sexta-feira, 4 de maio de 2018

Preceitos que o vinho incita

Jorge Lucki*
 
                        Macron diz que gosta de vinho e o bebe regularmente: comemoração no meio vitivinícola

Declaração recente do presidente francês Emmanuel Macron, dizendo que gosta de vinho e o bebe regularmente, é motivo de comemoração no meio vitivinícola da França. Não é para menos. Os impostos não vão baixar, nem vai haver relaxamento da lei Évin (por incrível que pareça é o nome do autor da lei referente à luta contra o tabagismo e o alcoolismo - não distinguindo vinho de outros destilados -, promulgada em 1991), que impõe controles rígidos à publicidade da bebida, mas a posição de Macron é um alento a um setor desprezado pelos chefes de governo anteriores (Jacques Chirac, em 2002, afirmou que tomava Coca-Cola; Nicolas Sarkozy, só água; e François Hollande decidiu vender parte da adega do Palácio do Eliseu), a despeito de sua tradição e indelével ligação com o país.

O presidente foi incisivo em seu apoio à vitivinicultura e contrário aos defensores de uma política mais dura contra o alcoolismo ao afirmar que "é aflitivo para a saúde pública quando jovens se embriagam a um ritmo acelerado com álcool ou cerveja forte, mas não é com vinho". E finalizou com uma famosa frase de um de seus (bons) antecessores, Georges Pompidou: "N'emmerdez pas les français", algo como, em tradução livre, "preocupem-se com coisas mais importantes e deixem de aborrecer os franceses".

Mais do que representar fonte de recursos advindos das exportações e dos mais de 80 milhões de turistas estrangeiros que a França recebe por ano, boa parte atraídos pela gastronomia e pelo vinho, o nobre fermentado encarna subliminarmente alguns dos valores fundamentais do país: liberdade, identidade e, em especial, fraternidade. Comunhão, compartilhamento, convivialidade, tolerância e a valorização do prazer e do lado bom da vida, estão entre os preceitos que o vinho incita.

Todas as antigas civilizações se referiam ao vinho como a bebida dos deuses, e por vezes como um próprio deus, caso de Dionísio e Baco, com citações nos livros sagrados dos judeus e dos cristãos, o que ressalta sua relação com essas religiões, mas também com o islamismo, ainda que isso possa parecer contraditório. O tema no "Alcorão" não é claro, dizendo uma coisa e seu contrário. Hugh Johnson, em "A História do Vinho", dá a entender que, no começo, a bebida era permitida e cultuada, invertendo-se depois de uma briga entre dois muçulmanos, ainda nos tempos em que Maomé vivia.
À "proibição absoluta" atribui-se o fato de ambos terem bebido. Consta que o vinho teria sido banido do islamismo dez anos após a morte de Maomé. Talvez outras ideias dele, menos belicosas, tenham sido modificadas. O fato é que a interpretação negativa de uns poucos se alastra facilmente, cega e faz esquecer princípios elementares, prejudicando muitos.

Isso também diz respeito do lado dos judeus, para quem o vinho é importante: na fé judaica sabe-se, por exemplo, que este mundo não pode ficar como está. O nobre fermentado é inclusive citado quando se fala na fé em um mundo melhor, sem miséria, fome, guerras nem conflitos. É a aguardada era messiânica. Para o judaísmo, a chegada do Messias será celebrada com banquete, em que será servido o Leviatã, o grande peixe do inicio da criação, e vinho especial. A bebida será elaborada com as primeiras uvas que o Criador guardou do Éden, quando o jardim sagrado ainda era na terra. Nessa refeição tão aguardada, o lugar para o vinho está reservado.

O mesmo ocorre em todas as cerimônias, desde a circuncisão até o casamento. Está nos "Salmos" que "o vinho alegra o coração dos homens", e ao reconhecer e agradecer a Deus pelo momento o vinho está sempre presente. Em qualquer refeição judaica, que começa com o pão, é rezada uma benção para ele. Por sua importância, o pão - de tão básico - desobriga de fazer as bênçãos dos demais alimentos. Vale para tudo, menos para o vinho, que requer bênção específica.

A religião judaica, em sua versão mais ortodoxa, impõe normas para a produção, manuseio e consumo de alimentos, certificados como produtos "casher". Com vinho não é diferente. O que o diferencia não é a qualidade ou estilo, mas o processo de elaboração: as uvas e a forma de cultivá-las são as mesmas de qualquer outro vinho disponível. As mudanças começam quando os cachos chegam à adega para iniciarem os preparativos e a fermentação. Apenas pessoas que observam os preceitos da religião podem manuseá-las, com a supervisão, até o engarrafamento, feita por um rabino.

Essas leis ainda em vigor datam de séculos antes de Cristo. Deu tempo ainda de a viticultura grega se instalar em toda a costa do Mediterrâneo levada pelo culto a Dionísio, ao qual se atribui a origem divina do vinho. Com o advento do cristianismo, o vinho passou a fazer parte da santa missa católica. Na Eucaristia - a missa -, o vinho produzido pelo homem torna-se, pela fé e, portanto, espiritualmente falando, em sangue purificado e purificador de Jesus para a salvação de todos. Há grande número de citações sobre a bebida no Novo Testamento, algumas práticas, como a de Paulo, que, escrevendo a seu discípulo Timóteo, recomendava firmemente: "Não continues a beber somente água; toma um pouco de vinho por causa de teu estômago e de tuas frequentes fraquezas".
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* Engenheiro pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, consolidou sua formação em vinho na Academie du Vin de Paris.
E-mail: Colaborador-jorge.lucki@valor.com.br
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/5500927/preceitos-que-o-vinho-incita 04/05/2018

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