Por Daniela Fernandes — Para o Valor, de Paris
O presidente Emmanuel Macron prometeu “a mais bela imagem” da França nos Jogos. Abertura será no Sena — Foto: Reuters/Gonzalo Fuentes
O presidente francês Emmanuel Macron fixou um objetivo: tornar a Olimpíada de Paris um triunfo. Como ele disse tantas vezes, a ideia é mostrar “a mais bela imagem” da França. Macron se envolveu pessoalmente em várias coisas, sugeriu o nome de uma cantora, visitou equipes esportivas e chegou a assistir a vídeos de antigas cerimônias de abertura.
Mas, pouco antes desse evento esportivo planetário, ele mergulhou a França em uma enorme crise política ao convocar eleições legislativas antecipadas que resultaram em incertezas sobre quem conseguirá formar um governo.
Alguns dizem que Macron estragou a festa. Para outros, a falta de entusiasmo dos franceses com a competição já tinha começado bem antes das reviravoltas na política.
Não vejo a hora que isso acabe”, diz uma livreira sobre o fechamento de áreas como a praça da Concórdia — Foto: Raphael Lafargue/Abaca/Sipa USA/AP
Costuma-se dizer que o esporte nacional na França não seria o rúgbi ou futebol, e sim reclamar. Nesse quesito, os parisienses têm fama de liderar essa reputação. Para muitos moradores da capital, que há meses se deparam com obras por toda a cidade e problemas para se deslocar que vão ainda piorar com o acesso ultrarrestrito a várias áreas da capital por razões de segurança, os Jogos Olímpicos estão longe de ser algo que faz vibrar.
Uma pesquisa do instituto Elabe para o canal BFM TV revela que embora metade dos franceses (52%) tenha o interesse de ver os Jogos na TV ou assistir pessoalmente a algumas provas, apenas 24% afirmam estar empolgados com a Olimpíada de Paris. O levantamento, o último sobre o tema, realizado em maio, também aponta que os moradores da capital francesa e seus arredores, diretamente envolvidos no evento, também se mostram majoritariamente indiferentes ou céticos, enquanto os entusiasmados são apenas 27%.
É cedo para dizer se a tocha olímpica, que chegou a Paris em 14 de julho - dia da festa nacional que celebra a queda da Bastilha -, irá reacender o entusiasmo do público francês. Após ser apresentada ao presidente Macron no tradicional desfile militar, a tocha percorreu a capital durante dois dias, passando pelos principais monumentos e praças e outros lugares menos conhecidos, como o jardim Marielle Franco ou ainda a região popular onde fica a sede do Partido Comunista, projetada por Oscar Niemeyer.
Em áreas do trajeto da tocha, com apresentações artísticas, houve um número significativo de espectadores, alguns até equipados com camisetas e bonés oficiais Paris 2024. No Louvre, centenas de pessoas, principalmente adolescentes, aguardaram horas, mas para ver sobretudo o cantor sul-coreano do grupo BTS de K-pop que participou do revezamento.
Os tradicionais livreiros das margens do Sena, classificados como patrimônio imaterial da cidade, ficaram inicialmente felizes ao saber que o trajeto da tocha incluiu a área onde ficam suas famosas caixas verdes do século XIX. Os “bouquinistes”, como são chamados esses sebos, quase foram retirados do local por questões de segurança da cerimônia de abertura, mas após meses de polêmicas foram autorizados por Macron a permanecer ali. Mas o dia foi bem fraco, apesar do evento excepcional.
“Estamos descontentes com a situação”, conta a livreira Helena Carreira Prada, acrescentando que houve uma queda no movimento nas últimas semanas porque muitas pessoas optaram por não visitar Paris no período que antecede os Jogos.
