José de Souza Martins*
"Discutir
segurança, educação, identificação com o destino comum, respeito aos direitos
humanos e até mesmo o reconhecimento da humanidade de todos, sem levar em conta
a exclusão social de tão extensa parcela de brasileiros, é ingênua concepção
dos problemas sociais e dos riscos políticos
a que o Brasil está sujeito."
Quem são
os miseráveis das estatísticas oficiais que nos dizem o que é o Brasil que não gostaríamos
que o Brasil fosse? Como é possível que a herança de um regime político que
proclamou ter acabado com a pobreza no país seja justamente a de mais de 13
milhões de miseráveis, com aumento de 1,5 milhão em pouco tempo? A de 12,3
milhões desempregados? A de uma política social cuja grande marca é a de um
auxílio à sobrevivência a mais de um terço da população de 11 Estados do Norte
e Nordeste por meio do Bolsa Família e 21%, um quinto, da população brasileira
dele dependente? Sem contar mais de 5 milhões de brasileiros à procura de
emprego há mais de um ano? A daqueles com maior incidência de desalentados, os
que desistem de procurar emprego, nas regiões Nordeste, Sudeste, Norte? A de um
país com mais de 27 milhões de trabalhadores subutilizados?
Esses
dados aparentemente desencontrados convergem na indicação de que se trata não
só de problemas não resolvidos, mas também de problemas de solução pela metade
e em boa parte sem perspectiva de solução. Esses números não nos falam apenas
da herança numérica líquida de um desastre social e político, de que não
tomamos consciência no devido tempo porque acobertada por induções mágicas de
leitura de tabelas.
Neles
está aquela parte de solução lenta e não integrativa, a dos milhões que há mais
de ano procuram trabalho. Ou aqueles subutilizados que refletem a substituição
de trabalho humano por tecnologia. Um cenário de descarte de seres humanos e de
falta de criatividade política para estabelecer um nível de emprego capaz de
assegurar à sociedade inteira a segurança de que cada brasileiro está social e
economicamente integrado. A não integração não é normal nem é decente.
O que
resta desse cenário é que pelo menos um quinto dos brasileiros vive hoje à
margem do sistema econômico e que estar à procura de emprego já não é
temporário, é uma ameaça a muitos e um traço da identidade de milhões de
brasileiros. São os situados no limiar da integração estável, os sem motivos
para subscrever o pacto social e político que garanta a ordem no país.
Discutir
segurança, educação, identificação com o destino comum, respeito aos direitos
humanos e até mesmo o reconhecimento da humanidade de todos, sem levar em conta
a exclusão social de tão extensa parcela de brasileiros, é ingênua concepção
dos problemas sociais e dos riscos políticos a que o Brasil está sujeito.
O Brasil
criou um sistema capitalista peculiar em que a reprodução do capital se tornou
dependente de técnicas de acumulação que vão da corrupção, à especulação, às
formas rentistas de extração de excedentes econômicos dos mais frágeis e
desvalidos. Favela não é produto de pobreza, é produto do enorme e descabido
custo da renda fundiária urbana, nos preços especulativos dos terrenos, causa
da invasão de terras desocupadas. Nas grandes cidades brasileiras é possível
ganhar fortunas sem o investimento produtivo de um único centavo, apenas
comprando terras por pouco para vendê-las por muito.
A
superação capitalista das insuficiências econômicas e das injustiças sociais
depende de um retorno ao capitalismo. O que depende de democracia, de
equilibrado senso de justiça e da gestão da riqueza em nome do bem comum, e não
em nome de concepções egoístas de ganho e propriedade.
O sociólogo alemão Max Weber mostrou que o capitalista verdadeiro é o empresário que atende a vocação impessoal de fazer o sistema funcionar. O próprio Karl Marx, autor da primeira teoria cientificamente fundamentada do que é a sociedade capitalista, já havia apontado que o capitalista é um funcionário do capital, e não um senhor feudal da riqueza injustamente acumulada com base em privilégios de mando e dominação. Lucro é outra coisa.
O sociólogo alemão Max Weber mostrou que o capitalista verdadeiro é o empresário que atende a vocação impessoal de fazer o sistema funcionar. O próprio Karl Marx, autor da primeira teoria cientificamente fundamentada do que é a sociedade capitalista, já havia apontado que o capitalista é um funcionário do capital, e não um senhor feudal da riqueza injustamente acumulada com base em privilégios de mando e dominação. Lucro é outra coisa.
A
abundância do noticiário sobre a corrupção no Brasil é um indicador poderoso de
que o capitalismo entre nós sucumbiu à incompetência para prever os ganhos
extraordinários da inovação, que é um bem comum, e para gerir os desdobramentos
sociais desses ganhos. Sobretudo para compreender em tempo os problemas sociais
decorrentes do mau funcionamento do sistema econômico.
Na
maioria dos países latino-americanos, e disso o Brasil é "modelo", o
sistema econômico vem se tornando o do descarte social de seres humanos, caso
da Venezuela. Nessa brutal criação da humanidade mínima, direita e esquerda são
reciprocamente cúmplices. O pseudocapitalismo residual latino-americano e o
pseudossocialismo regional, resto de concepções dos fracassos do comunismo
antimarxiano, são face e contraface das mesmas insuficiências de compreensão do
processo histórico e das limitadas possibilidades da região.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito
da da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da
Academia Paulista de Letras e autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial),
dentre outros. Escreve neste espaço semanalmente* Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5547733/os-miseraveis 25/05/2018
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