segunda-feira, 15 de julho de 2024

Como criar modelos de futuro

 

 Máscara de luz vermelha em exibição na CES, feira em Las Vegas - 
  Brendan Smialowski - 11.jan.24/AFP

Menos aleatório do que parece, futuro pode ser tratado com cientificidade

Em período eleitoral, o futuro cai na boca do povo. Diversos institutos divulgam suas estimativas, enquanto agregadores geram metatendências, a partir do reprocessamento desses resultados, levando em conta a relevância do instituto, o método utilizado e outras coisas mais.

A grande referência atual é Nate Silver, que abandonou a consultoria para jogar pôquer, no início dos anos 2000, mas ganhou notoriedade pela precisão de suas estatísticas, inicialmente para baseball e depois para política.

Em seu livro mais famoso, "O Sinal e o Ruído", de 2012, o estatístico americano destacou sua predileção pela inferência bayesiana, um método que atribui probabilidades condicionais a eventos e as atualiza conforme novas informações surgem. Embora não seja a abordagem tradicional em neurociências, meu campo de origem, a considero a mais relevante para refletir sobre ocorrências futuras no mundo social e tecnológico, áreas em que o conhecimento prévio e a flexibilidade para atualizar crenças são indispensáveis.

Nate se tornou mundialmente conhecido em 2008, quando previu com precisão o resultado das eleições nacionais americanas em 49 dos 50 estados. Ele cravou novos acertos em 2012 e em várias outras ocasiões, usando uma metodologia adaptada das ciências biomédicas.

No momento da publicação deste artigo, atribui mais de 65% de chance de vitória a Donald Trump sobre Joe Biden nas eleições deste ano, uma previsão que precisa ser tomada com cautela dado que o candidato democrata pode mudar, especialmente após trocar o nome de sua vice pelo de seu concorrente e chamar Zelenski de Putin, justamente quando precisava provar que não está sofrendo de demência.

Entre as várias boas ideias de Nate, está a noção de que os elementos usados em projeções mudam com o tempo. Em uma corrida eleitoral, por exemplo, indicadores econômicos são apenas informativos quando o pleito está distante. À medida que este se aproxima, as pesquisas de opinião tornam-se predominantemente determinantes.

Outra ideia importante é a distinção entre previsões e estimativas, sendo as previsões abertas a múltiplos desfechos e as estimativas definidas estatisticamente a partir de opções específicas. Conforme esclarece em seu livro de 2012, ele prefere se ocupar dessas últimas.

Ocorre que os desafios em que criar opções é essencial costumam superar em relevância aqueles em que a cartela de desfechos é definida de antemão. Em geral, problemas mais imediatos tendem a ser tratados com as opções disponíveis, enquanto problemas projetados para anos à frente são enfrentados de forma mais criativa, utilizando estratégias que mitiguem as chances de concretização dos piores prognósticos.

Um exemplo é o aquecimento global. Uma pesquisa com especialistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) mostrou que quase 80% projetam que a temperatura subirá 2,5°C em relação aos níveis pré-industriais durante este século, sendo que muitos preveem um aumento de 3°C. Este último valor é considerado o ponto de virada, a partir do qual as consequências, dramáticas, irão se tornar irreversíveis.

Esses números não representam estimativas no sentido em que Nate Silver as concebe, mas sinalizadores da necessidade de mudanças produtivas e comportamentais para evitar que o prognóstico se materialize. Se você fizer um levantamento com autores de artigos que indicam subida de 3°C, provavelmente encontrará alguns com planos de ter filhos.

Os problemas que mais me interessam são justamente esses em que a construção de opções é meio caminho andado. Porém, como sair do domínio do imponderável, injetando cientificidade no processo de construção de cenários e atribuição de risco?

A saída que eu vejo é seguir alguns princípios, começando pela separação das previsões em rígidas e flexíveis, sendo as rígidas sobre o que tende a acontecer e as flexíveis sobre o que pode acontecer. Muitas previsões atingem seu objetivo quando negadas pelos fatos, ou melhor, pelo esforço para a sua evitação.

Outro princípio é sobre os limites do que podemos conceber, ou seja, sobre a natureza das conjecturas. Previsão é o processo de atribuição de chances de realização a cenários hipotéticos. Seu domínio intelectual principal não é a análise de risco, mas a imaginação, que opera por mapeamentos e paralelismos.

A imaginação consiste menos em fabricar representações a partir de bits do que em recombinar imagens e ideias. Fazendo um paralelo com as ciências biológicas, a imaginação é menos o processo de criar células a partir de moléculas e mais o de criar tecidos a partir de células.

O presidente informa que a unidade de negócios em que você trabalha será fechada. Você pode se mudar para Belo Horizonte ou ir embora. Quase imediatamente, você começa a criar cenários mentais sobre essa situação. O fato de nunca ter passado mais do que uma semana na capital mineira de forma alguma o bloqueia. Como isso é possível? A chave está no fato de que cenários futuros são compostos de analogias autobiográficas. Registros do passado fornecem os elementos recombinantes das projeções do amanhã. Até as áreas cerebrais envolvidas são as mesmas.

