Ronaldo Augusto(*)
Reprodução
Ao contrário do que o mercado livreiro editorial às vezes nos faz
crer, a figura do escritor-editor é fundamental para a preservação da
concepção da literatura como arte. Malgrado o predomínio de editores
mais interessados em conferir à literatura o apelo meramente comercial,
já que, em última análise, ela é também mais um produto da indústria
cultural, a atividade inventiva do escritor-editor, de caráter mais
independente e apaixonada, é o que de fato dá continuação à literatura
enquanto campo de diversidades de linguagens e formas em transes com a
consagração e a novidade.
O escritor-editor aposta no tempo, na demora. Por sua vez, o editor
feitor da indústria do livro aposta no imediato, ele repete o bordão
segundo o qual um livro bom (de vendas) tem que “fisgar” o leitor na
primeira frase ou, no máximo, no primeiro parágrafo. Não raro o
escritor-editor é poeta. Sua prática como editor vem após a experiência
como prosador ou poeta. O editor feitor vem da administração e da gestão
empresariais, ele repete à exaustão que o menos é mais.
Roberto Schmitt-Prym, ao contrário, é um desses escritores-editores
em relacionamento sério e divertido com a arte. Entretanto, aqui ele não
será considerado nem como escritor, nem como editor, ainda que esses
modos de ser estejam todos interligados em sua pessoa. Diante de Sombra silêncio,
seu primeiro conjunto de poemas, não me resta, felizmente, outra
escolha senão reconhecer o poeta Roberto Schmitt-Prym e seu compromisso
com a hermenáutica do poema. O poeta sem mais nenhum atributo. E
o poema, encarado como ser de linguagem que menos captura o leitor do
que se esquiva de seu apetite por sentidos determinados, se define em
forma de disputa vertiginosa de elisões e elipses. Em constante deriva
de sentidos a poesia de Schmitt-Prym negaceia qualquer acordo que
permita ao leitor a recepção convencional.
em busca através do tempo
a palavra
se afasta
a palavra
se afasta
Essa imagem recorrente de que o leitor deve ser fisgado pela obra
literária sempre me pareceu vulgar. Ela pretende submeter a tarefa
jubilosa da leitura a uma situação de heteronomia. Acontece que o poema –
o texto criativo – requer um leitor desobediente, uma vez que as
estruturas reiterativas e imagéticas já determinadas na composição
demandam uma leitura, a um só tempo, de crédito e de desconfiança, de
crença e de suspeição. A poesia de Sombra silêncio, a este
propósito, responde à questão com decisão. Roberto Schmitt-Prym
considera o leitor como um colaborador, um intérprete em sentido
musical. Com efeito, os versos do poema, segundo Joan Brossa, funcionam
como uma partitura, isto é, un conjunt de signes per a desxifrar [1],
e o leitor, esse executante, é parte integrante tanto do fracasso,
quanto do sucesso da experiência estética materializada no
poema-partitura. Cada constelação verbal de Sombra silêncio circunscreve a intervenção do leitor numa zona
sombreada de
marcas e vestígios
e nada mais
marcas e vestígios
e nada mais
E esse precário e restritivo insumo destilado do poema instiga a liberdade do leitor no corpo a corpo com os seus signos.
Assim, o leitor dos poemas de Roberto Schmitt-Prym deve conjugar em
si os aspectos antitéticos, mas inter-relacionados, da fruição e da
crítica. Leitor tanto em deriva, quanto de lápis em punho. Essa
interlocução crítica que seduz o leitor é uma espécie de espelhamento do
escritor-editor que, em grande medida, é a transfiguração do
poeta-crítico imbricado à personalidade do autor de Sombra silêncio.
O poeta-crítico instaura um tipo particular de abordagem crítica,
trata-se de um discurso que se situa, e que, ao menos provisoriamente,
ocupa um campo estético. Cada intervenção do poeta-crítico se embrenha
num debate de formas e ideias que diz respeito a si e aos seus iguais, e
que, de outra parte, pede a interferência deles e a sua réplica futura.