“Onde você vai há obras”, diz Clara Furlan, da embaixada brasileira. “Há um caos por causa de vários metrôs fechados” — Foto: Daniela Fernandes
Quem esteve na cidade ficou frustrado ao se deparar com monumentos cobertos por tapumes e grades e até áreas importantes, como a praça da Concórdia, totalmente fechadas. “Não vejo a hora que isso acabe”, diz uma outra “bouquiniste” que prefere não se identificar.
Os parisienses estão acostumados a um turismo intenso: no ano passado, foram quase 48 milhões de pessoas. Para a Olimpíada, a previsão é de 15 milhões de visitantes. Muitos moradores da capital estão tão irritados com a realização dos Jogos - e todas as mudanças que o evento vem provocando nos itinerários, preços, trânsito, além do receio de transportes ainda mais lotados - que eles preferiram sair da cidade durante o evento. É o que farão o professor Loïc Leroy e a arquiteta Larissa Montenegro. “Nossas férias foram escolhidas em função das datas dos Jogos”, conta Leroy.
Ele mora em uma área nas proximidades de Paris por onde passarão os barcos da cerimônia de abertura e por isso o acesso à região será limitado ao público em geral. Desde o dia 18, residentes e trabalhadores precisam ter um código QR para se deslocar em um perímetro de segurança máxima contra atentados terroristas que se concentra em partes das margens do rio e em locais de competição pela cidade. Mas dois dias antes da entrada em vigor da medida, Leroy ainda não havia solicitado o QR code nem pesquisado nada a respeito, segundo ele, por falta de interesse. “Espero não ter problemas para ir à casa dele”, ressalta a arquiteta, que também não solicitou a autorização para circular nessa região.
Diferentemente de alguns de seus amigos, que alugaram acomodações fora de Paris, a consultora de cinema Myriam Gast optou por ficar na cidade. Ela diz que tem a chance de trabalhar em casa e evitar deslocamentos.
“Não estou particularmente interessada na Olimpíada, mas também não estou incomodada a esse ponto de sair de Paris, embora não seja favorável a eventos desse tipo por causa do impacto ecológico”, diz ela. Gast mora em uma área no norte de Paris onde não haverá competições, embora fique perto da estação de trem Gare du Nord, onde a previsão é de movimentação gigantesca no período.
“Onde você vai há obras. Ninguém aguenta mais barulho de britadeira. E há um caos por causa de vários metrôs fechados”, ressalta Clara Furlan, que trabalha na embaixada do Brasil. A estação próxima à embaixada, Alma Marceau, não funcionará até o dia 26, data da cerimônia de abertura. Por isso, Furlan calcula que deve levar mais tempo para chegar ao trabalho. Ela também lamenta que o túnel que garante acesso rápido e seguro para ciclistas, entre a praça da Concórdia e os arredores da Notre-Dame, tenha sido fechado por causa dos Jogos.
“Paris já recebe muitos turistas. A Olimpíada deveria ter sido organizada em outras cidades e até mesmo em territórios ultramarinos franceses que precisam de infraestruturas e mais divulgação para atrair visitantes”, afirma.
Os transportes são um elemento de tensão considerável para os parisienses nessa Olimpíada. Quem toma metrôs lotados diariamente se pergunta como será possível acomodar uma quantidade bem maior ainda de passageiros. A estação Concorde, bastante movimentada, está fechada desde junho até setembro e várias outras, como Champs-Elysées-Clémenceau e Tuileries, também não funcionarão durante alguns dias ou boa parte do evento, enquanto algumas ficarão abertas além do período normal, a noite toda.
O metrô, aliás, vai dobrar de preço durante a Olimpíada, o que vem sendo fortemente criticado. O bilhete unitário custará € 4 durante o evento. O argumento é que mais vagões serão colocados em funcionamento. A Prefeitura de Paris vem estimulando a utilização de bicicletas no período dos Jogos. Uma rede de 60 km de ciclovias vai ligar os locais de competições, também nos arredores da capital. O trânsito, que já é normalmente intenso na cidade, deve se agravar consideravelmente com tantas vias fechadas. Por essa razão, muitos taxistas devem cobrar tarifas combinadas previamente - e mais elevadas - porque preveem fazer menos corridas do que o habitual.
