“A economia de hoje está baseada na ideia da fé e
do dever, do crédito e do débito. São dois conceitos que provêm do mundo da fé.
‘Fé’, em grego, se chama ‘pistis’
Se há um filósofo característico do presente é Giorgio Agamben. Nasceu em Roma em 1942, mas sua
obra globalizada não pode desligar-se de suas atividades na França, Inglaterra
e Alemanha, entre outros países em que trabalhou. É fácil detectar nela
a influência de Martin Heidegger, Walter Benjamin e
Michel Foucault, mas também as de Kafka e do situacionista Guy Debord. Agamben chegou à universidade para estudar
Direito, mas se inclinou pela filosofia depois de assistir entre 1966 e 1968 a
alguns seminários com Martin Heidegger. Foi o mesmo período, recorda, em que
descobriu Benjamin: “Dois autores muito diferentes. Um era o contraveneno do
outro”.
A reportagem é de Francesc Arroyo, publicada por El País,
30-04-2018.
Sua obra, que nunca perde de vista a relação do homem com a linguagem,
não se esgota na filosofia, mas se estende por todos os campos do saber:
da literatura às artes plásticas, da filologia à antropologia, passando pela
teologia e, claro, pela política. Entre as pessoas com quem estabelece estreita
relação há filósofos: Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Pierre
Klossowski; mas também cineastas como Pier Paolo Pasolini para a revista, ou escritores: Elsa
Morante, Ingeborg Bachmann, Italo Calvino. Ensina Filosofia
em Veneza e dirigiu a edição italiana das obras de Benjamin. A editora
Boitempo acaba de lançar no Brasil sua obra O Fogo e o Relato,
com o subtítulo Ensaios sobre Criação, Escrita, Arte e Livros.
Mesmo nos textos mais filosóficos, em Agamben se entrecruzam
outros discursos. Em uma de suas obras mais lidas, Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua
(Editora UFMG), parte de Hannah Arendt para a revista Foucault, mas não se
esquece da contribuição de Kafka para definir a situação do homem
contemporâneo. “A literatura e a poesia foram sempre muito importantes para
mim. Não acredito que possam ser separadas da filosofia. Não são campos
incomunicáveis. Eu diria que são duas intensidades que atravessam o campo da
linguagem humana”, explicava Agamben em uma entrevista em 2016 a o EL PAÍS,
quando foi publicado em espanhol o mesmo livro que agora sai no Brasil.
Na realidade, seriam atividades destinadas a se cruzarem. “Aquilo que a poesia
realiza com o poder de dizer, a política e a filosofia devem realizar com o
poder de agir”, sustenta em O Fogo e o Relato. Já em Hölderlin a poesia
“marca o ponto em que o poeta, que vive como uma catástrofe a ausência do povo
– e de Deus –, busca refúgio na filosofia, deve se tornar filósofo”. Mas
“a filosofia moderna fracassou em sua tarefa política porque traiu sua tarefa
poética, não quis ou não soube arriscar-se na poesia”. Heiddeger tentou, mas
“não conseguiu se tornar um poeta”.
Homo Sacer, uma de suas obras mais
difundidas, prossegue os trabalhos sobre biopolítica dos últimos textos
de Foucault: a vida como objeto político. “Não acho que na filosofia se possa
distinguir, como se faz na universidade, entre filosofia da política, da moral,
da linguagem. A filosofia é única. A filosofia é sempre política”, disse o
filósofo naquela conversa com o EL PAÍS. E há um aspecto da história recente que
acaba mostrando-se como o paradigma da sociedade moderna: os campos de
concentração, um espaço onde a lei fica em suspenso, um perpétuo estado de
exceção onde, diz com Hannah Arendt, “tudo é possível”. O homem
enclausurado neles é marginalizado da sociedade pelo próprio Estado: é o homo
sacer, sagrado. Não pode ser sacrificado, mas sua morte não constitui homicídio
e pode ser assassinado impunemente.
“O estado de exceção era um dispositivo provisório para situações
de perigo. Hoje se tornou um instrumento normal de governo. Com a desculpa da
segurança diante do terrorismo, se generalizou. A exceção, por isso se chamava
estado de exceção, é norma. O terrorismo é inseparável do Estado porque
define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema atual de governo
não poderia funcionar. Há dispositivos como o controle das impressões digitais,
ou o escaneamento que te fazem nos aeroportos, que foram adotados para
controlar os criminosos e agora são aplicados a todos. Da perspectiva do
Estado, o cidadão se transformou em um terrorista virtual. Do contrário,
não se explica o acúmulo de câmeras que nos vigiam em todas as partes. Somos
tratados como criminosos virtuais. O cidadão é um suspeito, numerado, como em Auschwitz, onde cada deportado tinha seu número”. Com algo
a não perder de vista: o estado de exceção dos campos é o mesmo que impera nos
organizados para os refugiados.
Tudo isso conduz a uma quebra da legitimidade do poder. “Isso se dá em
muitos Estados: há legalidade, porque as leis são cumpridas, mas não há
legitimidade. Como consequência os cidadãos confiam menos nas urnas, e a
abstenção cresce. Um fenômeno que não havia ocorrido antes e que está
relacionado com o fato de as pessoas terem se dado conta de que os Governos
não são verdadeiramente legítimos. Legais, sim; mas não legítimos.”.
Dessa perspectiva, Agamben considera a relação entre ética e política.
“A ética moderna, desde Kant, se constitui como uma ética do dever, dominada
pelo imperativo. Tentei criticar a ética do dever e substituí-la por uma
doutrina, procedente do mundo clássico, que valorize a ideia de felicidade, a
vida boa. Em um sentido político. O dever é uma ideia de origem cristã. O homem
é um ser em dívida. Isso significa dever: estar em dívida.”
A ideia do dever não só regula a ética kantiana, também se
estende ao mundo da economia. “A economia de hoje está baseada na ideia da fé e
do dever, do crédito e do débito. São dois conceitos que provêm do mundo da fé.
‘Fé’, em grego, se chama ‘pistis’. Há uma história muito bonita. Um historiador
da religião, professor em Jerusalém, estava trabalhando sobre o conceito
de fé (’pistis’). Pretendia entender o que é. Um dia estava em Atenas,
levantou os olhos e viu escritas as palavras: ‘Banco de pisteos’. Banco
da Fé, leu, mas na realidade o que estava escrito era Banco de Crédito. Foi sua
iluminação: fé significa crédito. É o crédito que se outorga à palavra de Deus.
E, para nós, é o débito para com Deus. É muito esclarecedor: a economia e a
ética estão baseadas nos mesmos conceitos: débito e crédito. Porque, o que é o
dinheiro senão um crédito? Sobretudo depois que Richard Nixon separou o
dólar do padrão ouro. O que resta nas notas é um puro crédito sem conteúdo.
Temos crédito em um débito que não está garantido por nada.”
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