A consequência é que a criatividade para conceber alternativas é fortemente influenciada pela variedade e profundidade do repertório que se possui. Ninguém é capaz de pensar além dos limites da sua própria realidade, e nenhuma cultura pode se orientar de forma verdadeiramente nova sem a influência direta de outra. Até o helicóptero de Leonardo da Vinci se encaixa aqui.

O mesmo pode ser dito sobre o que sentimos enquanto refletimos em antecipação. A angústia atribuída ao risco de desaparecimento dos empregos devido à inteligência artificial, por exemplo, apenas reativa angústias latentes e manifestas do tempo presente.

Esses princípios iniciais nada informam sobre como fazer previsões melhores. Seu papel é servir de introdução à aplicação dos que tratam diretamente da maneira como o mundo tende a ser.

Neste segundo domínio, um princípio que trago comigo é o de que o passado é o melhor proxy para o futuro. É ele que está por trás dos milhões de reais investidos anualmente por bancos e seguradoras em algoritmos decisórios.

Mesmo quem acha que discorda, na prática, tende a concordar. Imagine que você precise indicar onde encontraremos a maior propensão per capita para cometer crimes em dez anos. Qual seria a sua resposta? Para mim, é óbvia: na cadeia. Ainda que ocorra uma revolução na ressocialização de presos, a chance de reincidência criminal deverá continuar muito superior à de que um crime seja cometido por uma pessoa sem histórico criminal.

Se você não tem a menor ideia do que pode acontecer, parta da hipótese de que as coisas podem simplesmente continuar como estão no nível mais essencial. O problema é que esse raciocínio tem limites; não fosse o caso, a realidade atual seria parecida com a de 1970. Portanto, acrescento um ajuste a ser aplicado quando se tem ideia do terreno em que se está pisando: tudo se transforma, mas as velocidades variam. Quem acha que o mundo está sendo virado de cabeça para baixo tende a errar por excesso de abrangência, enquanto quem acha que nada muda tende a errar pela razão oposta.

Um fundo de investimentos quer saber quais empresas do seu portfólio têm mais chances de lograr êxito em cinco anos. Elas estão divididas da seguinte forma: uma parte é de softwares na nuvem para empresas (SaaS), outra parte é de sistemas de pagamento, uma terceira é composta de marketplaces, mas há também ecommerces e marketing de afiliados, que é o modelo dos influencers. Minha resposta é simples: SaaS, sistemas de pagamento e marketplaces têm boas chances, enquanto ecommerces e marketing de afiliados têm chances bem menores.

Mas como? Qual é a tese sobre o futuro dos mercados que sustenta essa afirmação? É simples: modelos de negócio, sem dúvidas, estão em transformação, mas de forma lenta —muito mais lenta do que os modelos de produtos. Isso favorece a hipótese da convergência ao status quo no intervalo definido.

Os três primeiros modelos de negócios concentram mais de 75% dos atuais casos sucesso de aceleradoras de negócios de referência, como a Y Combinator, enquanto ecommerces e plataformas de afiliados não chegam a 5% do portfólio de acertos.

Outro princípio de natureza empírica que aplico é que toda tendência tende a trazer a semente do seu oposto —um princípio de inspiração hegeliana. Por exemplo, a pandemia fez as massas urbanas perceberem que muitas de suas relações presenciais são pura perda de tempo. Isso levou à crescente valorização do online, o que não tardou a estimular um novo movimento, em que o presencial passou a ser hipervalorizado.

Hoje em dia, quando me perguntam se acho que investir em eventos online é uma boa, digo que não —a tendência do momento é o presencial. Já a médio prazo, acho o oposto.

Também na esfera dos princípios oriundos da filosofia da história, desenvolvi um sobre a relação entre o clima psicossocial dominante e o potencial de uma inovação, que pode ser resumido da seguinte forma: o verdadeiro responsável pelos sucessos maciços do nosso tempo não é a tecnologia, muito menos o marketing, mas as visões de mundo em ascensão no período.

Durante a pandemia, surgiram várias redes sociais de áudio, um formato que funciona melhor de maneira síncrona, sendo ideal para quem está entediado em casa, mas não para quem tem poucas janelas temporais longas para preencher. Bastava refletir sobre isso para perceber que suas chances de consolidação, amplamente divulgadas, eram baixas.

Em contraste, a digitalização da experiência abriu espaço para a interação com avatares. Hoje, o metaverso tornou-se motivo de chacota, mas deixo registrado que acredito que a visão de Mark Zuckerberg tende a se realizar, ainda que muitos anos após sua previsão.

Fecho o inventário de princípios com este: as mudanças planejadas sempre demoram muito mais do que se pressupõe, enquanto a dinâmica da transformação, após engatar, tende a ser mais veloz do que jamais imaginado.

* Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-machado-dias/2024/07/como-criar-modelos-de-futuro.shtml

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