Foto:
Eric Thayer /Reuters O escritor americano Philip Roth,
Em
entrevistas ao ‘Nexo’, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster analisam a obra
do autor americano, que morreu aos 85 anos
De 1959,
ano do lançamento de “Adeus, Columbus”, até meados de 2010, com “Nêmesis”,
Philip Roth escreveu quase 30 romances, além de ensaios e textos críticos.
Considerado por muitos o maior escritor americano em atividade, Roth morreu na
noite de terça-feira (22), vítima de insuficiência cardíaca.
Sua prosa criou personagens icônicos e
retratou tipos que simbolizam a sociedade americana do século 20, em suas
idiossincrasias e fobias. Sexo e culpa, identidade e ruptura, a vida
provinciana e o desejo de se descolar dela são elementos fundadores da obra de
Roth, que decidiu parar de escrever em 2010, considerando ter feito o melhor
que pôde.
Sobre a
própria obra, escreveu: “[John] Updike e [Saul] Bellow seguram suas lanternas
no mundo, revelam o mundo como ele é agora. Eu cavo um buraco e miro minha
lanterna para o buraco”.
Boa parte
da obra de Philip Roth editada no Brasil foi vertida para o português por dois
cariocas, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster. No total, Britto traduziu
nove livros do autor – o primeiro deles foi “A Marca Humana”, em 2002, tido por
muitos como o ponto alto da carreira do americano.
Jorio
Dauster começou a trabalhar com a obra de Roth em “Indignação”, de 2009, e foi
responsável por outras cinco traduções, entre elas a de “Patrimônio” (romance
de tom autobiográfico, onde o escritor narra a conflituosa relação com o
próprio pai).
O Nexo formulou seis perguntas sobre Roth
e lançou-as aos dois tradutores. Abaixo, as reflexões de Britto e Dauster sobre
o traço inconfundível da obra de Philip Roth.
Qual o lugar de Roth na
literatura do século 20?
Paulo Henriques Britto
Roth é um
dos maiores nomes da ficção em língua inglesa. Ele se situa basicamente no
campo do realismo, mas se permite algumas incursões pelo fantástico.
Jorio Dauster
Muitas vezes comparado a Saul Bellow, John Updike e Norman Mailer, Roth
certamente está entre os maiores autores americanos da segunda metade do século
20, mesmo que coloquemos nessa lista meus preferidos, J.D. Salinger e Vladimir
Nabokov. Com exceção do Bellow, nenhum dos citados, assim como Roth, recebeu o
prêmio Nobel de Literatura, mas agora se sabe que havia algo de podre no reino
da... Noruega.
Qual a marca literária de
Roth?
Paulo Henriques Britto
O que sobressai na obra de Roth é sem dúvida a intensidade de sua prosa.
Ele não tem medo de surtar. Mesmo dentro da chave realista, ele envereda para o
insólito, o que o liga de certa forma a um Dostoiévski. Outros autores dessa
linhagem realista, como John Updike, acabam falando sobre vidas que não saem
muito daquele mesmo lugar. Ele se permite excessos de todos os tipos, levando a
narrativa realista às raias do fantástico, e vez por outra rompe com esses
limites. Talvez por ter uma filiação ao que quase poderia se chamar de ‘escola
judaica’ de escrita, que formou tantos escritores americanos, ele faz uso mais
lúdico e destemido da linguagem.
Jorio
Dauster
Ao contrário de um [Vladimir] Nabokov, mestre em ourivesaria verbal,
Roth tem um estilo forte mas escorreito. Nos seus últimos livros, a linguagem é
mais contida e a própria narrativa é mais compacta, talvez porque ele já não se
sentisse capaz de enfrentar a “humilhação” que significava produzir uma obra,
tal era a intensidade com que escrevia.
Como o
autor explora a identidade judaica?
Paulo
Henriques Britto
Mais especificamente, a identidade de um judeu norte-americano de sua
época, sem nenhuma intenção de chegar a nenhuma essência judaica. Dentro da
melhor tradição realista, ele trabalha com o meio e o tempo em que viveu, mas
consegue extrapolar daí para o plano do universalmente humano, como todo
escritor realmente grande.
Jorio
Dauster
Não creio que Roth seja relevante para entender a identidade judaica no
mundo. Seu foco - e seu problema existencial - estava na sociedade americana e
em como a terceira geração dos imigrantes judeus poderia alcançar a aculturação
plena. A partir dos avós que chegaram na metade do século 19 e foram viver nos
guetos aceitando salários miseráveis, ele tinha visto como a segunda geração já
era capaz de funcionar relativamente bem no seu país de nascimento por falar
inglês e conhecer os costumes locais, embora frequentemente falasse iídiche em
casa e o comparecimento à sinagoga fosse compulsório. No entanto, os judeus
continuavam a viver em comunidades fechadas e, como aconteceu com seu pai, por
mais que se esforçassem, os homens jamais puderam galgar os escalões mais altos
das empresas em que trabalhavam porque esses estavam reservados aos góis. A
história pessoal e a obra literária de Roth são o testemunho do que lhe custou
escapar desse confinamento físico e mental.
