha alheia" e assim por diante.
Sim, estou irritado. Estou "atravessado" por este "afeto". Tentarei usá-lo, contudo, para juntar "evidências" e convencer a "audiência", com "acurácia", de que não é "sobre" mim, é "sobre" "decolonialismo". Quem sabe eu possa, no futuro, dizer: anos atrás, quando eu "costumava" escrever pra Folha, tentei pôr todos "na mesma página", até que, "no fim do dia", "eventualmente", vencemos?
* Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2024/07/a-acuracia-dos-afetos-que-nos-atravessam.shtml
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