Fernando Henrique Cardoso*
Quem sabe no entremear de alianças partidárias para aumentar o tempo de televisão, ainda se consiga ouvir a voz dos candidatos, mas não apenas com slogans e sim com propostas
Passei uma semana em Nova York para participar de um evento sobre
novas tecnologias para a medição da ingerência de drogas por condutores
de caminhão pelas marcas deixadas nos cabelos. Tendo exercido por muitos
anos a presidência da Comissão Global sobre Política de Drogas, da qual
continuo a ser membro, achei útil difundir os aperfeiçoamentos na
medição do seu uso continuado para coibir que os adictos a tal prática
ocupem funções nas quais esse hábito possa ser daninho ao bem-público e à
vida de terceiros. Defender uma política não repressiva aos usuários de drogas
não significa ser partidário de seu uso. Nem se devem tratar os
usuários como criminosos (tratamento a ser dado aos narcotraficantes),
nem deixar de restringir as possibilidades do uso das drogas, a começar pelo tabaco, hoje praticamente expulso dos locais de trabalho, estudo e mesmo lazer.
Pois
bem, à margem da conferência, que se realizou em dependência da ONU, ao
ler os jornais e ver a TV, voltei nesta terça-feira ao Brasil com a
intenção de fazer um paralelo entre a “política” nos Estados Unidos e a
nossa. Por lá a mídia não perdoa. Por menos que eu tenha simpatia pelos
métodos e propósitos de Trump,
há que reconhecer que qualquer passo dele é vigiado e se tenta obstruir
seu caminho usando notícias em geral verdadeiras, mas também duvidosas.
Isso é da alma da democracia contemporânea, hoje mais atribulada pela
força das mídias sociais. Tanto lá como aqui. Com uma diferença: as
instituições americanas são mais fortes do que as nossas e os rumos do
país são debatidos com argumentos pelas organizações partidárias.
Aqui chegando, um susto; pegou fogo e ruiu um edifício em pleno centro de São Paulo
no qual habitavam dezenas ou mesmo centenas de famílias e... que
pertencia à União, a qual negociava com a Prefeitura sua posse e uso.
Pelo nome do prédio, a família que o construiu deve ter sido a mesma que
possuía uma fábrica de alumínio e vidros para as batentes e para as
portas e janelas, materiais que na época (1950/1960) eram o símbolo da
“modernidade”. Sabe-se lá por que tropeços, o edifício foi parar nas
mãos da União (provavelmente dívidas não pagas) e esta, depois de
usá-lo, ficou sem saber o que fazer com ele, assim como acontece com
milhares de outras edificações. Mais grave ainda: tal edifício era
tombado pelo patrimônio histórico. Quer dizer: nele nada se pode fazer
sem autorização pública. Ora, diante da carência de habitação para os
mais pobres e dos movimentos sociais e políticos (falsos e verdadeiros)
seria previsível o que aconteceu e acontece em centenas de outros
edifícios do centro de São Paulo: a ocupação por famílias sem teto.
Daí por diante a ação do poder público se torna ainda mais lenta, com
boa escusa: trata- se de uma questão social que requer o olho da
Justiça antes da ação da polícia. Tempo suficiente para que exploradores
se misturem aos que autenticamente têm compromisso com a causa do
acesso à moradia e comecem a explorar os mais miseráveis, cobrando taxas
e todo tipo de subordinação. Ou seja, a questão social (falta
de renda, trabalho e moradia) explode confundindo-se com a exploração
feita por malandros ou pelos próprios organizadores de invasão, ainda
que justifiquem suas ações com propósitos defensáveis.
Ruiu um prédio, morreram pessoas
(por sorte poucas, mas no caso de vidas não são os números que contam),
dezenas de famílias estão desabrigadas, a mídia faz barulho, as
administrações fazem jogo de empurra e, pior, o que ocorreu não é
diferente do que provavelmente acontecerá em muitos outros prédios
ocupados.
Ocupações também houve em Nova York, no Bronx ou mesmo no Harlem. E não faltaram squatters
em Londres. Em Paris, até hoje, os habitantes podem solicitar às
prefeituras apartamentos com aluguel moderado chamados HLM (habitations à
loyer modéré), solução que não deu certo porque, como a maioria dos
projetos do Minha Casa, Minha Vida, em geral resulta em habitações
localizadas em áreas pouco urbanizadas e distantes dos locais de
trabalho dos moradores. Muitos se transformaram em aglomerações urbanas
com altos índices de delinquência. Mas nas cidades citadas, houve maior
continuidade nas ações dos governos, mesmo com coloração política
distinta, em busca do bem-estar comum.
É isso o que nos falta. Marchamos quase às cegas para novas eleições
daqui a cinco meses. Candidatos à presidência proliferam. Por quê? Hah,
porque sim; porque “tenho todas as condições pessoais para isso”, diz a
maioria. E é assim que se consegue governar? Talvez algum caudilho
antiquado ou “carismático” engane as massas por algum tempo. Mas
governar é coisa mais séria. Se a União nem consegue dar destino a um
prédio que é seu e a Prefeitura nem sabe bem como fazer para ocupá-lo
(ou desocupá-lo para evitar tragédias...), vê-se que o país precisa
reformar a máquina pública. O que dizem a respeito os candidatos? Com
que forças sociais e políticas contarão se eleitos? Em uma palavra: com o
que estão eles ou elas política e socialmente comprometidos? O que
farão com o Brasil, que afinal é o que conta? Com o país e com sua
gente?
Há uns poucos que têm história e carregam o peso de terem partidos.
Sabe-se mais ou menos o que pensam e como agem. E digo isso sem me
referir apenas a um candidato, e sim aos que têm trajetória e
experiência. O país precisa de renovação, mas esta não é apenas
juventude e falta de prática político-administrativa. Para dar bom
resultado ela precisa de conhecimento, visão, persistência, honestidade e
esperança.
Quem sabe no entremear de alianças partidárias para aumentar o tempo
de televisão, do esforço desesperado para escapar das acusações em
curso, das manobras congressuais para abocanhar pedaços do fundo
eleitoral, ainda se consiga ouvir a voz dos candidatos, tonitruantes,
mas não apenas com slogans e sim com propostas embasadas no que sabem e
no que serão capazes de alcançar porque terão apoio na sociedade. É
minha torcida.
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*Também conhecido como FHC, é um sociólogo, cientista político,
professor universitário, escritor e político brasileiro. Foi o 34º
presidente da República Federativa do Brasil entre 1995 e 2003.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/06/opinion/1525615259_658624.html
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