Filósofo Roberto Romano acredita que atuação da Justiça sobre corruptos tem alcance limitado e que o Brasil só progredirá se a população fiscalizar o poder
Roberto Romano, de 72 anos, dedica-se ao estudo da
filosofia política e da ética há quatro décadas, experiência que lhe
permitiu visão privilegiada para analisar o Brasil. Formado em filosofia
pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em filosofia política
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, Romano não
crê que os resultados trazidos pela Operação Lava-Jato provoquem
mudanças no padrão ético da sociedade brasileira. “A Lava-Jato trabalha
com as consequências, não com as causas dos nossos problemas”, diz. Para
solucioná-los, explica Romano, será preciso empreender discussões
árduas, que abranjam desde a responsabilidade do próprio cidadão em
monitorar seu município até a criação de uma nova Constituição. Hoje
professor titular da Universidade Estadual de Campinas, Romano falou a
VEJA em sua casa, em São Paulo.
A Lava-Jato pode mudar a forma de fazer política no Brasil?
Não há procurador nem juiz capazes de fazer essa transformação. Ela só
seria possível com mudanças profundas na estrutura do Estado. A
Lava-Jato não muda essa estrutura, que é altamente centralizada no
governo federal, burocratizada e cara. Também não muda o modus operandi do sistema partidário e do sistema eleitoral. Esse não é o papel da Lava-Jato.
A estrutura estatal é a principal via para a corrupção?
Em grande parte, sim. Por isso temos de redesenhar o Estado. Enquanto
não federalizarmos o país, ou seja, enquanto não descentralizarmos o
poder e os recursos dos impostos, não teremos mudanças positivas. O
Brasil cresceu, urbanizou-se e, apesar de a maior parte da população
viver nas cidades, quase 70% dos impostos vão para o cofre do Executivo
federal. Os municípios são saqueados pelo poder central. Hoje, a única
maneira que eles têm de conseguir o retorno da arrecadação retida pela
União é por meio da intermediação política. O prefeito tem de ter bom
relacionamento com o governador, que tem de ter bom relacionamento com o
deputado federal, que, por sua vez, tem de estar na base aliada que
está sendo comprada naquele momento pelo presidente da República. O
papel dos parlamentares brasileiros atualmente se resume a praticamente
intermediar o repasse de verbas entre Brasília e os municípios e
estados.
Mas há o outro lado, o dos parlamentares que usam seu poder de voto para pressionar o governo federal.
Sim. Por isso a disfunção é total. O Executivo libera dinheiro aos
intermediários que aceitam votar com ele. E ele paga caro para exercer
essa ditadura financeira: loteia cargos em estatais, postos no governo,
faz mensalão, faz petrolão. Por esse motivo digo que punir o corrupto é
enxugar gelo com toalha quente. Não tenho ilusões.
“O papel dos parlamentares brasileiros hoje resume-se
praticamente a intermediar o repasse de dinheiro
entre Brasília,
municípios e estados”
Por que é tão importante aumentar a autonomia dos municípios?
Primeiro, porque é no município que o cidadão tem, ou deveria ter, a
maior parte dos serviços prestados pelo Estado. Depois, porque é preciso
acabar com essa intermediação do imposto arrecadado do contribuinte. O
dinheiro arrecadado no município deveria ficar no município, em vez de
percorrer um enorme caminho burocrático até Brasília e, depois, fazer o
caminho de volta na forma de postos de saúde, escolas, ruas asfaltadas,
iluminação etc. Mas o mais importante talvez seja o aumento da cultura
da cidadania que essa autonomia é capaz de gerar. Se o cidadão tem
controle sobre as verbas da sua cidade, ele amplia a vigilância. Mas, se
ele entende que não tem controle sobre o dinheiro, deixa de monitorar.
Acontece que o Brasil nunca teve municípios de fato.
Como assim? Os municípios são uma invenção do
Império Romano. As cidades que não tinham força para resistir a ele eram
destruídas. Já aquelas que tinham força econômica e militar eram
convidadas a se federar a Roma, e conservavam a autonomia, a religião, a
moeda e os costumes. Quando os romanos foram vencidos, as cidades se
mantiveram, mesmo diante dos bárbaros. Mais tarde, na construção do
Estado absolutista, os reis dedicaram-se a tirar a autonomia dos
municípios. O rei da França, por exemplo, confiscou essa autonomia
porque eles apresentavam oposição ao desejo de arrecadação absoluta.
Esse tipo de confisco estava no auge em 1500, quando o Brasil foi
descoberto. Por aqui, os recursos iam todos para o rei de Portugal.
Nossa cultura é de centralização desde a colônia.
O que garante que deixar mais dinheiro nos municípios resultaria em menos corrupção e melhor uso dos recursos?
É claro que não adianta mudar o fluxo do dinheiro se não tivermos
mecanismos de controle. O cidadão tem de ter noção de quanto paga de
imposto, de quanto a cidade arrecada e gasta, de como funciona o
orçamento. É assim que se cria a consciência de cidadania e o operador
do Estado passa a ter a sensação de que está sendo monitorado. Na
verdade, a ideia do orçamento participativo, uma das bandeiras do PT no
passado e que foi abandonada quando o Lula chegou ao poder, veio da
observação do que acontece em Nova York, em Paris e em outras cidades
desenvolvidas. Não se trata de uma ideia de esquerda ou de direita, mas
da participação do cidadão na elaboração das leis. Para fazer uma
ciclovia em uma rua de Nova York, é preciso ouvir todos os habitantes de
onde ela vai passar. Isso tem a ver com o princípio mais essencial da
democracia moderna, que é a accountability, que significa prestar
contas, responsabilizar-se. O operador do Estado precisa prestar
contas, e o cidadão precisa também assumir seu papel de fiscalizador.