Este poeta pensa de maneira interessada, e aquilo que pensa gera
consequências que podem repercutir não só na sua, mas também na produção
dos seus pares, dando assim continuação à literatura.
E é na seção “Reflexos” que Roberto Schmitt-Prym traz à superfície do
texto seu apetite de poeta-crítico em espelhamento com outros
criadores. O poeta se converte em um executante cujo intuito é o de
aclimatar à sua linguagem partituras e criações alheias de maneira a
fazer com que esse paideuma se dobre aos seus interesses
compositivos. O poeta se apresenta aqui como uma máquina desejante de
transcriações. Em termos oswaldianos, é como se Schmitt-Prym, sentado à
mesa de uma expedição de conquista, se dedicara à antropofagia ritual
daqueles artistas, autores e livros que, por uma razão ou outra,
provocaram sua inteligência sensível. Vejamos alguns excertos:
como luz se decompondo no vento
com distraídas alegrias contava
tristezas
com distraídas alegrias contava
tristezas
não com a voz gestos
empilhando histórias sobre
outras histórias
empilhando histórias sobre
outras histórias
[…]
no quadro negro
de malevich
bétulas
de malevich
bétulas
um passo na praça
e o fundo
eram lírios
e o fundo
eram lírios
[…]
basho buson e issa
caminham lado a lado
caminham lado a lado
os dias lentos
empilhados evocam
outro tempo
empilhados evocam
outro tempo
Este último fragmento onde aparecem os três grandes inventores do
haicai, Basho, Buson e Issa, serve de passagem para a consideração de um
valor essencial à poética materializada em Sombra Silêncio, a
saber, o elogio da lacuna, do silêncio, da ausência sem nostalgia.
Roberto Schmitt-Prym, ao longo do seu conjunto de poemas, sem a
pretensão de fazer o haicai típico, incorpora à própria cadência aquilo
que constitui a beleza do gênero lírico japonês: a relação indecidível,
em termos semânticos, entre as partes do poema. Praticamente todos os
poemas Schmitt-Prym apresentam as imagens como se elas fossem os acentos
átonos de um verso. O poeta deixa de lado os acentos fortes, isto é, o
verismo tão caro à prosa e ao funcionamento do mundo vivido.
cada objeto
em tudo o que
contém o mundo
em tudo o que
contém o mundo
um murmúrio
[…]
coloca à sombra
a voz de pedra
a solidão
a voz de pedra
a solidão
Contam que Henri Matisse ao desenhar uma oliveira, observou os vazios
existentes entre os galhos e começou a desenhá-los. Matisse não se
deteve apenas na representação da oliveira que podia ser vista; o
artista, ao representar os vazios, os interstícios da oliveira, figurou
os “acentos átonos”, isto é, o silêncio, os espaços em branco que
convidam o fruidor a preencher as lacunas, a experimentar a relação
imprecisa entre as partes. Essa é a perspectiva que também interessa à
poesia de Roberto Schmitt-Prym. Nos espaços em branco, nos intervalos
imprecisos e charmosos suscitados por imagens que parecem disjuntas
entre si é onde vai se instalar a fruição do leitor que se dispuser a
atravessar Sombra silêncio. É como se o poeta afirmasse que o
poema bom é aquele cuja relação entre as partes é indecidível (silêncio,
música calada) e distante (objeto esfumado, sugerido). Para
Schmitt-Prym, é imprescindível que o poema evidencie em sua resolução
certa dose de incompletude, de elipse. Uma espécie de solidão sem fios.
Resta ao leitor participar dessa interlocução supostamente falhada,
lacunar, que o impele a sair em busca da precisa beleza da imprecisão
contida, por exemplo, entre as capas de Sombra silêncio.
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(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e
crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas
(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do
Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera
(2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/
[1] “um conjunto de signos para decifrar”.
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