António Lobo Antunes*
Ilustração: Susa Monteiro
Apesar da angústia que traz consigo há não sei quê de divertidamente apaixonante na composição de um livro. Escreve-se numa espécie de estado segundo, a flutuar, tudo é ao mesmo tempo denso e leve, resistente e submisso, impossível e fácil. Era o que faltava que me deixasse vencer. A única questão complicada é que é perigoso, não existe rede por baixo como têm os trapezistas
Ando
às voltas com um livro dificílimo
de escrever, chamado “A Outra Margem
Do Mar”, tenho quatro capítulos mais ou menos alinhavados depois de não
sei quantas versões e ainda não estou contente com elas, ou seja
falta-me imenso texto e continuo
a fazer e a riscar, a fazer e a
riscar, a fazer
e a riscar numa lentidão enervante, passo
os dias
sentado à mesa com isto, não sei
se vou ser capaz, penso, como os
Marines e a Tereza, que se fosse fácil não era para mim de modo que
recomeço, e continuo, e teimo e não desisto. E no meio deste penar tenho
que interromper uns dois dias por mês a fim de botar cá fora estas
prosinhas para a Visão
(logo quatro)
que servem
para me complicar o regresso ao romance, que espera aqui na mesa amuado
comigo, decidido
a dar-me cabo da cabeça quando voltar a ele. Se me
perguntarem que raio de coisa ando a compor lembro-
-me logo da senhora
que falava aos amigos de uma estátua que vira em Itália, alguém quis
saber se era equestre, ela pensou no assunto, disse
– Assim assim
e
Cocteau achava que nunca ninguém tinha definido tão bem o centauro.
Quanto ao livro lá vai avançando em passitos minúsculos, um quarto de
página por dia já não é mau, os húngaros têm uma frase engraçada a
respeito disto
(“qualquer bocadito acrescenta, declarou o rato, e fez chichi no mar”)
de
modo que lá vou caminhando de mijinha em mijinha, na esperança que
estas gotas se transformem em ondas, a avançarem e a recuarem
no papel,
como esses velhos sentados nas praças das aldeias a esfregarem as
palmas nos joelhos das calças. Estou para aqui a queixar-me mas não
trocava este trabalho por nenhum outro: tudo começa, muito devagarinho, a
palpitar de vida
e eu, ao mesmo tempo fora e dentro da página, avanço
como posso, a dançar, a dançar. Ainda por cima está sol, vejo as
gaivotas na janela, vejo o lado oposto do rio,
vejo o bico da
esferográfica a comer papel, vejo
as folhas do bloco que se vão
enchendo de palavras por enquanto trémulas, inseguras, apoiadas em
bengalas de consoantes que vacilam. Que trabalho mais fascinante este,
assistir ao nascimento de sei lá o quê que não entendo bem de onde vem,
de uma zona minha cheia de trevas mas com um riso de criança lá dentro.
Apesar da angústia que traz consigo há não sei quê de divertidamente
apaixonante na composição de um livro. Escreve-se numa espécie de estado
segundo, a flutuar, tudo é ao mesmo tempo denso e leve, resistente e
submisso, impossível e fácil. Era o que faltava que
me deixasse vencer.
A única questão complicada
é que é perigoso, não existe rede por baixo
como têm os trapezistas. Há uma semana ou duas aprendi num livro de
filosofia quem inventou a rede para os artistas de circo e fiquei banzo,
como vocês vão ficar quando
eu disser: foi o imperador Marco Aurélio. E
esta?
O imperador Marco Aurélio que tanto admiro. A certa altura
informaram-no que dois ginastas tinham morrido ao caírem do trapézio
(já havia trapézios nesse tempo, o que eu nem sonhava)
e
Marco Aurélio, comovido, mandou que os artistas passassem a trabalhar
com uma rede por baixo, ordenando que lhes acrescentassem colchões na
ideia de diminuir ainda mais os riscos. Quando aperfeiçoaram a eficácia
das redes os colchões desapareceram. As redes ficaram, claro, até hoje.
Desde que aprendi isto penso sempre nele ao começar a escrever: já não
corro
o risco de quebrar a espinha. Há uma obra muito curiosa, chamada
The Last Word, um best-seller que é uma seleção dos obituários do New
York Times. Não são artigos tristes, são celebrações da vida, da mesma
forma que não são sobre pessoas famosas, são sobre as criaturas que
quase ninguém conhece e mudaram a nossa vida. Por exemplo o sujeito que
inventou que a água sai quente puxando o manípulo para um lado e fria
puxando para o outro, ou o senhor que descobriu os pacotinhos de chá, o
que inventou o guardanapo, que Leonardo da Vinci aperfeiçoou bastante
como aperfeiçoou quase tudo, ou o caramelo que nos deu o nylon e tão
combatido foi, ou o deus que trouxe a esferográfica, ou a senhora que
concebeu as pipocas, ou seja dúzias e dúzias de anjos desconhecidos, de
quem dependemos tanto. E cada obituário, em lugar de cinzento e
lamentoso é uma festa de alegria. O miúdo que aos dezassete anos fez o
Super Homem. Ou a senhora dos quadradinhos de marmelada. Centenas de
sobredotados tratados com respeito, carinho, admiração e humor. Não
percebo o motivo de nenhum editor português ter publicado este campeão
de vendas. Não querem ficar ricos, os idiotas, ainda por cima com uma
obra espantosa, divertida, apaixonante. Preferem o lixo: é lá com eles.
Na contracapa tem apreciações críticas excelentes. Uma conhecida
romancista americana, por exemplo, diz mais ou menos: “estes obituários
são magníficos: mal posso esperar para ler o meu”. Os portugueses são
estúpidos, não é? Não merecem, não é? Vão à merda.
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* Escritor e psiquiatra português. Nascido em Lisboa.
(Opinião publicada na VISÃO 1314 de 10 de maio)Fonte: http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2018-05-17-Embrulhem--e-vao-buscar 17/05/2018
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