quarta-feira, 23 de maio de 2018

Embrulhem e vão buscar

 António Lobo Antunes*

Ilustração: Susa Monteiro

Apesar da angústia que traz consigo há não sei quê de divertidamente apaixonante na composição de um livro. Escreve-se numa espécie de estado segundo, a flutuar, tudo é ao mesmo tempo denso e leve, resistente e submisso, impossível e fácil. Era o que faltava que me deixasse vencer. A única questão complicada é que é perigoso, não existe rede por baixo como têm os trapezistas


Ando às voltas com um livro dificílimo 
de escrever, chamado “A Outra Margem Do Mar”, tenho quatro capítulos mais ou menos alinhavados depois de não sei quantas versões e ainda não estou contente com elas, ou seja falta-me imenso texto e continuo 
a fazer e a riscar, a fazer e a riscar, a fazer 
e a riscar numa lentidão enervante, passo 
os dias sentado à mesa com isto, não sei 
se vou ser capaz, penso, como os Marines e a Tereza, que se fosse fácil não era para mim de modo que recomeço, e continuo, e teimo e não desisto. E no meio deste penar tenho que interromper uns dois dias por mês a fim de botar cá fora estas prosinhas para a Visão

(logo quatro)

que servem para me complicar o regresso ao romance, que espera aqui na mesa amuado comigo, decidido 
a dar-me cabo da cabeça quando voltar a ele. Se me perguntarem que raio de coisa ando a compor lembro-
-me logo da senhora que falava aos amigos de uma estátua que vira em Itália, alguém quis saber se era equestre, ela pensou no assunto, disse 

– Assim assim

e Cocteau achava que nunca ninguém tinha definido tão bem o centauro. Quanto ao livro lá vai avançando em passitos minúsculos, um quarto de página por dia já não é mau, os húngaros têm uma frase engraçada a respeito disto

(“qualquer bocadito acrescenta, declarou o rato, e fez chichi no mar”)

de modo que lá vou caminhando de mijinha em mijinha, na esperança que estas gotas se transformem em ondas, a avançarem e a recuarem 
no papel, como esses velhos sentados nas praças das aldeias a esfregarem as palmas nos joelhos das calças. Estou para aqui a queixar-me mas não trocava este trabalho por nenhum outro: tudo começa, muito devagarinho, a palpitar de vida 
e eu, ao mesmo tempo fora e dentro da página, avanço como posso, a dançar, a dançar. Ainda por cima está sol, vejo as gaivotas na janela, vejo o lado oposto do rio, 
vejo o bico da esferográfica a comer papel, vejo 
as folhas do bloco que se vão enchendo de palavras por enquanto trémulas, inseguras, apoiadas em bengalas de consoantes que vacilam. Que trabalho mais fascinante este, assistir ao nascimento de sei lá o quê que não entendo bem de onde vem, de uma zona minha cheia de trevas mas com um riso de criança lá dentro. Apesar da angústia que traz consigo há não sei quê de divertidamente apaixonante na composição de um livro. Escreve-se numa espécie de estado segundo, a flutuar, tudo é ao mesmo tempo denso e leve, resistente e submisso, impossível e fácil. Era o que faltava que 
me deixasse vencer. A única questão complicada 
é que é perigoso, não existe rede por baixo como têm os trapezistas. Há uma semana ou duas aprendi num livro de filosofia quem inventou a rede para os artistas de circo e fiquei banzo, como vocês vão ficar quando 
eu disser: foi o imperador Marco Aurélio. E esta? 
O imperador Marco Aurélio que tanto admiro. A certa altura informaram-no que dois ginastas tinham morrido ao caírem do trapézio 

(já havia trapézios nesse tempo, o que eu nem sonhava)

e Marco Aurélio, comovido, mandou que os artistas passassem a trabalhar com uma rede por baixo, ordenando que lhes acrescentassem colchões na ideia de diminuir ainda mais os riscos. Quando aperfeiçoaram a eficácia das redes os colchões desapareceram. As redes ficaram, claro, até hoje. Desde que aprendi isto penso sempre nele ao começar a escrever: já não corro 
o risco de quebrar a espinha. Há uma obra muito curiosa, chamada The Last Word, um best-seller que é uma seleção dos obituários do New York Times. Não são artigos tristes, são celebrações da vida, da mesma forma que não são sobre pessoas famosas, são sobre as criaturas que quase ninguém conhece e mudaram a nossa vida. Por exemplo o sujeito que inventou que a água sai quente puxando o manípulo para um lado e fria puxando para o outro, ou o senhor que descobriu os pacotinhos de chá, o que inventou o guardanapo, que Leonardo da Vinci aperfeiçoou bastante como aperfeiçoou quase tudo, ou o caramelo que nos deu o nylon e tão combatido foi, ou o deus que trouxe a esferográfica, ou a senhora que concebeu as pipocas, ou seja dúzias e dúzias de anjos desconhecidos, de quem dependemos tanto. E cada obituário, em lugar de cinzento e lamentoso é uma festa de alegria. O miúdo que aos dezassete anos fez o Super Homem. Ou a senhora dos quadradinhos de marmelada. Centenas de sobredotados tratados com respeito, carinho, admiração e humor. Não percebo o motivo de nenhum editor português ter publicado este campeão de vendas. Não querem ficar ricos, os idiotas, ainda por cima com uma obra espantosa, divertida, apaixonante. Preferem o lixo: é lá com eles. Na contracapa tem apreciações críticas excelentes. Uma conhecida romancista americana, por exemplo, diz mais ou menos: “estes obituários são magníficos: mal posso esperar para ler o meu”. Os portugueses são estúpidos, não é? Não merecem, não é? Vão à merda.
----------- 
Escritor e psiquiatra português. Nascido em Lisboa.
(Opinião publicada na VISÃO 1314 de 10 de maio)
Fonte:  http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2018-05-17-Embrulhem--e-vao-buscar 17/05/2018
 


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário