sexta-feira, 11 de maio de 2018

Será Marx ainda relevante?

 Peter Singer*
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Desde 1949, quando os comunistas de Mao Tsé-tung saíram vencedores na guerra civil da China, até à queda do Muro de Berlim 40 anos depois, o significado histórico de Karl Marx era insuperável. Quase quatro em cada dez pessoas da Terra viviam sob governos que se diziam marxistas e, em muitos outros países, o marxismo era a ideologia dominante da esquerda, enquanto as políticas da direita se baseavam frequentemente em como combater o marxismo.

No entanto, com o colapso do comunismo na União Soviética e nos seus satélites a influência de Marx caiu a pique. No aniversário dos 200 anos do seu nascimento, a 5 de maio de 1818, não é despropositado sugerir que as suas previsões foram desmentidas, as suas teorias desacreditadas e as suas ideias se tornaram obsoletas. Então, porque deveríamos interessar-nos pelo seu legado no século XXI?

A reputação de Marx foi gravemente prejudicada pelas atrocidades cometidas por regimes que se diziam marxistas, embora nada nos diga que o próprio Marx teria apoiado tais crimes. Mas o comunismo entrou em colapso em grande parte porque, tal como praticado no bloco soviético e na China de Mao, não conseguiu proporcionar às pessoas um padrão de vida que pudesse competir com o da maioria das pessoas nas economias capitalistas.

Esses fracassos não refletem falhas na representação de Marx do comunismo, porque Marx nunca fez tal descrição: ele nunca demonstrou o menor interesse nos detalhes de como funcionaria uma sociedade comunista. Os fracassos do comunismo tiveram origem numa falha mais profunda: a conceção errada que Marx fazia da natureza humana.

Marx pensava que não existia uma natureza humana inerente ou biológica. A essência humana é, escreveu ele nas suas Teses sobre Feuerbach, "o conjunto das relações sociais"; de modo que se se modificam as relações sociais - por exemplo, mudando a base económica da sociedade e abolindo a relação entre capitalista e trabalhador - as pessoas na nova sociedade serão muito diferentes daquilo que eram no capitalismo.

Marx não chegou a essa convicção através de estudos detalhados da natureza humana sob diferentes sistemas económicos. Foi, antes, uma aplicação da visão de Hegel da história. Segundo Hegel, o objetivo da história é a libertação do espírito humano, que ocorrerá quando todos entendermos que somos parte de uma mente humana universal. Marx transformou esta visão "idealista" noutra "materialista", na qual a força motriz da história é a satisfação das nossas necessidades materiais, e a libertação é alcançada pela luta de classes. A classe trabalhadora será o meio para a libertação universal, porque é a negação da propriedade privada e, portanto, dará início à propriedade coletiva dos meios de produção.

Marx pensou que quando os trabalhadores possuíssem coletivamente os meios de produção, as "fontes da riqueza cooperativa" fluiriam mais abundantemente do que as da riqueza privada, tão abundantemente, de facto, que a distribuição deixaria de ser um problema. Por isso ele não viu necessidade de entrar em detalhes sobre como os rendimentos ou os bens seriam distribuídos. Na verdade, quando Marx leu uma proposta do programa para a fusão de dois partidos socialistas alemães, classificou frases como "distribuição justa" e "direitos iguais" como "lixo verbal obsoleto". Elas pertenciam, pensava ele, a uma era de escassez a que a revolução poria fim.

A União Soviética provou que a abolição da propriedade privada dos meios de produção não altera a natureza humana. A maioria dos humanos, em vez de se dedicar ao bem comum, continua a procurar poder, privilégios e luxo para si e para os que lhe são próximos. Ironicamente, a mais clara demonstração de que as fontes da riqueza privada fluem mais abundantemente do que as da riqueza coletiva pode ser vista na história de um grande país que ainda proclama a sua adesão ao marxismo.
Com Mao, a maioria dos chineses vivia na pobreza. A economia da China só começou a crescer rapidamente depois de 1978, quando o sucessor de Mao, Deng Xiaoping (que proclamou que "não importa se um gato é preto ou branco desde que apanhe ratos") permitiu a criação de empresas privadas. As reformas de Deng acabaram por tirar 800 milhões de pessoas da pobreza extrema, mas também criaram uma sociedade com maior desigualdade de rendimentos do que qualquer país europeu (e muito maior do que os Estados Unidos). Embora a China ainda afirme que está a construir "o socialismo com características chinesas", é difícil discernir na sua economia algo que seja socialista e muito menos marxista.

Se o pensamento de Marx já não é uma influência significativa na China, podemos concluir que na política, como na economia, ele é de facto irrelevante. No entanto, a sua influência intelectual permanece. A sua teoria materialista da história, numa forma atenuada, tornou-se parte da nossa compreensão das forças que determinam a direção da sociedade humana. Nós não temos de acreditar que, como Marx disse incautamente uma vez, o moinho movido à força de braços nos dá uma sociedade com senhores feudais, e o moinho a vapor uma sociedade com capitalistas industriais. Noutros escritos, Marx sugeriu uma visão mais complexa, na qual há interação entre todos os aspetos da sociedade.

O aspeto mais importante da visão de Marx da história é negativo: a evolução de ideias, religiões e instituições políticas não é independente das ferramentas que usamos para satisfazer as nossas necessidades, nem das estruturas económicas que organizamos em torno dessas ferramentas e dos interesses financeiros que elas criam. Se isso parece óbvio de mais para precisar de ser dito, é porque interiorizámos essa visão. Nesse sentido, hoje todos somos marxistas.
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Professor de Bioética na Universidade de Princeton
Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/interior/sera-marx-ainda-relevante-9329165.html?utm_term=Governo+deixou+ciberseguranca+%22quase+na+falencia%22&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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