27 Jul 2024
|Documentos do Arquivo do Vaticano agora revelados em Itália mostram que o fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel Degollado, esteve para ser suspenso durante o pontificado de Pio XII, por ter abusado de dezenas de pessoas. Acabou apenas com ligeiras admoestações para se tratar.
“Aproxima-se rapidamente o tempo em que tudo o que está encoberto será revelado, e tudo o que é secreto será dado a conhecer a todos”, avisou Jesus. As suas palavras poderiam muito bem aplicar-se aos actos obscuros do icónico clero católico que estão enterrados nas entranhas de 85 quilómetros dos Arquivos Secretos do Vaticano.
Em março de 2020, quando o Papa Francisco ordenou a abertura dos arquivos de Pio XII (1939-1958), quase de certeza que sabia que os historiadores iriam destruir a já contestada reputação do seu antecessor como um pontífice que aquiesceu a Hitler e Mussolini durante os regimes nazi e fascista.
Os historiadores não iriam preocupar-se com a forma como Pio XII e os seus cardeais da Cúria lidaram com notórios criminosos sexuais clericais – a não ser que estivessem entre os muitos cardeais, bispos e padres que colaboraram abertamente com os nazis e os fascistas.
Mas continuam a aparecer novos pormenores nas cerca de 16 milhões de páginas, e o último a captar a atenção dos meios de comunicação social é a abordagem ambivalente de Pio XII ao padre Marcial Maciel Degollado, nascido no México – o fundador dos Legionários de Cristo ultra-conservadores e do movimento Regnum Christi.
Os mega-crimes de Maciel
Aclamado como “o maior angariador de fundos da moderna Igreja Católica Romana”, Maciel era um toxicodependente e pedófilo em série que abusou sexualmente de pelo menos 20 seminaristas e mais de 60 menores, entre os anos quarenta e setenta. Foi pai de três filhos com pelo menos duas mulheres e chegou a violar os seus próprios filhos.
Os crimes de Maciel foram replicados pelos Legionários. Uma investigação de 2019 identificou 33 padres e 71 seminaristas da ordem que abusaram sexualmente de menores nas últimas oito décadas. Um terço dos predadores clericais foram eles próprios vítimas de Maciel.
Maciel obrigou os seus legionários a fazerem votos privados, a nunca falarem mal dele e a denunciarem quem o fizesse. A ordem, semelhante a um culto, vilipendiava os ex-Legionários que sofriam abusos quando estes tornavam públicas as suas acusações. Só em 2009, os seus dirigentes inverteram radicalmente o rumo, reconhecendo que Maciel tinha gerado vários filhos.
Quatro papas, que sabiam dos seus graves delitos, fizeram vista grossa durante mais de 50 anos. Em 2006, o Papa Bento XVI deu a Maciel, de 85 anos, uma pena equivalente a uma palmada no pulso, restringindo-o a uma “vida de oração e arrependimento”. O predador em série morreu em 2008.
Uma bomba dos arquivos
No último domingo, 21 de Julho, o suplemento cultural do jornal italiano Corriere della Sera, La Lettura, provocou uma tempestade mediática depois de ter noticiado que Pio XII, o último pontífice “tradicionalista”, sabia da má conduta de Maciel. O jornal desenterrou dos arquivos um memorando de 1 de outubro de 1956 do arcebispo Giovanni Battista Scapinelli, o nº 3 da Congregação para os Religiosos do Vaticano, ordenando a desintoxicação de Maciel.
No rascunho original escrito por Scapinelli pode ler-se: “Vou ordenar-lhe que se trate, que abandone qualquer contacto com os seus alunos até que a congregação diga o contrário. E se ele não aparecer, dentro de dois dias, deve ser dada uma ordem preventiva a Maciel: ou vais tratar-te ou ficarás suspenso a divinis” (uma censura que priva um clérigo total ou parcialmente do seu cargo).
O segundo parágrafo do projeto, guardado numa pasta com a menção “Ordens religiosas masculinas”, afirma: “Por razões conhecidas pelo Santo Padre, foi suspenso do cargo de Superior.” Note-se que Pio XII não suspendeu Maciel do sacerdócio, mas do seu cargo de superior dos Legionários.
Um rascunho subsequente do memorando foi publicado em 2012 pelas vítimas mexicanas de Maciel no sítio espanhol intitulado La Voluntad De No Saber (“A vontade de não saber”). O rascunho mostra que Scapinelli riscou a sua ordem original que impedia Maciel de ter contacto com os seus seminaristas e apenas ordenou que Maciel recebesse tratamento para a sua dependência.
O rascunho contém uma página e meia extra de notas manuscritas de Scapinelli que relatam um encontro entre Maciel e o cardeal Giuseppe Pizzardo, que teve lugar a 2 de outubro.
Proibições suprimidas
Para além dos dois rascunhos acima referidos, os arquivos da Secretaria de Estado do Vaticano contêm uma versão final do memorando, datada de 2 de outubro de 1956, que omite qualquer proibição de contacto com seminaristas ou ameaça de suspensão, e apenas exige que Maciel procure tratamento médico.
As restrições impostas a Maciel desaparecem após o encontro com Pizzardo, um prelado ultra-tradicionalista que era secretário do Santo Ofício (da Inquisição) na altura e amplamente conhecido no Vaticano pela alcunha de “Rasputin”.
Maciel respondeu à ordem do Vaticano em 3 de outubro de 1956, descrevendo a sua saúde como “satisfatória” e anexando um atestado médico. No entanto, concordou em obedecer “humildemente” e procurar tratamento. O predador concluiu, apresentando-se como vítima de uma “acusação caluniosa” e fornecendo uma lista de propriedades compradas pelos seus Legionários de Cristo, gabando-se do seu sucesso na angariação de fundos.