A abertura da Olimpíada de Paris terá um dos maiores esquemas de segurança já vistos na França. Cerca de 300 mil pessoas devem ocupar as margens do Sena para assistir ao desfile com as delegações de atletas. O número inicialmente previsto era de 600 mil, mas ele foi reduzido para limitar riscos. É justamente essa limitação do público que desagrada a Alexei Kouznetsov, agente de segurança do metrô parisiense. “É um evento festivo, incrível. Eu gostaria de assistir à cerimônia, mas os que podem participar são privilegiados, que chegaram a pagar mais de € 2 mil” afirma.
“É tão caro, limitado e com acesso restrito, com barricadas por todos os lados, que isso estraga a festa”, diz Kouznetsov, afirmando que vai ver um pouco da Olimpíada pela TV. Na parte alta das margens do Sena, os lugares para assistir à cerimônia de abertura - 212 mil autorizados pelo Ministério do Interior - são gratuitos. Mas para ter acesso ao local é preciso ter um convite. Eles foram distribuídos a alguns milhares de pessoas que tiveram a chance de ganhar os ingressos após se inscreverem em uma plataforma administrada pelas autoridades, mas mesmo assim há uma limitação do público.
Parte de Paris se transformou em uma fortaleza. O “perímetro de segurança antiterrorista” restringiu o acesso a várias áreas emblemáticas, como a Torre Eiffel, praça da Concórdia, Ponte Alexander III e Invalides, já que muitos locais de provas olímpicas se situam em pleno coração da capital. São lugares onde há geralmente uma circulação intensa, tanto de carros quanto no transporte público.
Diariamente, 45 mil policiais serão mobilizados na capital francesa e seus arredores e boa parte deles já podia ser vista nas ruas da cidade ou nas estações de metrô duas semanas antes do início dos Jogos.
As restrições para se deslocar por Paris se tornaram um quebra-cabeça para muitos parisienses e comerciantes. Pessoas idosas têm problemas com o desvio de linhas de ônibus ou fechamentos de estações de metrô, mas as dificuldades afetam a população em geral. Por causa das obras, mudanças de trajetos têm sido frequentes e, em alguns casos, se descobre na hora mesmo que o acesso previsto não é mais possível.
Residentes e trabalhadores precisam obter o QR Code para ter acesso às áreas com segurança reforçada e como parte da cidade foi dividida em zonas de diferentes cores, que restringem ou não acesso para pedestres, ciclistas e veículos, muitos ainda não estão familiarizados com os perímetros e novas regras. Para os turistas também não será fácil. A entrada de alguns museus, como o Louvre, e outros monumentos teve de ser transferida por se situar na área de segurança mais rigorosa.
Muitos lojistas e donos de restaurantes que se situam nesse perímetro, a zona cinza chamada “Silt” (segurança interna e lutra contra o terrorismo), estão revoltados. Eles imaginavam que a Olimpíada seria uma oportunidade para dinamizar a receita e agora temem a falta de clientes.
Grégory de Witte vai manter fechado seu restaurante especializado em ostras, o Huitrerie Poget & De Witte, até 26 de julho. A charmosa ilha Saint-Louis, bastante visitada pelos turistas, está nessa zona de ultraproteção até a cerimônia de abertura, como grande parte das margens do Sena. “Nos venderam um sonho. Pensamos que seria uma oportunidade fantástica, mas o acesso à ilha será limitado. Não terá ninguém. Será como na época da pandemia de covid-19”, protesta.
A mesma coisa ocorre na ilha de la Cité, onde está a Notre-Dame, com suas ruelas que se transformaram em canteiros de obras barulhentas e repletos de barreiras e grandes instalações metálicas. Difícil ficar em um terraço de café ali para admirar a paisagem em meio a barricadas. A secretaria de segurança pública de Paris determinou o fechamento de todos os bares e restaurantes das ilhas Saint-Louis e Cité em 26 de julho.
