É fácil e popular culpar Israel por todos os massacres. Mais difícil é perceber que nunca haverá paz enquanto os palestinianos forem reféns de uma cultura de vitimização mitificada na sua “catástrofe”
Nakba. A palavra árabe para “catástrofe”. Nakba, o mito
identitário que os palestinianos celebram – o mito que enquanto for
glorificado tornará impossível a paz e continuará a alimentar uma
espiral de violência sem fim. Como a desta semana.
Vimos as
imagens de violência, sabemos que morreram dezenas de pessoas, ignoramos
que eram quase todos (50 em 62) operativos do Hamas e logo culpamos
acefalamente ora Israel, ora o Presidente Trump por ter decidido
transferir a embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém. Mas quantos
procurámos conhecer o significado de a campanha de manifestações e
protestos ter sido baptizada como a “Grande Marcha do Retorno”?
E quantos fizemos estas perguntas simples: Retorno aonde? Retorno de quem? Retorno quando?
A
resposta a estas perguntas dá-nos a chave para a eternização deste
conflito sem fim. O retorno de que falam os promotores destas
manifestações “não violentas” é o retorno dos palestinianos não aos
territórios ocupados por Israel há meio século, na Guerra dos Seis Dias,
mas a todo o território de Israel, a todo aquele território que
resultou da guerra de independência de 1948. O retorno que reivindicam
implica o puro e simples desaparecimento do Estado de Israel. O retorno
com que sonham não comporta a presença de judeus no Médio Oriente.
A
reivindicação do retorno está indissociavelmente ligada à celebração da
Nakba, a “catástrofe”, ao que os palestinianos recordam como sendo a
traumática expulsão de centenas de milhares de árabes das aldeias, vilas
e cidades de Israel durante a guerra de 1948. A reivindicação do
retorno traduz o desejo de voltar a travar essa guerra de há 70 anos na
esperança de, desta vez, conseguirem o que na altura não conseguiram:
empurrar literalmente os judeus para o mar até que não restasse na
Palestina um só defensor da existência de uma pátria judaica.
Para
compreendermos esta realidade não basta olharmos para as miseráveis
condições de vida em Gaza ou elaborarmos longas tiradas sobre “a maior
prisão a céu aberto do mundo”. É preciso recuar aos turbulentos anos de
1947 e 1948 e, em vez de remexermos nos arquivos e vasculharmos a
memória à procura de quem cometeu mais brutalidades, mesmo atrocidades,
nas diferentes guerras que cruzaram a Palestina entre o fim do mandado
britânico e a consolidação do Estado de Israel – a guerra civil entre
árabes e judeus, a guerra de ambos contra os ingleses e, por fim, a
guerra do nascente estado judaico contra todos os estados árabes
vizinhos –, ficarmo-nos pelo reconhecimento de que se criou então uma
nova realidade. E essa nova realidade chama-se Estado de Israel.
Não
tinha de ser como foi. A partição decidida pelas Nações Unidas, se
tivesse sido aceite pelos árabes, teria garantido aos palestinianos um
território mais vasto e Jerusalém teria ficado sob mandato
internacional. Mas os árabes não aceitaram e os fundadores do Estado de
Israel, com Bem Gurion à cabeça, prefiram aceitar, declarar a
independência e depois lutar, mesmo que fossem escassas as hipóteses de,
sozinhos, derrotarem cinco exércitos árabes (Egipto, Síria, Líbano,
Jordânia e Iraque). Mas a verdade é que derrotaram.
Estima-se que,
nessa altura, 700 mil árabes tenham fugido das suas casas nas zonas que
ficaram sobre controle do novo Estado recém-proclamado.
A
historiografia ainda hoje se divide sobre as razões fundamentais desse
êxodo. Do lado palestiniano fala-se de limpeza étnica deliberada. Do
lado israelita de uma fuga que teve muitos motivos mas que também foi
incentivada pelos líderes árabes e palestinianos da época. Certo é que a
maioria dos árabes fugiu então de suas casas, uns em pânico, outros por
não quererem viver sob as novas autoridades, outros ainda forçados a
partir pelo exército judaico.
Mas esses refugiados não foram os
únicos que essa guerra gerou: ao mesmo tempo que os árabes fugiam de
Israel, os países árabes expulsavam centenas de milhares de judeus que
neles viviam, por vezes em comunidades com quase dois mil anos. O
destino dessas vagas de refugiados é que foi diferente – tão
radicalmente diferente que em boa parte explica a teimosa persistência
do conflito.