Massimo Franco, que divulgou a história no La Lettura, aponta Pizzardo como o “grande protetor” de Maciel. Os historiadores descrevem a enorme influência de Pizzardo sobre Pio XII. Pizzardo estava presente quando Pio XII (então cardeal secretário de Estado Eugenio Pacelli) assinou o acordo do Reich com Hitler em 1933.
“Psicose elefantina pelo poder”
O prof. David Kertzer, no seu livro The Pope and Mussolini: The Secret History of Pius XI and the Rise of Fascism in Europe, que recebeu o Prémio Pulitzer, observa que Pizzardo era “um favorito de Pio XI, mas impopular entre muitos no Vaticano, que associavam a sua influência ao seu acesso ao dinheiro dos católicos americanos”.
Os seus próprios amigos lamentavam a sua “psicose mórbida e elefantina pelo poder e pelos cargos burocráticos”, escreve Kertzer, notando que “Pizzardo se tornou o principal canal do Papa para estes fundos americanos”. Pizzardo era tão influente que o cardeal Bonaventura Cerretti, prefeito do Supremo Tribunal da Signatura Apostólica, chamou a Pio XII um “escravo nas mãos de Pizzardo, que o movia como uma marioneta”.
Muitos católicos tradicionalistas, que consideram Pio XII como o último papa que defendeu a “verdadeira fé” antes de, na sua opinião, esta ter sido diluída pelos papas do Vaticano II, não só deixam passar a sua capitulação perante as ideologias religio-políticas pagãs do fascismo e do nazismo (como escrevo aqui), como também ignoram o seu historial em matéria de abusos sexuais por parte de clérigos (muitos dos quais estão agora a vir à luz nos arquivos).
O registo de Pio XII sobre os abusos sexuais do clero
Quando Pacelli era secretário de Estado, ocupou-se de uma questão espinhosa que estava a surgir na relação entre a Alemanha nazi e o Vaticano. Centenas de padres na Alemanha e na Áustria tinham sido acusados de abusos sexuais, incluindo o abuso de menores.
Uma pasta dos arquivos recentemente abertos tem a seguinte etiqueta: “Viena: Ordem para queimar todo o material de arquivo relativo a casos de imoralidade de monges e padres.” Estaria o Reich a usar estes casos para chantagear o Vaticano? Nunca saberemos, porque o Vaticano continua a recusar-se a permitir que os estudiosos examinem os seus ficheiros sobre os abusos sexuais clericais desse período (ou de outros períodos).
Na mesma pasta, outra nota ordena às cúrias episcopais e aos arquivos das congregações e ordens na Áustria que “todo o material relativo a casos de imoralidade de padres seja imediatamente e sem exceção queimado e também os números dos protocolos cancelados. (…) O assunto é extremamente delicado, mas muito urgente”.
Depois de se tornar Papa, no primeiro dos seus encontros secretos, em maio de 1939, com o príncipe Philipp von Hessen – que era a peça-chave nas negociações regulares entre Hitler e Pio XII – a dupla discutiu a crise dos abusos sexuais clericais. “Ninguém sabe que estamos a ter esta conversa. Nem mesmo os meus colaboradores mais próximos sabem”, garantiu o Papa ao príncipe.
Culto dos predadores sacerdotais
Ironicamente, aqueles que apregoam a missa em latim como a bala de prata que salvará a Igreja Católica, e difamam o Vaticano II como o cavalo de Troia que trouxe os males do modernismo, do pluralismo religioso e da imoralidade sexual no seio do sacerdócio, não conseguem ver que a grande maioria dos mais notórios predadores clericais da Igreja foram todos ordenados antes do Vaticano II e celebraram piedosamente a missa em latim.
A lista é interminável, a começar pelo ex-cardeal Theodore McCarrick. Um relatório arrepiante publicado em junho de 2023 revela como 72 padres e seis freiras da Comunidade de São João usaram uma teologia desonesta para abusar sexualmente de 30 freiras, 69 leigas, 29 menores, 17 irmãos e 10 rapazes com menos de 15 anos.
O relatório admite o “papel central” desempenhado pelo fundador da ordem, o padre Marie-Dominique Philippe, nos abusos “sistémicos” e refere que o padre violou 20 mulheres, incluindo várias freiras. [ver 7MARGENS] O fundador da comunidade, venerado por muitos dos seus discípulos como um “santo”, tal como Maciel, sancionou uma “terceira via” de relações de “amizade amorosa” que envolvia uma dimensão sexual entre religiosos e religiosas “a par do casamento ou do celibato consagrado”.
Formou-se uma “teia de aranha” de relações entre padres predadores que envolveu o Padre Marie-Dominique Philippe e o seu irmão Padre Thomas Philippe, que também abusou em série de freiras e mulheres leigas.
“Por isso, tudo o que dissestes nas trevas será ouvido à luz, e o que segredastes em quartos privados será proclamado nos telhados”, profetizou Jesus. Sim, mesmo nas primeiras páginas dos jornais seculares e nas redes sociais, Nosso Senhor poderia muito bem ter avisado.
*Jules Gomes é doutor em estudos bíblicos pela Universidade de Cambridge. Atualmente, é jornalista acreditado pelo Vaticano, baseado em Roma, e autor de cinco livros e vários artigos académicos. Lecionou em seminários e universidades católicas e protestantes e foi teólogo canónico e diretor artístico da Catedral de Liverpool (Inglaterra). Este texto, cedido pelo autor, foi publicado com a autorização do The Stream, onde o artigo original em inglês pode ser lido.
Fonte: https://setemargens.com/o-papa-pio-xii-queria-que-o-predador-sexual-clerical-mais-depravado-da-igreja-catolica-fosse-tratado/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete%2BMargens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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