Entrevista com Marco Vannini
O filósofo Marco Vannini é o editor do volume Meister Eckhart: la luce dell'anima [Mestre Eckhart: a luz da alma] (Lorenzo de' Medici Press, 2024). Em continuidade com a entrevista Sobre a verdadeira religião (aqui, em italiano), Giordano Cavallari faz-lhe perguntas sobre o conceito místico cristão eckhartiano e, portanto, sobre a sua relevância.
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 01-07-2024.
Eis a entrevista.
Marco, o que este volume acrescenta ao conhecimento de Eckhart, em italiano?
Novamente apresenta apenas três sermões, inéditos em italiano, enquanto a Introdução, completamente nova, ouso esperar, acrescenta ou especifica algo sobre o pensamento do Mestre.
Apresento-lhe algumas citações dos sermões deste volume e peço-lhe, brevemente, que os comente.
"Quem quiser penetrar nas profundezas de Deus […] deve primeiro penetrar nas suas próprias profundezas […] porque ninguém conhece a Deus sem primeiro conhecer a si mesmo."
A teologia é antes de tudo uma antropologia, ou seja, fruto da forma como pensamos e pensamos sobre nós mesmos. Xenófanes já sabia disso: os etíopes imaginam seus deuses como de pele escura, os trácios como loiros, etc. Devemos, portanto, antes de tudo, esclarecer-nos. “Conhece-te a ti mesmo”, advertia a sabedoria grega, e os cristãos acrescentavam: “e conhecerás a ti mesmo e a Deus”.
Esta afirmação é retomada, quase literalmente, não só por Eckhart, mas também por São João da Cruz.
(Foto: Divulgação)
"O homem conhece sob uma luz verdadeira onde não há tempo nem espaço, sem aqui e sem agora."
Existe uma realidade do homem colocada no tempo, na corporeidade, na multiplicidade; mas há também uma realidade diferente (e mais verdadeira), que o situa não no tempo, mas no eterno, não no corpo, mas no espírito, não no múltiplo, mas no Uno.
"Quando Deus fala na alma, Ele e ela são um."
É um dos pontos mais importantes – e difíceis – de Eckhart, argumentar que “a alma e Deus são um”, tema ao qual dediquei um livro com este título específico (2020). Um conceito que pode parecer blasfemo, mas que é especificamente cristão, o do unitis spiritus, como diz São Paulo: “Quem está unido ao Senhor é um só espírito com ele” (1 Cor 6,17).
"A verdade coloca-se num saber único e desprende-se do múltiplo."
O múltiplo é a regio dissimilitudinis alienante de que fala Santo Agostinho, ou seja, o turbilhão de sensações, volições, pensamentos, em que se perde o nosso psiquismo. A luz, a paz, estão no Um.
"O homem habita com Deus numa só luz e portanto não há nele sofrimento nem sucessão."
Estamos sempre no mesmo assunto. Esta frase alude à felicidade de estar no Um, no eterno presente, fora da dimensão alienante do tempo. "Tanto em Deus como na paz", escreve o Mestre.
"A pessoa virgem [...] como Jesus é desapegada, livre e intacta em si mesma."
Eckhart interpreta a virgindade num sentido espiritual, como desapego do ego, do amor próprio. É a condição que Jesus exige de quem quiser segui-lo: “Quem quiser seguir-me, negue-se a si mesmo”, abneget se ipsum, diz o latim da Vulgata.
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Agora, algumas perguntas para entender melhor. A primeira: que ideia da Trindade Eckhart tem?
Sobre este ponto não há pensamento específico de Eckhart, que se refere ao De Trinitate de Santo Agostinho, com a teoria da Trindade impressa nas faculdades da alma. Mas não devemos pedir a Eckhart uma teologia, isto é, falar de Deus, que é sempre fruto da nossa apropriação: precisamos ir além de cada imagem de Deus, em direção ao fundo da nossa alma, porque ela está aí e só aí que o divino.
O que é “desapego” para Eckhart e como isso é alcançado?
