domingo, 28 de julho de 2024

A força política da bajulação

 José de Souza Martins

 — Foto: Carvall

 — Foto: Carvall

A destruição até dos laços de família com a polarização manipulada pelo bolsonarismo gerou a desorganização política do país com o crescimento da desorganização social

 

Um dos aspectos mais preocupantes da política brasileira desde o fim da ditadura militar e, acentuadamente, desde a ascensão de Jair Messias à Presidência da República, é o do declínio do humor político. Sinal de que está em decadência a consciência crítica popular que, entre nós, se manifestava no riso.

O bolsonarismo trouxe consigo o ódio às diferenças políticas, a satanização dos diferentes e das diferenças, a intolerância em relação ao outro, suas ideias, seu modo de ser. Trouxe, sobretudo, a ideologia no lugar do saber, da ciência, da arte, da liberdade de pensamento, da consciência crítica, do discernimento e da criatividade.

Na Primeira República, as músicas faziam o desmonte crítico dos fatos políticos e dos chamados figurões da política. Política era tudo. Na Revolução de 1924, em São Paulo, num combate durante uma noite fria no Belenzinho, o tenente João Cabanas, que comandava os rebeldes contra os legalistas do Exército, mandou seus soldados cantarem bem alto “Tatu Subiu no Pau”. Música de Eduardo Souto, sucesso do Carnaval de 1923, o que deixou os inimigos atônitos e vulneráveis. A cantoria fora de hora e de lugar era arma da revolta.

A música carnavalesca fazia parte de um mesmo conjunto de crítica política com as caricaturas de jornais, revistas e almanaques de farmácia.

Por esse crivo, sublinhar e ironizar as incoerências políticas era um modo de expor e ressaltar os aspectos irracionais e contraditórios da ação política. Muitas vezes, com verdadeiros diagnósticos etnográficos dos nossos defeitos políticos.

Desconstruir e ironizar para revelar e desqualificar o avesso de poderosos e do poder tem sido um modo de tomar consciência do que querem nos ocultar para nos dominar. Chico Buarque usou esse recurso político durante a ditadura militar. Dizer para desdizer.

Eu ainda não ingressara no curso primário quando, em 1945, até a molecada da rua, em suas brincadeiras, abria o berro para cantar “O Cordão dos Puxa-Saco”, de Roberto Martins. Puxa-saco não era o patriota, era o frouxo.

Com o fim da ditadura de Vargas, os oportunistas disputaram o vazio do poder, acolitados pelos bajuladores de sempre, suprapartidários. Aqui, isso aconteceria de novo com o fim da ditadura militar de 1964. Quem na véspera fora de direita, no dia seguinte de manhã já era de extremo centro. País macunaímico, temos vivido sob o domínio da cultura dos sem caráter.

O “Cordão dos Puxa-Saco” é composição lembrada ainda hoje porque descreve uma situação que se repete e perdura. Tem alguns detalhes interessantes. Em primeiro lugar, a distinção entre cordão e bloco.

O herói social da música é o bloco, modesto, pequeno, vicinal, comunitário, sem estandarte nem instrumentos. Vilão é o cordão, cheio de recursos, abrigo dos débeis de caráter que encontram seu lugar social puxando o peso que é dos outros.

Em países civilizados, a derrota eleitoral de um partido remove-o de fato do poder, mas não da política. Neles não existe poder indireto e disfarçado. Aqui, estamos vivendo a anomalia de que os derrotados continuam agindo como se o poder tivesse duas faces, a de dentro e a de fora, sendo esta a do poder dos puxa-saco, os lambe-botas, os chaleiras.

Vai se ver se a democracia está sendo derrotada pelo cordão dos puxa-saco. A não desprezível massa de 30% de seres imobilizados ideologicamente e inamovíveis, aprisionados no curral político da mera veneração a quem os capturou não como político, mas como feitor, e tem mais visibilidade como poder do que o governo.

O puxa-saquismo faz das pessoas anômalos cúmplices dos poderosos e neles nega a política como representação e o eleitor como cidadão. Durante a ditadura do Estado Novo, a grande massa getulista legitimava-se enviando cartas ao chefe de Estado, geralmente denunciando como comunistas os conhecidos, vizinhos, colegas, amigos e até parentes.

As cartas eram repassadas aos setores de repressão política do Estado, que fazia o seu serviço. Os delatores julgavam-se patriotas, como se julgam os aduladores de agora. A pátria não pode ser confundida com cordão dos puxa-saco.

A destruição até dos laços de família com a polarização manipulada pelo bolsonarismo gerou a desorganização política do país com o crescimento da desorganização social.

Foi particularmente atingido o caráter comunitário da sociabilidade brasileira e das nossas tradições, a tolerância em relação às diferenças de identidade social, de opção em relação ao que é próprio da sociedade moderna, sua diversidade pluralista e funcional. O puxa-saquismo é a consequência da linearização mental e ideológica da população. Nem Deus escapou. Surgiu entre nós o puxa-saquismo pseudo-religioso.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-a-forca-politica-da-bajulacao.ghtml

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