Essa visão de cidadania não é utópica para a realidade brasileira?
As utopias todas, como a República, de Platão, são formadas por duas
ideias: um diagnóstico dos defeitos de um Estado e de uma sociedade; e a
proposta de modificação desse Estado e dessa sociedade. O que fizeram
Thomas Jefferson e Benjamin Franklin nos Estados Unidos? Com base na
filosofia das luzes, do século XVIII, eles montaram uma utopia, que é a
federação americana. A tradução da utopia criada por eles é a
Constituição americana. Você não encontra nada da vida empírica na
Constituição. Você encontra normas, direções, aconselhamentos,
propostas. Se pegar, por exemplo, o texto da Constituição americana, que
é maravilhosa, e comparar com a vida real do americano, você encontrará
um abismo. Por isso mesmo, a própria Constituição prevê uma instância
de interpretação dos casos concretos, que é a Suprema Corte. No Brasil,
conseguimos aprovar leis como a da ficha limpa, a lei de transparência e
aquela que prevê a delação premiada. Sem elas, a própria Lava-Jato
seria impensável anos atrás.
“A corrupção continuará em curso enquanto não houver
autonomia de poderes, incluindo o Judiciário,
que depende dos demais
poderes
para manter seus privilégios”
O senhor fala de aumentar a autonomia de municípios, mas há
muitos que não têm receita nem para sustentar sua prefeitura e a Câmara
de Vereadores. O que fazer com eles? Eles não podem existir.
Por isso digo que é preciso redesenhar o mapa político do Brasil. Essas
cidades foram criadas com fins eleitorais, para ter prefeito, vereadores
e toda a estrutura burocrática municipal. Na melhor das hipóteses,
foram criadas com base no diagnóstico errado de que seus bairros eram
preteridos pela prefeitura do município do qual se emanciparam. O
problema é que, uma vez emancipada, uma cidade que não arrecada nada
ainda cria uma máquina com os privilégios dos operadores do Estado. No
Brasil, até o município mais pobre paga o carro, o combustível, as
multas e o seguro do prefeito e dos vereadores. Quando o dinheiro chega a
esse lugar por meio do Fundo de Participação dos Municípios, ou por
meio de uma emenda parlamentar, vai para cobrir os gastos da burocracia,
em vez de ir para os munícipes. Como o cofre é o mesmo, o resultado é
menos dinheiro empregado no que interessa.
A única saída para o Estado ineficiente é mudar a Constituição?
Não falo nem em mudança constitucional, mas em criar uma nova
Constituição. Não vamos avançar com a irracionalidade da atual
configuração do Estado brasileiro. Temos uma distribuição absolutamente
incontrolável de poderes, de recursos e de políticas públicas, que
resultam em um gasto delirante. Um rearranjo eficaz só pode se dar com
uma nova Constituinte. Hoje, na verdade, já vivemos sob uma nova
Constituição, tantas foram as emendas feitas no texto de 1988. Todas,
aliás, com um pé no Palácio do Planalto, sendo a emenda da reeleição a
mais escancarada de todas.
O senhor diz que o alcance da Lava-Jato é limitado porque ela
não muda o sistema partidário e eleitoral brasileiro. O que pode,
então, ser feito quanto a isso? Os partidos brasileiros
deixaram de ter programas para o país e se reduziram a agrupamentos
eleitorais, maiores ou menores. Todos eles, hoje, são oligarquias com o
domínio de alguns dirigentes. Os novos candidatos seguem ordens desses
donos do partido, que controlam tudo na agremiação: os cofres, as
eleições internas, e, delas, as campanhas eleitorais. Esses “oligarcas”
mandam nas legendas há trinta anos. Enquanto não tivermos regras que
proíbam a reeleição na direção das siglas, que impeçam que membros da
mesma família se revezem no comando partidário, não teremos renovação de
quadros. É o que vemos no atual quadro de candidatos. Nenhum deles,
fora o ex-presidente Lula, que está preso, e Jair Bolsonaro, apresenta
robustez de intenções de voto. Se não temos disputas internas nos
partidos, pela liderança, desaparecem as condições para firmar
estadistas.
Os presidentes sempre foram reféns de arranjos partidários?
Todos, inclusive os militares, foram levados, ou levaram a si mesmos, a
determinados pactos políticos para se garantir no poder. O caso de Lula
surpreendeu mais porque seu partido dizia defender a ética, lutar
contra a corrupção. Mas, se a compra de apoio e o aproveitamento pessoal
foram maiores ou não no caso dele, não muda o cerne da questão: o
sistema de poder estatal brasileiro segue igual. Todos os que se sentam
na cadeira presidencial continuarão comprando apoio e a corrupção
continuará em curso enquanto não houver autonomia dos poderes, incluindo
o Judiciário, que depende dos demais poderes para manter seus
privilégios, como auxílio-moradia e ganhos acima do teto constitucional.
O que o senhor espera das eleições deste ano? As
eleições não resolverão o problema. Deverá ser possível, a duras penas,
eleger por margem mínima um candidato de centro. Mas tal resultado fará
do eleito um refém do Congresso, das maiores bancadas, do toma lá dá cá e
de todas as mazelas do nosso presidencialismo “imperial”. Ou seja, a
crise do Estado brasileiro continuará, sempre mais grave. Eleições
representam ou mudanças efetivas ou arranjos precários. Creio que a de
2018 será do segundo grupo.
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Reportagem Por
Roberta Paduan
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-solucao-somos-nos/ 25/05/2018
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