Os refugiados judeus foram acolhidos por Israel e
integrados no país que então nascia. Juntaram-se às vagas de refugiados
que continuaram a chegar da Europa e da então União Soviética, e se a
sua absorção nem sempre foi fácil, ela acabou por determinar o DNA do
novo Estado.
Já os refugiados palestinianos foram – literalmente –
atirados para campos de acolhimento provisórios mas onde ainda hoje
vivem muitos dos seus descendentes. Os países árabes não os quiseram
acolher. Os vizinhos árabes nem sequer permitiram a constituição de uma
Palestina independente: depois da derrota dos exércitos árabes em 1948, a
Jordânia anexou a região a que então se chamava Cisjordânia – hoje
conhecida por Margem Ocidental – e o Egipto tomaria a seu cargo a Faixa
de Gaza. Só quase duas décadas depois, na sequência da Guerra dos Seis
Dias, Israel ocuparia esses territórios, assim como os Montes Golã, a
norte, e a Península do Sinai, a ocidente.
Na prática os
refugiados de 1948, espalhados por esses territórios assim como pela
Jordânia e pelo sul do Líbano, ficariam como que reféns da estratégia
árabe de nunca reconhecer Israel e de nem sequer aceitar a presença dos
judeus na Palestina. Gradualmente a Nakba foi-se tornando no principal
elemento da identidade palestiniana, uma identidade que não existia
antes, nem no período do Império Otomano, nem sequer durante o Mandato
Britânico. Com o culto e a celebração da Nakba veio também a
reivindicação permanente do retorno, alimentada quer pelo discurso dos
líderes palestinianos (tanto dos moderados como dos radicais) e
materializada em relíquias guardadas nos campos de refugiados e
mostradas em manifestações ou aos jornalistas estrangeiros, como as
chaves das casas abandonadas aquando do êxodo de 1948.
Alguns
perguntarão se não é razoável aceitar esse “direito de retorno” como
forma de facilitar a resolução do conflito. A resposta só pode ser
negativa e importa perceber porquê.
Antes do mais, o que é que nos
ensina a história, nomeadamente a história europeia dos século XIX e
XX, o que é que ela nos mostra sobre como tem sido possível manter a paz
neste nosso continente? Muitos responderão que foi a União Europeia,
mas se investigarmos um pouco melhor veremos que, para que esta fosse
possível, a Europa passou antes, no quadro da primeira e da segunda
guerra, por um gigantesco processo de transferência de populações.
Recorro ao insuspeito Tony Judt e à sua obra fundamental Pós-Guerra — História da Europa desde 1945
para recordar como nesse período as fronteiras foram redesenhadas e as
populações rearrumadas. Ocorreu primeiro, e desculpem a brutalidade dos
termos, uma limpeza étnica genocidária promovida por alemães e
soviéticos, depois uma limpeza étnica profiláctica pacificamente
assumida pelos vencedores. É esta última que nos interessa, pois é
aquela com a qual podemos estabelecer um paralelo. Os números são
impressionantes: a Bulgária transferiu 160 mil turcos para a Turquia; a
Checoslováquia trocou com a Hungria 120 mil eslovacos por outros tantos
húngaros; 400 mil jugoslavos viajaram do sul para o norte do país para
ocupar o vazio deixado pela partida de 600 mil alemães e italianos; a
Checoslováquia, para acabar com o “problema alemão”, expulsou três
milhões de germânicos dos Sudetas, sendo que 267 mil morreram pelo
caminho; 623 mil alemães foram também expulsos da Hungria, mais 786 mil
da Roménia, meio milhão da Jugoslávia e mais de oito milhões da Polónia,
neste caso sobretudo devido à definição de uma nova fronteira, 200 km
mais a Ocidente do que a anterior.
O essencial destas
“transferências de populações” foi decidido na cimeira de Potsdam entre
as potências vencedoras e, ao contrário do que previu na altura Anne
O’Hare McCormick, do New York Times, este não foi um “crime
contra a humanidade” sobre o qual a história exerceu “uma vingança
terrível” – foi quando muito, na interpretação de Tony Judt, um crime
contra a humanidade que possibilitou uma novahistória. Uma história de
paz.
É possível encontrar no passado do próprio Médio Oriente
outros episódios semelhantes (com destaque para as trocas de populações
gregas e turcas na sequência da Primeira Guerra), mas não vou continuar a
dar exemplos. A verdade é que ao nunca aceitarem que a Nakba criou uma
realidade nova e um país novo – Israel –, os palestinianos nunca
procuraram realmente construir o seu Estado, mesmo quando tiveram essa
oportunidade.
A situação na Faixa de Gaza é disso gritante
exemplo. Em 2005 – ou seja, há já 13 anos – Israel retirou
unilateralmente daquele território. Foi uma decisão do governo de um
“falcão”, Ariel Sharon, e o exército teve de intervir para retirar os
colonos que se tinham instalado naquele território que estava ocupado
desde 1967. De imediato os palestinianos invadiram os colonatos e
destruíram tudo à sua passagem. Passado pouco tempo os radicais do Hamas
tomariam o poder em Gaza, expulsando a Fatah, e o território, que tem
fronteira com o Egipto e poderia ter sido gerido com interferência
mínima de Israel, passou a seu usado como plataforma para ataques usando
mísseis improvisados ou promovendo infiltrações através de túneis
escavados por baixo da vedação erguida na fronteira.
Claro que
Israel tem muitas culpas em toda esta evolução e neste momento julgo
que, lamentavelmente, a maioria dos seus cidadãos já nem sequer acredita
numa solução de dois Estados, aquela que estava prevista nos Acordos de
Oslo de há 25 anos. Não sei também se não teria sido possível evitar
tantas mortes nos confrontos associados a esta “Grande Marcha do
Retorno” (mas por isso mesmo não posso falar de “crime contra a
humanidade”, conhecendo como conheço os métodos do Hamas e o seu
absoluto desprezo pela vida dos “mártires” que mandou marchar em
direcção à vedação fronteiriça).
Acontece que o meu ponto, neste
artigo, não é esse. É sublinhar a impossibilidade de chegar a algum
acordo de paz enquanto a identidade palestiniana estiver presa à Nakba e
à reivindicação do direito de retorno, enquanto persistir numa cultura
de vitimização e rejecionismo, o que significa que está prisioneira do
conceito irredentista de que a própria existência de Israel é um acto de
colonialismo e, por isso, um Estado ilegítimo que tem de desaparecer.
E
também enquanto, para alimentar esse mito, os mais altos responsáveis
palestinianos continuarem a defender que nunca houve judeus na
Palestina, que nunca houve sequer um Templo de Salomão no monte onde
hoje se situa a Esplanada das Mesquitas em Jerusalém ou mesmo que o
Holocausto é uma invenção para justificar o apoio do Ocidente a Israel.
Trata-se de um discurso adoptado ao mais alto nível, mesmo pelos
supostos moderados: ainda no passado dia 30 de Abril, num discurso ao
Conselho Nacional Palestiniano, Mahmoud Abbas, o sucessor de Arafat,
defendeu que Israel “é um corpo estranho nesta região” e que o
Holocausto sucedeu por causa do “comportamento social” dos judeus,
nomeadamente por serem banqueiros. É verdade que já pediu desculpa por
essas palavras, mas será que podemos acreditar na sua sinceridade quando
na sua tese de doutoramento contestou os números do Holocausto e acusou
os sionistas de colaborarem com os nazis?
Poderão os
palestinianos algum dia ultrapassar este trauma? Poderão algum dia
encarar a Nabka como uma das bases da sua identidade mas não como uma
catástrofe que tem de ser revertida e vingada? É que enquanto isso não
suceder não terão condições para construir um Estado capaz de viver ao
lado de Israel, nem para serem uma nação capaz de se rever nos seus
feitos e não nas suas derrotas.
Por isso não se iludam: a “Grande
Marcha do Retorno”, o protesto que encaminhou dezenas de milhares de
pessoas contra as vedações que separam Gaza de Israel nunca poderia ser
definido como uma manifestação pacífica, antes como um chamamento à
guerra. E foi precisamente a isso que assistimos.
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* Nasci a 7 de Abril de 1957 e
sou jornalista desde 1976, passei por vários jornais (Voz do Povo,
Expresso) e fui fundador e, mais tarde, director do Público (de 1998 a
2009). Escrevi vários livros, nomeadamente O Homem e o Mar, o Litoral
Português (Círculo de Leitores/Gradiva), Diálogo em Tempo de Escombros
(com D. Manuel Clemente, Pedra da Lua),
Liberdade e Informação (Fundação Francisco Manuel dos Santos) e Era Uma
Vez a Revolução (Aletheia) e colaboro, como professor convidado, com o
Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.
Fonte: https://observador.pt/opiniao/o-mito-fundador-que-e-a-desgraca-dos-palestinianos/?utm_source=Newsletters+Observador&utm_campaign=1cdadb05b5-EMAIL_CAMPAIGN_2018_05_18&utm_medium=email&utm_term=0_4e99f7d1e5-1cdadb05b5-183794629
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