O tom
crítico sobre os EUA: que país ele retratou?
Paulo
Henriques Britto Roth nunca foi de esquerda: é um americano liberal que se orgulha das
realizações do seu país e se envergonha do que há de mal resolvido na cultura
americana, em particular a institucionalização do racismo, como fica claro em
“A Marca Humana” e “Complô contra a América”. No primeiro, ele entra na pele de
um negro para mostrar o racismo institucional, muito antes de problematizarmos
‘lugar de fala’. No último, ele fala de um país que concentra a maior parte dos
judeus do mundo e onde, ao mesmo tempo, sobrevive um antissemitismo forte, nem
sempre mascarado. Os Estados Unidos demoraram para entrar na Segunda Guerra
Mundial, um pouco em função desse preconceito.
Jorio
Dauster
Ele retratou um país ainda castigado pela recessão, logo depois
torturado pelas guerras, e em que sua raça era vítima de um forte preconceito.
Mais tarde, o que ele viu foi o desmoronar do “American dream” (sonho
americano), de onde brota um sentimento nostálgico com relação ao passado, e
felizmente ainda teve tempo de chamar publicamente Trump de bufão! Não obstante,
sempre sentiu imenso orgulho de ser um cidadão dos Estados Unidos.
Qual a
inovação nas descrições que ele fez do sexo e da velhice?
Paulo
Henriques Britto
Está no fato de ele não ter medo do excesso, do exagero, da caricatura,
de levar um estereótipo até as raias da loucura. Seus últimos quatro livros são
curtos e compõem uma safra concisa sobre a velhice. Nem são tão bons assim, o
que é até permitido para um autor como Roth, que produziu outros tantos livros
bons. Essas obras sobre a velhice são livros de velho para velho, com uma
obsessão pelo sexo nessa idade e na ideia de finitude. Em “Fantasma sai de
cena”, ele confunde realidade e fantasia, a ponto de o leitor não saber
discernir ambas, ao final do romance.
Jorio
Dauster
Em matéria sexual, a única coisa realmente inovadora para mim foi uma
peça de fígado, comprada no açougue para uso da família no jantar, ser usada a
caminho de casa para a prática do onanismo. De resto, como se pode ver em “O
professor do desejo”, o que existe é uma forte obsessão que ele extravasa
inclusive através de seu alter ego, David Kepesh, e envolve as tradicionais
ménages à trois, sadomasoquismo etc. Quanto à velhice, que ele definia como um
“massacre”, não encontrei nada de revolucionariamente original, mas sim páginas
antológicas onde ele retrata toda a angústia do ser humano diante da
deterioração física e da morte. Traduzi muitas passagens de “O patrimônio”,
onde ele relata a enfermidade fatal do pai, com lágrimas nos olhos.
As
acusações de misoginia: questão geracional?
Paulo
Henriques Britto
Sua obra reflete os preconceitos e limitações de um homem de sua geração
e com a sua formação. A misoginia está lá, mas a abordagem dele é impiedosa com
tudo e com todos. Ele não poupa ninguém nem nada, muito menos ele próprio, como
homem, branco, judeu e americano.
Jorio
Dauster
Ele fez tudo para se livrar de uma típica mãe judia, para quem a limpeza
era uma graça divina, e caiu nos braços de uma megera branca, anglo-saxã e
protestante que infernizou sua vida durante muitos anos e com quem só se casou
quando ela trouxe uma prova falsa de que estava grávida. Mais tarde, viveu com
a grande atriz Claire Bloom, o que deve ter alimentado uma guerra de egos que
só fez se agravar quando ele passou a viver na Inglaterra a fim de passar mais tempo
com ela. Mas, em “Quando ela era boa”, Roth aproveita elementos da vida da
primeira esposa para – no único livro em que a protagonista principal é uma
mulher e onde não aparece um só judeu – fazer um retrato devastador de uma
família pequeno-burguesa do Centro-Oeste e de uma moralista americana que se
destrói ao tentar reformar os homens ao seu redor. As mulheres sem dúvida não
saem bem em suas fotos, mas será por misoginia ou simplesmente por vingança
existencial?
---------------------
REPORTAGEM POR Olívia
Fraga 26 Mai 2018 (atualizado 28/Mai 15h37)
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/05/26/O-universo-de-Philip-Roth-segundo-seus-tradutores-no-Brasil?utm_campaign=anexo&utm_source=anex
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/05/26/O-universo-de-Philip-Roth-segundo-seus-tradutores-no-Brasil?utm_campaign=anexo&utm_source=anex
Nenhum comentário:
Postar um comentário