António Alçada Baptista*
Não me importa nada
por ser burguês, mas se o não fosse não seria para aderir ao proletariado. O
contrário de burguês é o boêmio e o marginal.
Um burguês é um
senhor integrado numa sociedade com uma estrutura que lhe permite ter uma
casinha, uma comida a tempo e horas, uma capacidade de escolher o que quer
vestir. Um automóvel e assim. Estes desejos são perfeitamente legítimos e a
sociedade devia organizar-se de maneira que todos tivéssemos essa participação
no reino das coisas. A verdade é que a reivindicação dos homens anda sempre à
roda do mundo das coisas e com muita dificuldade encontramos alguém que faça reivindicações:
no amor, na paz, na fraternidade, numa data de coisas de que a intelligentsia fala nos seculos XIX e XX
e que pouco tinham a ver com as coisas.
Não quero dizer que
tenhamos que por de parte as coisas. Gandhi é que ficou muito contente porque
numa de suas caminhadas partiu o espelho de fazer a barba, mas quando chegou a
um lugar onde se vendiam espelhos, ele já não precisava porque tinha aprendido
a fazer a barba sem espelho. O verdadeiro despojamento é das coisas, mas eu
confesso, que tive algumas amarras que me ligaram ao mundo das coisas. Eram os
livros. Um menino burguês tinha livros e a sua vida andava à volta dos livros
que já tinha, dos que que lhe faltavam, dos que tinha de comprar de qualquer
maneira. Na minha juventude havia muitos assim era uma espécie de confraria de
meninos que compravam livros, não sei se os liam, mas era um comportamento que
está inerente à nossa condição. Fartei-me de comprar livros ao ponto de não
poder ler os livros que comprava. “Ficam para a minha velhice”, dizia eu na
tentativa de ter um fim de vida enobrecido.
“A reivindicação dos homens anda sempre
à roda do mundo das coisas. Com
dificuldade
encontramos amor, paz, fraternidade.”
Acontece é que, a
certa altura, não se trata já de comprar livros mas de ter onde os arrumar. A
minha casa de Lisboa, as minhas salas da quinta vivem assim, rodeadas de
livros, como eu sonhava na minha meninice. Este interesse fundamental pelos
livros, que iria coroar a minha velhice, não se vai realizar porque difícil em
minha casa é encontrar um livro e já não tenho a minha vida encaminhada para
essas cerimônias.
O grave é eu não
ter outros interesses nesta altura da vida. Um amigo meu, com 82 anos, foi
muito contente com a mulher à Argentina, exatamente com o espírito e o rito de
quem vai viajar. Também não pendo para aí. Viajei pela França e pela Itália
quando era novo e depois passei para o Brasil, para Cabo Verde, por Goa e
assim. Fiquei bastante preso aos países de língua portuguesa e sempre me encontrei
lá como se fosse a minha própria Pátria. “A minha Pátria é a língua portuguesa”
é uma frase de Fernando Pessoa em que acredito em que acredito muito. Isto
porque as línguas devem manter sempre um poder de criação e não há nada como a
convivência linguística para acordar uma língua destinada a morrer. Por todos
esses lugares da língua portuguesa encontrei pessoas que tinham da linguagem
uma intenção próxima da minha.
Isso começou pelo
mundo das coisas em que eu disse que não acreditava porque não vibrava com
elas. Falei nos livros que comprava como se fosse um pecado que me enobrecia.
Imaginei grandes serões de leitura para quando chegasse ao Outono dos meus
dias. Já não leio os livros, aqueles que tenho lá por casa e que eu julgava que
iriam fazer a minha felicidade, quando não tivesse já nada para fazer. Estou
assim como alguém a quem correu tudo ao contrário mas persisto em não estar
arrependido de nada do que fiz.
*Escritor.
Advogado. Romancista português.
Imagem da Internet
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