José de Souza Martins*
Em decisão válida para todo o país, o Tribunal Federal de Recursos da 4ª
Região (Porto Alegre) determinou que se inclua no cálculo da
aposentadoria o trabalho infantil, caso daqueles que já trabalhavam
quando chegaram à idade mínima prevista em lei para seu ingresso na
força de trabalho. É aquele período em que os idosos de hoje trabalharam
em vez de brincar e de estudar, forçados a ser adultos antes do tempo.
Não reconhecer o trabalho como trabalho só porque o trabalhador é
criança constitui violência e usurpação de direitos.
Muitos temem que esse justo reconhecimento vá danificar a engenharia
econômica atual, que arquiteta o encolhimento dos direitos dos que tendo
trabalhado a vida inteira tentam agora ter em velhice digna o que lhes
foi tirado sob forma de infância indigna e imprópria. São aqueles que,
ainda crianças, não pagaram a contribuição previdenciária porque o
próprio sistema econômico os privou de meios para tanto.
A história do trabalho infantil, no Brasil, porém, é uma história
contínua de injustiças e de lesão dos direitos dos imaturos. Que, no fim
das contas, oneram o conjunto da economia. Reformas como a da
Previdência, enquanto reforma atuarial e não como reforma social,
empurram para a vítima os custos de problemas que não foram criados por
ela.
Até hoje não se avaliou o quanto o trabalho precoce é entre nós causa de
doenças precoces e de mortes precoces que, no fim das contas, oneram a
Previdência Social. Os que culpam o trabalhador pelos desarranjos nas
contas previdenciárias omitem-se em relação à realidade social do
trabalho e em relação ao fato de que alguém ganhou com isso. Não são as
vítimas do trabalho antes do tempo as responsáveis pelo déficit da
Previdência. A responsabilidade por ele é do déficit de políticas
sociais responsáveis.
Convém visitar as estatísticas oficiais. A população que trabalha ou
"pode" trabalhar entra nas estatísticas do trabalho a partir dos 14 anos
de idade. E a que já está no trabalho aos 10 anos de idade e até antes?
Os censos são parte da trama de omissões na raiz desse imenso problema
social decorrente do trabalho de crianças que mal sabem soletrar a
palavra trabalho. Trabalho mutilante do corpo e do espírito. Um trabalho
sem conceito. As evidências da injustiça social vão para baixo do
tapete de tramas numéricas e atuariais.
Recorro a um censo de quando os velhos de hoje eram crianças. No censo
de 1950, quando as estatísticas do trabalho pressupunham que os menores
de idade começavam a trabalhar ilegalmente já aos 10 anos de idade, mais
de 6 milhões de crianças de 10 a 14 anos de idade já trabalhavam. Um
grupo que ficaria fora de estatísticas de agora. Mais de 400 mil eram
assalariadas em diferentes setores da economia. Quase 65 mil
especificamente na indústria de transformação.
Milhões de crianças na história do trabalho no Brasil contribuíram para
que a economia brasileira desse, em curto tempo, o grande salto
histórico da agricultura escravista de exportação para a economia
salarial da indústria moderna. Sou uma delas e de uma família de
crianças trabalhadoras que fez todo esse percurso. Falo do que conheço e
bem.
Aos 11 anos de idade, em 1950, eu já era operário de uma pequena fábrica
clandestina e insalubre, de fundo de quintal. Ganhava 100 cruzeiros por
mês, por semana de 48 horas. O salário mínimo era de pouco menos de 500
cruzeiros. A lei dizia que o salário-mínimo do menor de idade deveria
ser de metade do mínimo do adulto. Portanto, eu ganhava apenas 40% do
que tinha direito por lei.
Aliás, por lei, eu nem poderia trabalhar, pois ela estabelecia que a
criança só começaria a trabalhar aos 14 anos de idade. Duplamente
explorado: como trabalhador, no salário inferior ao que tinha direito, e
como pessoa, porque a economia brasileira me forçara na condição de
adulto antes do tempo. Quando consegui emprego numa fábrica decente, que
me registrou e, em relação a mim, respeitou os direitos que a lei da
época dizia que eu tinha, já carregava no corpo sinais físicos do
trabalho impróprio para alguém de minha idade.
Num país em que baldes de lágrimas de crocodilo são derramados para
lamentar a escravidão do negro, mas não a escravidão do índio, aliás
sobrevivente no caipira e no sertanejo, nem a dos milhares de imigrantes
brancos miseráveis trazidos da Europa, já antes da abolição da
escravatura, para substituir escravos nos cafezais, em trabalho similar
ao do escravo, é grande hipocrisia não derramar uma lágrima sequer por
milhares de crianças, de diferentes raças e cores de pele, que
consumiram sua infância e sua adolescência nas leiras dos cafezais, dos
canaviais e na linha de produção da indústria nascente.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica”
(Ateliê Editorial).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5500959/previdencia-de-crianca 04/05/2018
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