O desapego é a chave de tudo. A própria essência do pensamento, da filosofia desde a sua origem grega, e depois do cristianismo, que, na sua mística, dá continuidade à filosofia clássica, como demonstrou Pierre Hadot. Consegue-se voltando a alma para a verdade, para o Absoluto e, portanto, descobrindo honestamente que tudo o que somos e pensamos é relativo, sujeito ao espaço e ao tempo. Assim se cria um vazio em nossa alma, que se torna receptiva à luz eterna.
Fácil de dizer, talvez mais difícil de conseguir, até porque é um caminho que nunca termina: a cada momento é necessário desapegar-se do egoísmo, que tende incessantemente a reafirmar-se.
O que é o mal para Eckhart e como superá-lo?
Como ensina Santo Agostinho, que sentiu profundamente o problema, a palavra “mal” significa muitas coisas: dor, mal moral, mal ontológico, por assim dizer, ou realidade oposta ao Bem. A especificidade de Eckhart é combater o pensamento do mal neste último aspecto: pensar o mal é pensar que algo não tem causa, e isso é um absurdo. O pensamento do mal é, portanto, um pensamento tolo, sem inteligência.
É claro que isso não significa negar a dor ou o comportamento errado. Igualmente óbvio, o mal moral é superado voltando-se para o Bem.
Que proposições ou ideias foram condenadas em Eckhart?
Primeiro, digo que as proposições condenadas são todas tiradas de contexto. Em sua defesa, Eckhart afirma, portanto, que elas não são de todo heréticas, mas podem ser explicadas de uma forma absolutamente ortodoxa.
Porém, antes de tudo, é condenada a tese da eternidade do mundo, que de fato no pensamento do Um sempre esteve em Deus. Depois, são condenadas algumas proposições que sustentam que o homem bom é o Filho de Deus como Cristo. Outros dizem respeito ao pensamento do mal, como mencionado acima, outros ainda à presença na alma de um componente eterno e incriado. Outros são de importância relativamente menor.
Na introdução deste volume você nota, hoje, além das raízes históricas de Eckhart na tradição cristã platônica e neoplatônica, singulares convergências com a mística oriental (hindu e budista). Como você os explica?
Eckhart estava convencido de que a luz de Deus sempre brilha sobre todos: pagãos, cristãos, etc. Portanto, não precisamos reivindicar um privilégio, pelo qual temos o que os outros não têm ou os antigos não tinham. Mesmo que não existissem as Escrituras, ainda existiria a criatura, e “toda criatura está cheia de Deus e é um livro”: uma frase de profundidade e beleza incomparáveis. Ou seja, a revelação não está no exterior, mas no interior do homem: Ininterno homine habitat veritas, como diz Santo Agostinho.
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Então, a teologia de Eckhart não torna a própria teologia inútil?
Bem, num certo sentido paradoxal, sim: torna inútil uma suposta ciência de Deus. Não conhecemos Deus como Outro; conhece-se Deus no fundo da alma, tornando-se luz dentro da luz.
A obra de Eckhart não pode aparecer como uma gnose em que o que conta é o esforço do intelectual, do humano, mais do que a graça?
Não, não tem. A graça tem um papel fundamental, como também se pode compreender pelo que foi dito acima: a luz divina, que é graça, sempre se derrama e preenche a alma que criou o vazio necessário para recebê-la. O papel da inteligência é grande, porque é a inteligência que se desprende, pois reconhece sempre o relativo, o finito e, portanto, abre espaço para o Absoluto.
Não é este um pensamento que, para além das intenções de Eckhart, nos distancia do mundo e da boa política?
Esta é uma velha objeção que sempre foi levantada contra os místicos: que eles realizam uma espécie de fuga do mundo. É errado pensar assim; apenas que o místico opera de uma forma profundamente diferente do político.
Por que você acha que Eckhart poderia ser relevante em nossa época?
O que é verdade é atual como sempre, hoje como ontem. Hoje vivemos numa época de grande confusão moral, cultural, existencial, naufragados entre mil propostas psicológicas, teológicas, etc., por isso o ensinamento do Mestre visava, antes de tudo, como dizíamos, ao conhecimento essencial, aquele de nós mesmos, parece particularmente relevante para mim.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/640963-eckhart-a-alma-e-sua-luz-entrevista-com-marco-vannini
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