Rodrigo Constantino*
No espaço de poucos dias tivemos três grandes perdas. No dia
14, morreu o escritor Tom Wolfe. Seu refinamento, visão conservadora e
elegância, além da forma como retratava a hipocrisia e vaidade das
elites “progressistas”, deixarão saudades. Seu “radical chic” foi
influência direta em meu Esquerda Caviar, enquanto seus divertidos
ataques aos modismos da “arte” contemporânea me renderam boas risadas.
Um de seus últimos livros, Sangue nas Veias fala do caldeirão étnico e
cultural repleto de latino-americanos e com poucos americanos
“legítimos” em Miami. Morando há três anos nesse ambiente, tenho que
constatar que Tom Wolfe é cruel na medida certa com nossas elites
vaidosas e abobalhadas. Mesmo com todas as suas qualidades, de “América
Latina que deu certo”, convenhamos: Miami, com uma das maiores
quantidades de “breguice” por metro quadrado, é um prato cheio para o
autor tripudiar dessa classe de nouveau riche, não é mesmo?
A segunda grande perda foi do historiador Richard Pipes, que faleceu
no dia 17. Sua especialidade era a história russa, e isso lhe deu uma
visão privilegiada do comunismo. Em Propriedade e Liberdade, Pipes
resume bem o problema: “A história da Rússia oferece um excelente
exemplo do papel que a propriedade desempenha no desenvolvimento dos
direitos civis e políticos, demonstrando como a sua ausência torna
possível a manutenção de um governo arbitrário e despótico”. Abolir a
propriedade privada? Eis o caminho do inferno!
Richard Pipes conclui que “a experiência da Rússia indica que a
liberdade não pode ser legislada; ela precisa crescer gradualmente, em
forte associação com a propriedade e a lei”. Infelizmente para os
russos, a propriedade privada nunca fincou suas raízes por lá, onde o
poder sempre esteve arbitrariamente concentrado no Estado. Parece um
país que conhecemos bem.
Por fim, morreu no dia 23 o escritor Philip Roth. Gosto muito de seu
estilo, da força de suas palavras, sempre econômicas. Também sou
atravessado pelo tema recorrente de seus livros: o poder de estrago do
imprevisível, a mudança repentina na vida das pessoas por acontecimentos
inesperados, o encontro com o “real”, como diria um psicanalista, as
contingências do destino. Tudo parece certinho, ordenado, bem ao gosto
de um típico obsessivo, quando de repente o mundo desaba, o chão
desaparece, tudo fica nebuloso. É angustiante. Mas é realista. É a vida.
E por isso mesmo temos que valorizar a nossa, reconhecendo, com
humildade, que não estamos em seu total controle, e que a precariedade
de nossa existência é a norma, o que nos demanda coragem e fé. A morte,
afinal, chega para todos, e quase sempre sem aviso. Importa, porém,
aquilo que fica. No caso desses três gigantes, uma incrível obra como
legado.
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* Rodrigo Constantino é economista, escritor e um liberal sem medo de polêmica ou da patrulha da esquerda “politicamente correta”
Fonte: https://istoe.com.br/tres-grandes-perdas/ acesso; 29/05/2018
Imagem da Internet
O universo de Philip
Roth, segundo seus tradutores no Brasil
Olívia Fraga
26 Mai 2018 (atualizado 28/Mai 15h37)
Em entrevistas ao ‘Nexo’, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster
analisam a obra do autor americano, que morreu aos 85 anos
Foto: Eric Thayer /Reuters
O escritor americano Philip Roth, em Nova York
O escritor americano Philip Roth, em Nova York
De 1959, ano do lançamento de “Adeus, Columbus”, até meados de 2010, com
“Nêmesis”, Philip Roth escreveu quase 30 romances, além de ensaios e
textos críticos. Considerado por muitos o maior escritor americano em
atividade, Roth morreu na noite de terça-feira (22), vítima de
insuficiência cardíaca.
Sua prosa criou personagens icônicos e retratou tipos que simbolizam a
sociedade americana do século 20, em suas idiossincrasias e fobias. Sexo
e culpa, identidade e ruptura, a vida provinciana e o desejo de se
descolar dela são elementos fundadores da obra de Roth, que decidiu
parar de escrever em 2010, considerando ter feito o melhor que pôde.
