Reitor da USP defende sistema de cotas, acha que a educação precisa ser mais valorizada pelos brasileiros e prega choque de modernidade no ensino superior
access_time
18 maio 2018
Poucos conhecem tão bem a Universidade de São
Paulo quanto o atual reitor, o engenheiro Vahan Agopyan (turco de
nascimento), de 66 anos. Em 1970, ele ingressou ali como estudante da
Escola Politécnica e só deixou o câmpus em breve janela para concluir
seu doutorado no King’s College de Londres. No comando há cinco meses,
chegou em tempos difíceis, de orçamento apertado, e imbuído de uma
missão complexa: ajustar a antiga sala de aula às demandas do século
XXI. Mais prestigiada universidade da América Latina, a USP tem ainda o
desafio de se aproximar das melhores do mundo, tema que Vahan aborda na
entrevista que concedeu a VEJA.
Por que a USP nunca aparece entre as melhores universidades do mundo nos rankings do ensino? Os
rankings têm o mérito de fornecer parâmetros que permitem a comparação
de diversos critérios acadêmicos e ajudam a nos situar perante os
outros. Mas é preciso observar que há inúmeras formas de medir a
excelência — tanto que os resultados variam de acordo com quem faz a
lista. No geral, o Brasil perde pontos, e a USP também, por contar com
um número menor de alunos e professores vindos de fora. Obviamente, a
abertura ao exterior é bem-vinda para qualquer instituição de ensino
superior, e queremos cada vez mais isso, mas, em nossa ordem de
prioridades, há medidas que vêm na frente.
Por exemplo? Se estou diante de uma escolha entre contratar
um Neymar da academia mundial e injetar mais dinheiro em um laboratório
já existente com uma dezena de ótimos profissionais, fico com a segunda
opção. Com isso, eu sei, caímos alguns pontos no ranking global, mas
acho que o impacto será mais abrangente para a universidade. Não, ainda
não estamos entre as melhores do planeta, mas em certas áreas já
encontramos o topo, como na agronomia, na odontologia e em algumas
engenharias.
A China, que conseguiu avançar no ensino superior e emplacar duas
universidades entre as trinta melhores do mundo, é um exemplo
inspirador? A China tem uma situação bem diferente da do Brasil
nesse campo: oferece cursos em inglês, contrata prêmios Nobel e se
insere no jogo da excelência com um volume incomparável de dinheiro. O
país pulou de 1 200 para 2 000 universidades em poucos anos, e foi além:
100 delas vêm recebendo um aporte fantástico de recursos, o que pode
ajudá-las a chegar ao panteão da qualidade.
A diferença entre Brasil e China está no dinheiro que o governo de cada país reserva às universidades?
Não é apenas isso. A China tem uma cultura de valorização da educação
que faz com que a sociedade também contribua com as universidades. A
Escola Politécnica, na USP, já conta com um sistema em que ex-alunos
doam dinheiro por meio de um fundo. Nesse caso, há o ganho financeiro,
claro, mas também o da reaproximação de um monte de cabeças talentosas,
formadas neste câmpus, com a universidade. É uma turma que retorna com
ideias trazidas de fora dos muros da academia, o que é essencial para
qualquer instituição de ensino e pesquisa.
“A legislação brasileira inibe as doações, mas a
questão
não é só essa. Doar à Harvard dá mais prestígio,
não dá? Alguns
ex-alunos mudaram essa
lógica e agora investem na USP”
Por que tantos brasileiros fazem doações a universidades americanas e não às daqui?
Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil é preciso
pagar imposto sobre doações, o que certamente inibe a iniciativa. Mas a
questão não é só de legislação, não. Doar à Harvard dá mais prestígio,
não dá? Mas temos ex-alunos que, com o tempo, acabaram ficando com certa
vergonha de priorizar universidades do exterior e passaram a investir
na USP.
A USP adotou as cotas para estudantes negros e de baixa renda uma
década depois de outras universidades públicas. Por que a demora?
Nós fomos mais cuidadosos. Há mais de dez anos, começamos a abrir o
espectro de alunos dando um bônus na nota aos oriundos de escola pública
e, aos poucos, as pessoas no câmpus ganharam confiança na ideia de que a
inclusão não seria um obstáculo à qualidade nem levaria à criação de um
grupo à parte, segregado, que não conseguiria acompanhar o restante da
turma.
A implantação das cotas confirmou a confiança depositada nelas?
A nota de corte para o ingresso na universidade continuou alta mesmo
para os cotistas, mas, como é uma política recente, ainda não
consolidamos uma pesquisa para saber o desempenho deles.
A observação dos professores permite avançar em alguma conclusão?
Sabemos que os que entram via cotas são bons alunos, gente talentosa
que talvez tivesse ficado no meio do caminho não fosse o empurrão na
entrada. Uma parcela deles, porém, revela lacunas por terem vindo de
escolas em que receberam uma base mais fraca, especialmente em português
e na matemática básica. Por isso oferecemos cursos de reforço nessas
áreas. Está claro que, para a cota dar certo, não podemos deixar o aluno
à própria sorte.