Alguns comerciantes dessas áreas estimam que ficarão fechados por mais tempo por estimar que o acesso será complicado e vai desencorajar a clientela. É o caso dos floristas do famoso mercado de plantas a céu aberto Elisabeth II, pertinho da Notre-Dame.
Até mesmo algo que estava deixando os parisienses bem contentes há alguns meses, a possibilidade de alugar seus apartamentos a preços exorbitantes e lucrar vários milhares de euros em apenas um mês, no final não aconteceu como esperado por muitos. A demanda não correspondeu às previsões, e parisienses que iriam viajar ou alugar algo fora de Paris acabaram desistindo porque os valores estavam longe do que havia sido imaginado.
Alguns inquilinos chegaram até a ser despejados por proprietários que viram a possibilidade de lucro rápido e em alguns casos acabaram sofrendo ações por quebra de contrato.
Nem todos estão irritados ou desanimados com a Olimpíada. O jornalista Georges Quioc afirma sentir “orgulho” por morar em uma cidade que estará no centro do mundo nos próximos dias e diz estar curioso em relação à celebração de abertura. Segundo ele, será um “belíssima apresentação” no Sena. Milhares de atletas desfilarão em barcos por seis quilômetros do rio.
Quioc tem o hábito de fazer longas caminhadas diárias pela cidade, mas irá mudar sua rotina. Ele pensa que o centro de Paris será um “verdadeiro inferno” e deixará de fazer passeios pelas margens do Sena entre Alma Marceau e a ilha Saint-Louis no período. Ele também diz temer que os milhões de turistas previstos na cidade “se comportem mal e joguem lixo pelas ruas”.
Os parisienses que reclamam pelo menos conseguiram nos últimos tempos evitar uma série de greves. Várias categorias, como lixeiros, funcionários do metrô e controladores de voos, fizeram paralisações para obter o pagamento de adicionais e bônus durante a Olimpíada e obtiveram ganho de causa, em certos casos de alguns milhares de euros. Eles alegaram uma carga de trabalho mais intensa no período.
A poucos dias da Olimpíada, ainda há desafios, principalmente em relação à cerimônia de abertura. Ensaios técnicos de navegação, para medir as distâncias entre as embarcações, tiveram de ser adiados por conta de fortes chuvas que deixaram o Sena agitado, mas novos testes estão previstos. O volume de água do Sena também tem impacto na poluição do rio, assunto que vem movimentando a imprensa francesa. Ali serão disputadas algumas competições, como a maratona aquático, triatlo e paratriatlo.
A despoluição do Sena se tornou uma prova de obstáculos. As autoridades gastaram € 1,4 bilhão na última década para limpar o rio, mas foi preciso aguardar o fim de junho, um mês antes do início da Olimpíada, para um primeiro boletim atestando que a qualidade da água cumpriu, por vários dias seguidos, os parâmetros que permitem nadar.
O resultado foi novamente confirmado e logo depois, dia 13, a ministra do Esporte, Amélie Oudéa-Castera, tomou banho no Sena, se antecipando à prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que teve de adiar inúmeras vezes seus planos de nadar por causa de problemas na qualidade da água e os reprogramou para o dia 17.
Os parisienses nadaram no Sena até 1923, quando a prática foi proibida em razão dos perigos com a navegação fluvial e a água imprópria para o banho. O suspense sobre as provas olímpicas realizadas no Sena deve permanecer, no entanto, até o último momento.
A França organiza pela terceira vez os Jogos de verão, exatamente um século depois da edição anterior. A primeira foi em 1900. Em uma entrevista, o presidente Macron afirmou que o olimpismo permite reconciliar as nações que estão em guerra ou aplicam e sofrem sanções econômicas. Talvez os Jogos de Paris permitam reconciliar os parisienses com a Olimpíada e também os franceses com a política.
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