Sobre a própria obra, escreveu: “[John] Updike e [Saul] Bellow seguram
suas lanternas no mundo, revelam o mundo como ele é agora. Eu cavo um
buraco e miro minha lanterna para o buraco”.
Boa parte da obra de Philip Roth editada no Brasil foi vertida para o
português por dois cariocas, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster. No
total, Britto traduziu nove livros do autor – o primeiro deles foi “A
Marca Humana”, em 2002, tido por muitos como o ponto alto da carreira do
americano.
Jorio Dauster começou a trabalhar com a obra de Roth em “Indignação”, de
2009, e foi responsável por outras cinco traduções, entre elas a de
“Patrimônio” (romance de tom autobiográfico, onde o escritor narra a
conflituosa relação com o próprio pai).
O Nexo formulou seis perguntas sobre Roth e lançou-as aos dois
tradutores. Abaixo, as reflexões de Britto e Dauster sobre o traço
inconfundível da obra de Philip Roth.
Qual o lugar de Roth na literatura do século 20?
Paulo Henriques Britto Roth é um dos maiores nomes da ficção em língua
inglesa. Ele se situa basicamente no campo do realismo, mas se permite
algumas incursões pelo fantástico.
Jorio Dauster Muitas vezes comparado a Saul Bellow, John Updike e Norman
Mailer, Roth certamente está entre os maiores autores americanos da
segunda metade do século 20, mesmo que coloquemos nessa lista meus
preferidos, J.D. Salinger e Vladimir Nabokov. Com exceção do Bellow,
nenhum dos citados, assim como Roth, recebeu o prêmio Nobel de
Literatura, mas agora se sabe que havia algo de podre no reino da...
Noruega.
Qual a marca literária de Roth?
Paulo Henriques Britto O que sobressai na obra de Roth é sem dúvida a
intensidade de sua prosa. Ele não tem medo de surtar. Mesmo dentro da
chave realista, ele envereda para o insólito, o que o liga de certa
forma a um Dostoiévski. Outros autores dessa linhagem realista, como
John Updike, acabam falando sobre vidas que não saem muito daquele mesmo
lugar. Ele se permite excessos de todos os tipos, levando a narrativa
realista às raias do fantástico, e vez por outra rompe com esses
limites. Talvez por ter uma filiação ao que quase poderia se chamar de
‘escola judaica’ de escrita, que formou tantos escritores americanos,
ele faz uso mais lúdico e destemido da linguagem.
Jorio Dauster Ao contrário de um [Vladimir] Nabokov, mestre em
ourivesaria verbal, Roth tem um estilo forte mas escorreito. Nos seus
últimos livros, a linguagem é mais contida e a própria narrativa é mais
compacta, talvez porque ele já não se sentisse capaz de enfrentar a
“humilhação” que significava produzir uma obra, tal era a intensidade
com que escrevia.
Como o autor explora a identidade judaica?
Paulo Henriques Britto Mais especificamente, a identidade de um judeu
norte-americano de sua época, sem nenhuma intenção de chegar a nenhuma
essência judaica. Dentro da melhor tradição realista, ele trabalha com o
meio e o tempo em que viveu, mas consegue extrapolar daí para o plano
do universalmente humano, como todo escritor realmente grande.
Jorio Dauster Não creio que Roth seja relevante para entender a
identidade judaica no mundo. Seu foco - e seu problema existencial -
estava na sociedade americana e em como a terceira geração dos
imigrantes judeus poderia alcançar a aculturação plena. A partir dos
avós que chegaram na metade do século 19 e foram viver nos guetos
aceitando salários miseráveis, ele tinha visto como a segunda geração já
era capaz de funcionar relativamente bem no seu país de nascimento por
falar inglês e conhecer os costumes locais, embora frequentemente
falasse iídiche em casa e o comparecimento à sinagoga fosse compulsório.
No entanto, os judeus continuavam a viver em comunidades fechadas e,
como aconteceu com seu pai, por mais que se esforçassem, os homens
jamais puderam galgar os escalões mais altos das empresas em que
trabalhavam porque esses estavam reservados aos góis. A história pessoal
e a obra literária de Roth são o testemunho do que lhe custou escapar
desse confinamento físico e mental.