Muita gente apostava que a qualidade das universidades cairia com
a implantação das cotas e errou. O senhor fazia parte do rol dos
céticos? Nunca encarei as cotas como um favor, como uma medida
assistencialista, mas como uma possibilidade de a universidade ganhar
com isso, tomando-se evidentemente os cuidados necessários. Considero a
abertura das salas de aula a estudantes de diferentes origens um passo
decisivo na busca por uma instituição moderna. O papel das grandes
universidades neste século, afinal, é formar gente capaz de liderar
mudanças e, para tal, os jovens não podem estar circunscritos a um
universo limitado de experiências. Eles precisam tomar contato com
diversas realidades, ter um olhar abrangente, amplo. As instituições de
ensino superior de alto nível estão seguindo mundo afora essa mesma
trilha, pescando alunos brilhantes de todos os estratos.
“As cotas não são favor ou assistencialismo, mas uma
maneira de a universidade recrutar ótimos alunos
e avançar. Abrir a sala
de aula a estudantes
de origens diversas é um passo decisivo”
Em sua opinião, as cotas devem ter prazo para terminar? A
cota é, por natureza, uma política compensatória. Portanto, a ideia é
que um dia a compensação não se faça mais necessária. O abandono
gradativo dessa política, porém, vai depender daquilo que ela veio
compensar — a baixa qualidade do ensino básico a que a maioria das
pessoas tem acesso.
As universidades estão conseguindo atender às demandas deste século ou pararam no tempo? Por
minha experiência e observação, digo que está sendo difícil para as
universidades, inclusive a USP, fazer a transição de um mundo dividido
por disciplinas estanques, que pouco conversavam entre si, para uma
lógica multidisciplinar, em que os assuntos se conectam o tempo todo e
os profissionais de diversas áreas precisam interagir. Minha geração,
afinal, é monodisciplinar. Para incentivar pesquisas feitas sob essa
nova abordagem, a USP tem oferecido benefícios para alunos e
professores, mas a verdade é que eles ainda não se sentem confortáveis.
Estamos falando aqui de uma nova maneira de pensar.
A sala de aula está mudando? Lentamente, sim. Estamos dando
cada vez mais espaço às disciplinas básicas e fundamentais das várias
áreas e deixando o conhecimento específico como uma opção para o aluno
que queira se aprofundar nele nos períodos avançados. Em alguns cursos
de engenharia, por exemplo, as disciplinas básicas vão até o 3º ano,
depois vêm as aplicadas, e o 5º ano fica à escolha do estudante, a
depender daquilo que queira fazer da vida. Na década de 70, aprendi a
fazer cálculos de forma exaustiva na faculdade de engenharia, até que,
quando me formei, o microcomputador já era uma realidade e tudo mudou.
Imagine agora, com a pressa do século XXI. Precisamos encarar o fato de
que mesmo as carreiras de hoje podem desaparecer em dez anos. E os
estudantes precisam estar preparados para esse cenário.
Em geral, os alunos chegam à USP preparados para a complexidade do ensino superior?
Temos um vestibular disputadíssimo, que se encarrega bem de fisgar
jovens cérebros. Agora, todos os estudantes, daqui e de qualquer outra
universidade brasileira, vêm de um ensino médio que precisa urgentemente
mudar, e parece que vai. Não é razoável que os alunos tenham de estudar
doze, quinze matérias justamente numa era em que a chave não está mais
no armazenamento do conteúdo. A escola deve se ajustar aos novos tempos.
Sendo ainda tão pouco atrativa, estamos matando talentos aos 11, 12
anos.
O vestibular também precisa mudar? É claro. A prova de ingresso nas universidades vai ter de mudar.
A USP também demorou a aceitar o Enem. Afinal, está funcionando?
Sim. A Fuvest, nosso vestibular de entrada, exige um pouco mais de
conhecimentos específicos, mas, no final das contas, as duas provas são
capazes de rastrear os melhores estudantes. E, com o Enem, ganhamos a
possibilidade de atrair talentos do Brasil inteiro.
O senhor andou se queixando do fato de a USP arcar com quase
todos os gastos do Hospital Universitário. Em suas palavras: “Não somos
uma entidade assistencialista”. O que quis dizer exatamente com isso?
Não acho certo desviarmos recursos de ensino e pesquisa para mantermos
sozinhos um hospital que atende a população do estado inteiro. O mais
justo é dividir a conta com o estado, que, aliás, também deveria ajudar
nos custos com a assistência estudantil, incluindo aí acomodações e
restaurantes. Esses gastos subiram muito com as cotas.
Alguma chance de o pleito ser atendido? Sim. O governo está sensível.
A USP chegou em 2014 a um déficit de 1 bilhão de reais. A situação ainda é crítica?
Hoje não temos nenhuma folga no orçamento, vivemos contando dinheiro,
mas saneamos o caixa. Suspendemos contratações, lançamos planos de
demissões voluntárias e passamos uma faca nos custos fixos. Houve um
descontrole no passado, com aumentos vertiginosos nos salários quando o
ICMS estava em alta. Com a crise no país, isso virou um problema.
A crise das universidades federais é ainda pior. Por quê?
Porque elas estão engessadas por uma legislação que não lhes dá
autonomia administrativa, algo que a USP tem. Quer dizer que elas não
podem fazer o próprio planejamento. E planejar tem tudo a ver com
produtividade. Se defino que uma pesquisa deve durar três décadas e
cumpro a meta, ela terá mais chance de prosperar. É assim, a longo
prazo, que se semeia um Prêmio Nobel.
-------------------
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583
Foto: (Jefferson Coppola/VEJA)
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/um-passo-decisivo/
Nenhum comentário:
Postar um comentário