sábado, 13 de julho de 2024

Neurose com número

Aline Valek

Há alguns anos, quando me mudei para São Paulo, comecei a conhecer pessoas muito cultas, descoladas e cheias de referências que eram muito boas no jogo de dropar nomes. Que consistia em elencar, no meio de uma conversa casual, quem elas conheciam, os lugares que já tinham visitado, os livros que já tinham lido, seguido de um "como assim você não conhece?" quando eu demonstrava não saber do que elas estavam falando.

Nada como circular nas panelinhas intelectuais de São Paulo para se sentir pobre, desinteressante e atrasada! Eu tinha tanta vergonha de não ter tido acesso às mesmas referências que aquelas pessoas consideravam básicas (desculpa, é que eu não sou daqui, eu vim de outra classe social) que cheguei a listar em um caderno todos esses nomes de autores oh-meu-deus-não-acredito-que-você-nunca-leu

Faz uns dias esbarrei com essa página e dei risada. Mais da metade desses autores listados posso dizer, hoje, que já li. Seria questão de tempo meu caminho cruzar com o deles. Só deixei acontecer naturalmente. Nem vem ao caso dropar nomes aqui; lembrei desta anedota quando esses dias uma pessoa me perguntou como saber que ela já tinha background de leitura o suficiente para começar a escrever. 

Posso dizer com tranquilidade que não existe algo como uma habilitação para escrever, muito menos uma concedida apenas a quem passar num teste de dropping names; se houvesse, eu estaria lascada. Construir sua bagagem de leituras é tarefa para uma vida inteira e algo que você faz enquanto desenvolve sua escrita. Relaxa: você vai morrer antes de ler tudo o que você gostaria!1

O que me intrigou nesta pergunta foi perceber uma certa angústia que ela carrega e que tenho observado por aí de uma forma bem geral (inclusive em mim mesma!), para muito além da quantidade de livros lidos: a sensação de que o que temos, o que somos ou o que fazemos não é o suficiente.

*

Você se pergunta se lê livros o suficiente? Rápido o suficiente?

Você sente que precisa ler todas as newsletters que chegam? Sente que perdeu o controle da vida enquanto não zera sua caixa de entrada?

Você se acha mais lenta do que pessoas fazendo a mesma atividade que você? Ou faz questão de mostrar que você é mais rápida que elas?

Tem seu humor afetado quando verifica seus gráficos de desempenho, ou seu saldo bancário, ou suas medidas, ou seu número de seguidores ou curtidas?

Você age em função de alterar esses números?

Você até acha que está indo bem em algum aspecto da vida, mas fica borocoxô ao ver que alguém tem números melhores que os seus?

Ou ainda: se sente aliviada quando percebe que tem gente com números piores que os seus?

Você tem medo de ficar para trás?

Cuidado, pode ser ela: a neurose com números.

Fonte:  https://alinevalek.substack.com/p/neurose-com-numeros?utm_source=substack&utm_medium=email


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