O tom crítico sobre os EUA: que país ele retratou?
Paulo Henriques Britto Roth nunca foi de esquerda: é um americano
liberal que se orgulha das realizações do seu país e se envergonha do
que há de mal resolvido na cultura americana, em particular a
institucionalização do racismo, como fica claro em “A Marca Humana” e
“Complô contra a América”. No primeiro, ele entra na pele de um negro
para mostrar o racismo institucional, muito antes de problematizarmos
‘lugar de fala’. No último, ele fala de um país que concentra a maior
parte dos judeus do mundo e onde, ao mesmo tempo, sobrevive um
antissemitismo forte, nem sempre mascarado. Os Estados Unidos demoraram
para entrar na Segunda Guerra Mundial, um pouco em função desse
preconceito.
Jorio Dauster Ele retratou um país ainda castigado pela recessão, logo
depois torturado pelas guerras, e em que sua raça era vítima de um forte
preconceito. Mais tarde, o que ele viu foi o desmoronar do “American
dream” (sonho americano), de onde brota um sentimento nostálgico com
relação ao passado, e felizmente ainda teve tempo de chamar publicamente
Trump de bufão! Não obstante, sempre sentiu imenso orgulho de ser um
cidadão dos Estados Unidos.
Qual a inovação nas descrições que ele fez do sexo e da velhice?
Paulo Henriques Britto Está no fato de ele não ter medo do excesso, do
exagero, da caricatura, de levar um estereótipo até as raias da loucura.
Seus últimos quatro livros são curtos e compõem uma safra concisa sobre
a velhice. Nem são tão bons assim, o que é até permitido para um autor
como Roth, que produziu outros tantos livros bons. Essas obras sobre a
velhice são livros de velho para velho, com uma obsessão pelo sexo nessa
idade e na ideia de finitude. Em “Fantasma sai de cena”, ele confunde
realidade e fantasia, a ponto de o leitor não saber discernir ambas, ao
final do romance.
Jorio Dauster Em matéria sexual, a única coisa realmente inovadora para
mim foi uma peça de fígado, comprada no açougue para uso da família no
jantar, ser usada a caminho de casa para a prática do onanismo. De
resto, como se pode ver em “O professor do desejo”, o que existe é uma
forte obsessão que ele extravasa inclusive através de seu alter ego,
David Kepesh, e envolve as tradicionais ménages à trois, sadomasoquismo
etc. Quanto à velhice, que ele definia como um “massacre”, não encontrei
nada de revolucionariamente original, mas sim páginas antológicas onde
ele retrata toda a angústia do ser humano diante da deterioração física e
da morte. Traduzi muitas passagens de “O patrimônio”, onde ele relata a
enfermidade fatal do pai, com lágrimas nos olhos.
As acusações de misoginia: questão geracional?
Paulo Henriques Britto Sua obra reflete os preconceitos e limitações de
um homem de sua geração e com a sua formação. A misoginia está lá, mas a
abordagem dele é impiedosa com tudo e com todos. Ele não poupa ninguém
nem nada, muito menos ele próprio, como homem, branco, judeu e
americano.
Jorio Dauster Ele fez tudo para se livrar de uma típica mãe judia, para
quem a limpeza era uma graça divina, e caiu nos braços de uma megera
branca, anglo-saxã e protestante que infernizou sua vida durante muitos
anos e com quem só se casou quando ela trouxe uma prova falsa de que
estava grávida. Mais tarde, viveu com a grande atriz Claire Bloom, o que
deve ter alimentado uma guerra de egos que só fez se agravar quando ele
passou a viver na Inglaterra a fim de passar mais tempo com ela. Mas,
em “Quando ela era boa”, Roth aproveita elementos da vida da primeira
esposa para – no único livro em que a protagonista principal é uma
mulher e onde não aparece um só judeu – fazer um retrato devastador de
uma família pequeno-burguesa do Centro-Oeste e de uma moralista
americana que se destrói ao tentar reformar os homens ao seu redor. As
mulheres sem dúvida não saem bem em suas fotos, mas será por misoginia
ou simplesmente por vingança existencial?
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