quinta-feira, 18 de julho de 2024

‘Tsundoku’, a arte de acumular livros

 Alex Castro

 "Livros e cartões-postais", do artista japonês Reisai (c. sec. 18-19)/Reprodução

Mais que uma expressão japonesa, comprar mais exemplares do que se lê pode ser um sinal de alerta ou uma aposta no futuro

01jul2024 - 11h02 • 01jul2024 - 11h41 | Edição #83

 

Nos anos 2010, a rede social Shelfari tinha uma comunidade chamada “Acumuladores Compulsivos de Livros”. Para fazer parte era preciso ter no mínimo mil exemplares. Muito? Pouco? Um dos escritores brasileiros mais lidos no mundo, Paulo Coelho, em coluna publicada no jornal O Globo em 10 de outubro de 2004, revelou só ter quatrocentos livros, “alguns por razões sentimentais, outros porque estou sempre relendo”.

Conversei com ele em fevereiro, vinte anos depois, para saber se continua com a mesma quantidade. Coelho respondeu que agora são apenas trezentos e que não guarda mais os que relê, só os afetivos — “tenho a coleção completa de Sherlock Holmes, Henry Miller, Malba Tahan.” Na coluna, o escritor havia explicado alguns motivos de sua decisão: “Um deles é a tristeza de ver como bibliotecas acumuladas cuidadosamente durante a vida são depois vendidas a peso, sem qualquer respeito”.

Coelho não estava errado. Moro em Copacabana, bairro com maior concentração de idosos do país. Todo dia vejo netos e bisnetos esvaziando apartamentos. Guardam um móvel ou outro, alguns poucos livros: o resto acaba empilhado nas calçadas cariocas.

Em 2005, na época do furacão Katrina, eu morava em Nova Orleans. A cidade passou semanas fechada, universidades cancelaram o semestre, boa parte da população se espalhou pelo país, muitos não voltaram, a maioria parou de pagar aluguel. Sem receber, os senhorios despejaram nas ruas o conteúdo das casas. Livros que tinham sobrevivido bravamente secos ao furacão terminaram, poucas semanas depois, abandonados nas calçadas. Em meia hora de caminhada, eu passava por milhares de exemplares, muitos que queria desesperadamente folhear, mas não ousava: o mofo era tóxico. Fundamentalmente, hoje ou amanhã, todo livro é lixo.

Bibliófilos e acumuladores

Existem as pessoas bibliófilas (do grego biblio, “livro”): quase sempre intelectuais, adoram ter livros raros, edições únicas, várias traduções dos mesmos textos. Reúnem coleções catalogadas que podem ser utilíssimas para pesquisadores. Existem as pessoas acumuladoras: adoram ter uma enorme quantidade de objetos, incluindo livros. Via de regra, o termo já designa uma patologia: pessoas que acumulam itens porque simplesmente não conseguem jogá-los fora. E, portanto, são também incapazes de catalogar, cuidar, organizar, até mesmo limpar seus objetos.

E existimos nós, pobres mortais que não temos nem a seriedade e o senso de propósito das bibliófilas, e nem a patologia descontrolada das acumuladoras, mas que, sim, vamos comprando livros pela vida e, na semana seguinte, antes de termos lido qualquer uma das compras da anterior, já estamos comprando novos, que vão se acumulando sem serem lidos.

Os japoneses, sempre eles, têm um nome para essa prática: tsundoku, das palavras tsunde (empilhar), oku (algo como deixar correr) e doku (ler). O termo surgiu no Japão do século 19, mas acabou ficando popular mesmo no contexto de afluência e consumismo do pós-guerra, no século 20.

Antibiblioteca

Quando entravam na biblioteca particular com 30 mil livros de Umberto Eco, bibliófilo italiano e autor de O nome da rosa, as pessoas, espantadas, costumavam perguntar: “Você leu todos os esses livros?”. Mas uma biblioteca de livros lidos é como uma sala de caçador cheia de animais empalhados: não serve para nada, exceto dar palmadinhas no ego de seu dono. “Olha esse javali que eu cacei!”, “Olha esse Ulisses que eu li!”.

O valor de uma biblioteca pessoal está justamente no potencial de leitura ainda por realizar, nas conexões inesperadas entre obras aleatórias. Uma das muitas pessoas que repete essa anedota já quase proverbial é Nassim Nicolas Taleb, enfant terrible das listas de mais vendidos. Em seu A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável (Objetiva, 2021), Taleb defende que uma biblioteca pessoal deve conter tantas coisas que o dono desconhece quanto seus meios financeiros permitirem: “quanto mais você sabe, maiores devem ser suas fileiras de livros não lidos”. Essa seria, diz ele, sua “antibiblioteca”.

Em 2023, a Companhia das Letras publicou Como organizar uma biblioteca, um dos últimos livros de Roberto Calasso, legendário editor italiano e das poucas pessoas capazes de rivalizar em erudição com seu contemporâneo Umberto Eco. Para Calasso, bibliotecas deveriam ser organizadas de forma aleatória e lúdica, um lugar para o usuário se perder e, quem sabe, encontrar um livro ainda melhor quando se está buscando por outro apenas adequado. Mais importante, toda boa biblioteca é comprada no presente, mas para ser útil no futuro. “Nada tira do fascínio de ter nas mãos — na hora — um livro cuja necessidade não se sabia até um momento antes”, escreve ele.

Pegando carona em Taleb, que pegou carona em Eco, e ecoando Calasso, não é que você seja hiperconsumista, uma pessoa descontrolada, estágio quatro do tsundoku. Talvez só esteja montando uma antibiblioteca lúdica. Na verdade, uma aposta no futuro.

‘As bibliotecas nascem quando a fome por livros é maior que o ritmo de leitura’

Conversei com a espanhola Irene Vallejo, autora do sucesso internacional O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo (Intrínseca, 2022). “Ainda faz sentido comprar livros?”, perguntei. Vallejo se confessa surpresa com a ideia de que um novo formato ou suporte deve necessariamente substituir ou tornar obsoletos os anteriores.

Em vez de celebrarmos o enriquecimento das alternativas, criamos uma falsa competição. Um audiolivro pode ser ouvido na academia ou enquanto se varre a casa. Os livros eletrônicos são úteis em viagens ou residências no exterior. Os livros de papel oferecem a experiência estética do design, das ilustrações e dos mapas; da dimensão tangível do cheiro, do som, do tato; permitem dedicatórias do autor ou de quem presenteia. Além disso, estudos indicam que se retém mais a informação na leitura em papel. “Como leitora, me sinto uma felizarda por ter tantas opções”, diz a autora.

E sobre o acúmulo exagerado: estamos comprando livros de mais? “As bibliotecas nascem quando a fome por livros é maior que o ritmo de leitura”, diz Vallejo. “Comprar livros é uma forma de afirmar a esperança que viveremos o suficiente para ler tudo que nos interessa. Uma ilusão, claro. Mas uma forma de otimismo.”

Para Coelho, o livro de hoje é o lixo de amanhã. Por isso, não vale a pena acumulá-los. Para Taleb, Eco e Calasso, eles são ferramentas de trabalho. Por isso, vale a pena tê-los, mesmo se não forem usados. Para Vallejo, por fim, o livro de hoje é uma aposta no amanhã. Vale a pena comprá-los. Nem que apenas pela promessa de que estaremos vivos para lê-los

Fonte:  https://quatrocincoum.com.br/artigos/literatura/literatura-japonesa/tsundoku-a-arte-de-acumular-livros/?utm_source=substack&utm_medium=email

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