A entrevista é de Giulio D'Antona*
Livro Dialoghi sulla fede, pela editora La nave de Teseo (Foto: Divulgação)
Há uma linha tênue entre a vida e a fé, de acordo com Martin Scorsese. É muito semelhante ao jogo do destino que substituiu o chamado missionário de um coroinha que cresceu nas ruas de Nova York na década de 1950 por uma vocação para a narração de histórias, entregando-o para sempre à história do cinema. Em Dialoghi sulla fede (Diálogos sobre a fé, em tradução livre, publicado pela La nave di Teseo), Scorsese se confronta com o teólogo jesuíta Antonio Spadaro. O que resulta é uma reflexão profunda, parábola e história de formação, com aquela veia de religiosidade que alimenta o imaginário de um dos grandes mestres da imagem em movimento.
Eis a entrevista.
De onde vem a sua fé?
Scorsese: Vivia em um mundo difícil, a Manhattan dos imigrantes italianos, do crime organizado. Era um lugar onde muitos viviam no pecado. Pessoas boas, obrigadas a fazer coisas ruins para sobreviver. Pessoas que diziam no confessionário: "Sei que pequei, mas não tive escolha”. Mesmo que inconscientemente no início, foi aí que minha fé nasceu.
Spadaro: Quando menino, em Messina, eu costumava espiar as ruas da sacada, estimulava a minha curiosidade e sensibilidade. Eu era tímido, mas em um determinado momento a necessidade de explorar a fé me fez ir para as ruas. Eu sentia que tinha uma espécie de missão, que vinha de meus pais, que me ensinaram a orar e a cultivar esse instinto íntimo de observação e ação. Martin e eu compartilhamos o ponto de observação.
É mesmo?
Scorsese: Sim, eu também costumava olhar a rua da sacada. Que na verdade era uma escada de incêndio.
Por que motivo?
Scorsese: Eu sofria de asma, não podia ficar muito andando na rua. Meus pais não eram muito religiosos. Eles desconfiavam de tudo e de todos. Eles iam à igreja ocasionalmente, mas principalmente por hábito. Eu ia porque, para mim, era um lugar de refúgio. Lá fora era o caos, lá dentro a salvação. O que eu sempre me perguntei é como levar essa salvação para fora do lugar físico.
Spadaro: Há uma coisa que li em um livro que o próprio Martin me deu de presente: 'O lugar da fé é no coração'. Temos um refúgio no coração, que passa pelas ações, os gestos de misericórdia.
Viram isso acontecer?
Scorsese: Eu vi isso o tempo todo entre os necessitados. Vi os alcoólatras ajudando uns aos outros, os pobres ajudando os pobres com o pouco que tinham. Pessoas que mal conseguiam se manter em pé segurando outras e depois caindo juntas. Eu não tive a disposição para participar dos grupos de voluntários do bairro, mas estava lá como observador. Fazia parte de minha vida.
Spadaro: Essa relação entre a rua e a igreja é um paralelismo que sempre me chama a atenção. Há uma correlação, um intercâmbio entre esses dois mundos que representa a zona de fronteira na qual a caridade cristã se manifesta.
Scorsese, você já pensou em se tornar padre?
Scorsese: Claro que sim. Quando comecei a conhecer a rua, entendi que teria de escolher um lado. Eu sabia que não tinha jeito para ser um gângster, nem para ter um trabalho de funcionário público. Por outro lado, no início da década de 1950, conheci um bom sacerdote. O Padre Principe era um padre de rua, que jogava taco e basquete com a gente, nos levava ao cinema, nos dava para ler livros de Eugene O'Neill, Graham Greene, Dwight Macdonald.
Parece um personagem de seus filmes...
Scorsese: Ele se tornou um. Era o meu mundo, o meu imaginário. O único defeito que ele tinha era tentar constantemente fazer com que eu praticasse esportes. Ele não entendia que, como asmático, eu não conseguia fazer nada por mais de alguns minutos sem ficar ofegante. De qualquer forma, entrei para o seminário porque queria me tornar como ele. A conversão, para mim, é uma questão de emulação: você se aproxima das pessoas que gostaria de ser.
Como isso terminou?
Scorsese: Eles me mandaram embora. Aliás, eu fui embora. Em um determinado momento, entendi que minha vocação não poderia se limitar a querer ser outra pessoa. Era preciso sentir isso por dentro e eu não sentia. Foi uma sorte, porque então encontrei o cinema.
E o senhor, Padre Spadaro, alguma vez pensou em não se tornar padre?
Spadaro: Sim. Quando eu tinha dezesseis anos, tinha minhas dúvidas. Não eram paralisantes, mas o suficiente para me fazer questionar minhas decisões. Eu me perguntava se Deus estava realmente na minha vida. Depois entendi uma coisa: as minhas dúvidas não eram problemas, mas mistérios com os quais eu teria de lidar durante toda a vida. E a resposta para um mistério - essa é outra coisa que Martin me ensinou - nunca é completa. Um mistério não se resolve, mas sua resolução é continuar a se questionar.
É esse o objetivo de um sacerdote?
Spadaro: Em um certo sentido. Concretizou-se quando decidi me tornar um jesuíta. Um professor meu disse à minha mãe que eu poderia me tornar um jesuíta ou um terrorista. Para ser terrorista, ainda há tempo.
Scorsese: O padre Principe não era jesuíta.
Spadaro: Ninguém é perfeito.
Cinema e literatura: também são vocações?
Scorsese: O cinema me abriu os mundos que existiam além da Little Italy: Ford, Rossellini, Rosi, Kurosawa. Eu não estudei muito, mas aprendi uma premissa fundamental: em quatro horas você adquire as competências técnicas, todo o resto é feito pelo talento. Quando comecei no cinema, uma nova corrente underground estava se desenvolvendo justamente em Nova York. Um movimento do qual eu nunca fiz parte, mas que observei. Ele me deu os meios para adiar meu relacionamento com um outro inferno na Terra, diferente daquele que eu conhecia em Manhattan.
Qual?
Scorsese: Hollywood.
Spadaro: O senso de Martin para o cinema tem algo de místico. É fascinante.
É possível veicular a mensagem de fé por meio de arte não religiosa?
Spadaro: Sim. Não acredito que se possa ter um diálogo limitado apenas à fé, como se fosse uma ideia abstrata. Deve-se sempre falar sobre todos os tipos de histórias: histórias reais, não apenas histórias de santidade. A fé pode ser mediada por qualquer história.
A religião não corre o risco de prevaricar?
Spadaro: Não se for utilizada de maneira adequada. Martin me disse: tudo é apenas uma questão de graça, e a graça é algo que acontece na vida. Liga o cinema à vida real e, se for verdade que fazer filmes é prestar justiça à vida, então a mensagem é indissolúvel.
Scorsese: Os filmes e os romances declaradamente religiosos são muito menos eficazes do que aqueles que falam da vida, do conflito, do amor, da raiva, do ódio. Esses encarnam um sentido do absoluto muito mais direto. Vivemos em um mundo niilista e, no geral, acho que há muito mais reflexão sobre a fé em Cassino, no materialismo de Las Vegas, do que em A Última Tentação de Cristo.
A religião, no entanto, pode limitar a arte...
Scorsese: Muitas vezes penso sobre isso. A pergunta que me faço é: é possível duvidar e ter fé ao mesmo tempo? A arte deve causar divisão. Há romances que ficaram no índice por décadas antes de percebermos que não havia nada de errado com eles. A consciência muda, assim como a maneira de ler a mensagem. Vivemos em um período de nova censura não religiosa, baseada em bons princípios, mas ainda assim limitadora. Isso é perigoso. E esse é o sentido da minha dúvida: é possível raciocinar e ainda assim ter fé.
Qual é a resposta?
Scorsese: Na minha opinião, é possível.
Spadaro: A arte foi feita para nos colocar à prova, não devemos temê-la. Flannery O'Connor, que era uma pessoa crente, disse: "Somente uma pessoa de pouca fé pode ter medo". A censura não é um produto da fé, mas de uma sua visão ideológica; uma contrafação ditada pelo medo de que algo diferente possa substituí-la.
Scorsese: O medo de perdê-la.
Spadaro: Exatamente. Estamos perdendo o contato com os questionamentos primários e ganhando contato no medo. Se antes à pergunta "Quem sou eu?" se respondia com uma longa reflexão, hoje se responde com uma selfie. É isso: precisamos reduzir a distância entre o espírito de si e a selfie.
Scorsese: "Quando derem uma esmola a um sem-teto, olhem-no nos olhos”, diz o Papa. Eu cresci olhando as pessoas nos olhos e penso que é isso que precisamos reconstruir: o contato humano.
*Publicada por La Stampa, 10-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/641269-a-arte-da-fe-entrevista-com-martin-scorsese-e-antonio-spadaro
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