Peter Singer*
Desde
1949, quando os comunistas de Mao Tsé-tung saíram vencedores na guerra
civil da China, até à queda do Muro de Berlim 40 anos depois, o
significado histórico de Karl Marx era insuperável. Quase quatro em cada
dez pessoas da Terra viviam sob governos que se diziam marxistas e, em
muitos outros países, o marxismo era a ideologia dominante da esquerda,
enquanto as políticas da direita se baseavam frequentemente em como
combater o marxismo.
No entanto, com o
colapso do comunismo na União Soviética e nos seus satélites a
influência de Marx caiu a pique. No aniversário dos 200 anos do seu
nascimento, a 5 de maio de 1818, não é despropositado sugerir que as
suas previsões foram desmentidas, as suas teorias desacreditadas e as
suas ideias se tornaram obsoletas. Então, porque deveríamos
interessar-nos pelo seu legado no século XXI?
A
reputação de Marx foi gravemente prejudicada pelas atrocidades
cometidas por regimes que se diziam marxistas, embora nada nos diga que o
próprio Marx teria apoiado tais crimes. Mas o comunismo entrou em
colapso em grande parte porque, tal como praticado no bloco soviético e
na China de Mao, não conseguiu proporcionar às pessoas um padrão de vida
que pudesse competir com o da maioria das pessoas nas economias
capitalistas.
Esses fracassos não
refletem falhas na representação de Marx do comunismo, porque Marx nunca
fez tal descrição: ele nunca demonstrou o menor interesse nos detalhes
de como funcionaria uma sociedade comunista. Os fracassos do comunismo
tiveram origem numa falha mais profunda: a conceção errada que Marx
fazia da natureza humana.
Marx pensava
que não existia uma natureza humana inerente ou biológica. A essência
humana é, escreveu ele nas suas Teses sobre Feuerbach, "o conjunto das
relações sociais"; de modo que se se modificam as relações sociais - por
exemplo, mudando a base económica da sociedade e abolindo a relação
entre capitalista e trabalhador - as pessoas na nova sociedade serão
muito diferentes daquilo que eram no capitalismo.
Marx
não chegou a essa convicção através de estudos detalhados da natureza
humana sob diferentes sistemas económicos. Foi, antes, uma aplicação da
visão de Hegel da história. Segundo Hegel, o objetivo da história é a
libertação do espírito humano, que ocorrerá quando todos entendermos que
somos parte de uma mente humana universal. Marx transformou esta visão
"idealista" noutra "materialista", na qual a força motriz da história é a
satisfação das nossas necessidades materiais, e a libertação é
alcançada pela luta de classes. A classe trabalhadora será o meio para a
libertação universal, porque é a negação da propriedade privada e,
portanto, dará início à propriedade coletiva dos meios de produção.
Marx
pensou que quando os trabalhadores possuíssem coletivamente os meios de
produção, as "fontes da riqueza cooperativa" fluiriam mais
abundantemente do que as da riqueza privada, tão abundantemente, de
facto, que a distribuição deixaria de ser um problema. Por isso ele não
viu necessidade de entrar em detalhes sobre como os rendimentos ou os
bens seriam distribuídos. Na verdade, quando Marx leu uma proposta do
programa para a fusão de dois partidos socialistas alemães, classificou
frases como "distribuição justa" e "direitos iguais" como "lixo verbal
obsoleto". Elas pertenciam, pensava ele, a uma era de escassez a que a
revolução poria fim.
A União Soviética
provou que a abolição da propriedade privada dos meios de produção não
altera a natureza humana. A maioria dos humanos, em vez de se dedicar ao
bem comum, continua a procurar poder, privilégios e luxo para si e para
os que lhe são próximos. Ironicamente, a mais clara demonstração de que
as fontes da riqueza privada fluem mais abundantemente do que as da
riqueza coletiva pode ser vista na história de um grande país que ainda
proclama a sua adesão ao marxismo.
Com
Mao, a maioria dos chineses vivia na pobreza. A economia da China só
começou a crescer rapidamente depois de 1978, quando o sucessor de Mao,
Deng Xiaoping (que proclamou que "não importa se um gato é preto ou
branco desde que apanhe ratos") permitiu a criação de empresas privadas.
As reformas de Deng acabaram por tirar 800 milhões de pessoas da
pobreza extrema, mas também criaram uma sociedade com maior desigualdade
de rendimentos do que qualquer país europeu (e muito maior do que os
Estados Unidos). Embora a China ainda afirme que está a construir "o
socialismo com características chinesas", é difícil discernir na sua
economia algo que seja socialista e muito menos marxista.
Se
o pensamento de Marx já não é uma influência significativa na China,
podemos concluir que na política, como na economia, ele é de facto
irrelevante. No entanto, a sua influência intelectual permanece. A sua
teoria materialista da história, numa forma atenuada, tornou-se parte da
nossa compreensão das forças que determinam a direção da sociedade
humana. Nós não temos de acreditar que, como Marx disse incautamente uma
vez, o moinho movido à força de braços nos dá uma sociedade com
senhores feudais, e o moinho a vapor uma sociedade com capitalistas
industriais. Noutros escritos, Marx sugeriu uma visão mais complexa, na
qual há interação entre todos os aspetos da sociedade.
O
aspeto mais importante da visão de Marx da história é negativo: a
evolução de ideias, religiões e instituições políticas não é
independente das ferramentas que usamos para satisfazer as nossas
necessidades, nem das estruturas económicas que organizamos em torno
dessas ferramentas e dos interesses financeiros que elas criam. Se isso
parece óbvio de mais para precisar de ser dito, é porque interiorizámos
essa visão. Nesse sentido, hoje todos somos marxistas.
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Professor de Bioética na Universidade de Princeton
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/interior/sera-marx-ainda-relevante-9329165.html?utm_term=Governo+deixou+ciberseguranca+%22quase+na+falencia%22&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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