Anselmo Borges*
1.
No passado dia 6, Jürgen Habermas, que continua a ser o filósofo vivo
mais influente do mundo, deu uma longa entrevista ao El País. Logo de
entrada, estando de acordo com a afirmação de que há a decadência da
figura do intelectual comprometido, diz: "A pergunta nostálgica "porque é
que já não há intelectuais?" está mal feita. Não pode havê-los, se já
não há leitores aos quais continuar a chegar com argumentos." Se foi
"determinante uma esfera pública", o que se passa é que "as suas frágeis
estruturas estão agora a sofrer um processo acelerado de deterioração".
A esfera pública liberal na sua configuração clássica vivia de bases
culturais e sociais, "principalmente da existência de um jornalismo
desperto, com meios de referência e uma imprensa capaz de dirigir o
interesse da grande maioria da cidadania para temas relevantes e a
formação de opinião política. E também da existência de uma população de
leitores que se interessa pela política e tem um bom nível de educação,
acostumada ao processo conflitual de formação de opinião, dedicando
tempo a ler imprensa independente de qualidade. Hoje, esta
infra-estrutura já não está intacta. O efeito de fragmentação da
internet deslocou o papel dos meios de comunicação tradicionais,
sobretudo nas novas gerações. Antes de entrarem em jogo estas tendências
centrífugas e atomizadoras dos novos media, a desintegração da esfera
cidadã já tinha começado com a mercantilização da atenção pública. Agora
os novos meios de comunicação praticam uma modalidade muito mais
insidiosa de mercantilização".
2.
Esta situação insidiosa promove novas formas de analfabetismo, a
desorientação e uma cultura da moleza e do achismo (toda a gente acha
que...), como já aqui tentei explicar. No contexto do que aqui me traz
hoje - a eutanásia -, poderíamos fazer um teste, com um inquérito aos
portugueses (incluindo os deputados), para apurar quantos sabem
distinguir claramente entre eutanásia (voluntária e involuntária, activa
e passiva, directa e indirecta), distanásia, ortotanásia, suicídio
medicamente ajudado, cuidados paliativos... Quando, por exemplo, para
afirmar que se é contra a eutanásia, se escreve que se rejeita a morte
assistida, é evidente que se está perante a ignorância ou se quer criar a
confusão: de facto, quem não quer uma morte assistida? Mais uma razão
para não haver pressas, já que, ao contrário do que se afirma, não há
esclarecimento suficiente. Fica a pergunta: porquê tanta pressa, não
esperando para colocar o tema nos programas dos partidos, com debate
alargado na campanha eleitoral próxima? Tem-se medo de quê? Afinal, o
tema também não consta no programa de governo. E vai-se votar sem o
parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida?
É
claro que esta questão configura uma mudança civilizacional. E não se
pense em progresso, pois é de retrocesso que se trata. A eutanásia
significa uma derrota: o que o Estado tem para oferecer às pessoas em
extrema dificuldade é conceder-lhes o direito de pedir que as matem? De
facto, se a eutanásia fosse aprovada, ficaria em vigor uma lei que
concede o direito de pedi-la e o Estado teria mais um dever: concretizar
esse direito, nos casos aceites, matando. Não se fuja às palavras, pois
é de homicídio que se trata, ainda que a pedido.
3.
Deixando os debates de princípio e em abstracto sobre autonomia - mesmo
aqui, é bom reflectir que a autonomia não se pode confundir com
auto-suficiência, já que a autonomia é sempre relacional -, sobre
compaixão, tolerância, morte digna, vamos aos projectos de lei que vão
ser votados no próximo dia 29 (todos os deputados os leram?) e que
propõem que um médico possa matar um ser humano, a seu pedido, em
determinadas condições. Miguel Oliveira da Silva, ex-presidente do
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, e Germano de Sousa,
ex-bastonário da Ordem dos Médicos, analisaram-nos e verificaram que
"são muito semelhantes ao modelo holandês, pioneiro mundial, e ao modelo
belga inicial, os quais, apesar das restrições e garantias iniciais,
derraparam de tal modo que hoje as mortes por eutanásia aumentam nesses
países em dez por cento ao ano aceitando-se cada vez mais indicações
(como doença psiquiátrica e demência) inicialmente recusadas,
chegando-se ao extremo de praticar eutanásia em crianças." Continuam: "A
simples existência de leis com este teor afecta a vontade dos doentes,
influencia a respectiva família e os profissionais de saúde, como provam
exemplos recentes na Bélgica e na Holanda em que foi aceite um pedido
de eutanásia de um casal de idosos que não queria ser um peso para os
filhos. Não podem subsistir dúvidas: se um dos projectos se tornar lei
entre nós, o mesmo inevitavelmente sucederá. Não tenhamos a ingenuidade
de pensar que somos diferentes ou melhores."
No
mesmo sentido, disse outro médico ilustre, A. Maia Gonçalves: a lei da
eutanásia "será um fardo para as pessoas de idade". Sobretudo quando se
pensa nas situações dramáticas do Serviço Nacional de Saúde.
4.
No ano passado, 2017, celebraram-se os 150 anos da abolição da pena de
morte em Portugal, e foi para mim uma honra participar num congresso
internacional sobre esse acontecimento histórico, com uma conferência
sobre "Teologia e pena de morte". Para nossa honra, Portugal foi
pioneiro mundial. Na altura, nos debates, muitos convenceram-se pela
abolição ao pensarem nos erros que se podem cometer e de facto se
cometem ao aplicar a pena de morte. Passado um ano, lamentavelmente,
vai-se votar a eventual legalização da eutanásia. Não há o mesmo perigo
de erro na sua aplicação? Pense nisso, senhor deputado. Porque é disso
que se trata: da vida e da morte, e a morte é irreversível: não há volta
atrás. Ainda bem que será cada deputado a votar individualmente: cada
um e cada uma assumirá as suas responsabilidades históricas.
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* Padre católico, professor universitário e ensaísta português.
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/a-morte-irreversivel-9376341.html - 25/05/2018
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