Por TitiAna Amorim Barroso*
8 Julho, 2024 | 5 minutos de leitura
Há uma história (talvez apócrifa) que teria ocorrido em 1911, relativa a uma discussão entre o filósofo e matemático Bertrand Russell e o filósofo Ludwig Wittgenstein sobre a existência ou não de um rinoceronte na sala onde se encontravam. Embora não houvesse nenhum rinoceronte visível na sala, Wittgenstein recusava-se terminantemente a admitir que o facto de não verem o animal queria dizer com toda a certeza que ele não estava lá. Conta-se que Bertrand Russell, um pouco a brincar, terá mesmo chegado a espreitar debaixo da secretária para mostrar que de facto não havia nenhum rinoceronte escondido, mas nem assim terá convencido Wittgenstein.
O que é a realidade? O que significa existir? Quem somos, física e intelectualmente? O que delimita a nossa existência? Estas questões filosóficas estão intimamente ligadas à actividade de um cientista, que é descrever os fenómenos físicos. Apercebemo-nos de um mundo exterior (a «realidade») através dos sentidos: vemos, ouvimos, cheiramos, sentimos pelo tacto. Medimos o mundo dessa forma, e tomamos decisões baseadas nessa percepção.
As interpretações da realidade (o copo está meio cheio ou meio vazio? O bacalhau com natas é saboroso ou não?) diferem de cérebro para cérebro, mas concordamos que existem parâmetros que parecem descrever o que vemos. Para tornar a medida realmente objectiva e única, definimos um padrão imutável (mas será que um metro, um quilogra ma, um segundo são mesmo imutáveis?) e usamos esse padrão como referência.
A experiência diz-nos que a realidade é composta de objectos, de coisas que estão num determinado lugar, num certo instante e que se podem mover: com réguas e relógios caracterizamos o que conhecemos de forma clara. Esta interpretação do que nos rodeia comporta em si uma visão filosófica, na medida em que decide pela existência da multiplicidade e atribui características únicas e próprias a cada objecto.
Seria possível partir de um princípio quase oposto, um princípio holístico, em que tudo estivesse interligado, onde objectos e seres partilhassem um espaço comum, sem uma fronteira bem definida. Já vamos ver que a verdade é mais estranha do que a ficção e que, mesmo querendo isolar os fenómenos, a natureza nos força a uni-los. Mas para já assentemos neste pressuposto com centenas de anos, de que existem coisas bem definidas, com um princípio e um fim!
Decidimos que as «coisas» existem, isto é, que o mundo não é uma amálgama indistinta. Existem copos, existem pedras, animais e pessoas e a fronteira entre todos pode ser bem definida. Com esta decisão, descrever a realidade consiste em saber onde estão os objectos e em que instante. Tenho 70 quilogramas de massa, determinada em boa parte pelos alimentos que ingiro e não pela boa ou má disposição de um Deus ou por chover ou fazer Sol. Deixamos de fora as nossas crenças, o nosso estado de alma.
Podemos descrever um carro como estando ao meio-dia no outro lado da rua movendo-se a 50 quilómetros por hora, mas não estamos a transmitir as emoções que nos desperta. Ambicionamos responder a tudo isto, mas gradualmente. Acreditamos que tudo assenta em princípios básicos. Enquanto pessoas, fazemos o mesmo: simplificamos, incluindo as relações com outros seres humanos, até nos sentirmos confortáveis com o conjunto de explicações ou causas que atribuímos ao comportamento de quem está à nossa volta.
Uma viagem a casa transforma-se num conjunto de coordenadas espaciais para cada instante, onde as emoções ou enjoos de viagem são desnecessários. E todos conseguimos concordar na hora de saída e de chegada, apesar da forma diferente como sentimos a estada no carro ou no comboio.
Este excerto faz parte do livro O Eclipse do Tempo. Guia Para Entrar em Buracos Negros, de Vítor Cardoso, da Oficina do Livro (chancela Leya).
Vítor Cardoso é Professor Catedrático e Professor Distinto no Departamento de Física do Instituto Superior Técnico e Professor Catedrático no Instituto Niels Bohr, Universidade de Copenhaga onde é Villum Investigator e DNRF Chair. Doutorou-se em Física no Instituto Superior Técnico e fez investigação de pós-doutoramento em Saint Louis, Missouri, e Oxford, Mississipi, nos Estados Unidos. Os seus interesses de investigação incidem sobre ondas gravitacionais e buracos negros e a física do espaço, e é um pioneiro em espectroscopia de buracos negros e testes da teoria de Einstein. É autor de um livro e de mais de 250 artigos publicados em revistas internacionais. A sua investigação foi distinguida três vezes pelo European Research Council. Em 2015, foi agraciado pelo Presidente da República com a Ordem de Santiago D’Espada, pelas suas contribuições para a ciência. É membro fundador da Sociedade Portuguesa de Relatividade Geral.
*Coordenação Editorial
Fonte: https://lidermagazine.sapo.pt/o-que-e-a-realidade-o-que-significa-existir/
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