Sidarta Ribeiro
O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘As flores do bem’, do neurocientista Sidarta Ribeiro. No livro, o cientista procura combater a desinformação sobre a maconha e trazer argumentos para o debate sobre a sua descriminalizaçãoA planta Cannabis é um milagre de resistência biológica e cultural, cultivada há milênios em razão das excepcionais fibras têxteis de seu caule e poderosas medicinas resinosas de suas inflorescências — para simplificar, aqui chamadas de flores. As variedades ricas em fibras e desprovidas de moléculas fortemente psicoativas são chamadas de cânhamo, enquanto as abundantes em resinas psicoativas foram batizadas com um anagrama das mesmas letras: maconha. Para facilitar, daqui em diante chamarei de maconha ambos os tipos da planta, a menos que seja preciso diferenciá-las por alguma razão específica.
No século 16, as roupas dos navegantes e mercadores europeus eram de cânhamo, enquanto os unguentos das curandeiras e parteiras da Índia e da África eram de maconha. Desde então, foram feitas de cânhamo quase todas as telas — canvas — em que foram pintadas as obras de arte emolduradas nas paredes dos museus. Nos séculos 18 e 19, eram de maconha os emplastros usados nas costas dos escravizados para aplacar as feridas produzidas pelo chicote do feitor. No início do século 20, eram feitas de maconha as cigarrilhas broncodilatadoras vendidas em farmácias para tratar asma. Avançando no tempo, por iniciativa do Brasil e força dos Estados Unidos, a maconha foi proibida e crucificada como “a erva do diabo”. A partir dos anos 1960, entretanto, apesar de toda a perseguição, seu consumo cresceu até ultrapassar, em 2022 nos Estados Unidos, o consumo do tabaco. Na contramão de todo o estigma contra os maconheiros, uma cultura canábica de paz e amor se espalhou pelo planeta inteiro. Nos cinco continentes, pessoas dos mais variados tipos se reúnem às 16h20 para consumir maconha num ambiente de partilha, diálogo e bom humor. Hoje, remédios à base de maconha são cada vez mais exportados por Estados Unidos, Canadá, Portugal e Uruguai, gerando muita saúde, emprego e renda. Quem te viu, quem te vê.
Essa incrível planta pacientemente construída pela inteligência e tenacidade de nossos ancestrais sobrevive a uma campanha de difamação planetária que já dura um século. Apesar de toda a perseguição, entretanto, a Cannabis e suas principais moléculas constituintes, chamadas canabinoides, são hoje usadas para tratar com sucesso — e efeitos colaterais reduzidos — doenças e transtornos tão diversos quanto epilepsia, espasmos, dores neuropáticas, autismo, câncer, depressão, ansiedade, doenças de Alzheimer, Parkinson e Crohn, entre outros. Essas aplicações se relacionam a múltiplas consequências metabólicas e fisiológicas das moléculas presentes na planta, tais como efeitos analgésico, anti-inflamatório, antiespasmódico, anti-isquêmico, antiemético, antibacteriano, antidiabético, antipsórico e estimulante do crescimento dos ossos.
Hoje sabemos que as substâncias encontradas na Cannabis atuam em nosso cérebro e sistema imunológico por semelhança com moléculas produzidas por nosso próprio corpo. Essas pequenas moléculas endógenas, bem como as grandes proteínas receptoras localizadas na membrana das células, às quais elas se ligam, coletivamente formam o sistema endocanabinoide. Assim, toda pessoa que teme a maconha precisa considerar que em seu próprio corpo, de dia e de noite, pro-
duz uma grande quantidade de moléculas semelhantes às da maconha. Se alguém perdesse o sistema endocanabinoide, no mesmo momento perderia a capacidade de se alimentar, dormir, formar memórias e respostas imunes. A maconha só produz efeitos em nosso corpo porque sintetizamos substâncias funcionalmente muito similares às dela.
Felizmente a perseguição à maconha está deixando de ser aceita no século 21. Seu efeito antiepiléptico, descrito pela ciência desde o século 19, foi solenemente ignorado pela opinião pública e pelos profissionais da saúde até aproximadamente uma década atrás. Quando isso afinal mudou, a planta deu o primeiro passo para regressar à medicina pela porta da frente. Entre o ano 2000 e 2023 foram publicadas quase seis vezes mais pesquisas biomédicas sobre os canabinoides do que no século 20. Nos Estados Unidos, o financiamento de pesquisas sobre
Cannabis passou de cerca de 30 milhões de dólares em 2000 para mais de 143 milhões de dólares em 2018.
Diante de tais dados e do aumento crescente das descobertas de benefícios, por que é que algumas pessoas ainda insistem em demonizar a maconha? Um dos piores problemas da ignorância voluntária, aquela que se apega teimosamente a preconceitos, é que ela tende a se aprofundar com o tempo, em vez de ir diminuindo com o aprendizado de novas informações. Quem faz vista grossa para as novidades da ciência tende a se descolar cada vez mais da realidade e passa a habitar uma bolha de ideias crescentemente estapafúrdias. Diversas vezes me deparei com interlocutores despreparados para o debate, pois não leram ou não gostaram de nada do que a pesquisa científica descobriu de positivo sobre a maconha. Aliás, até a primeira década do século 21 era quase unanimidade no meio médico que a maconha e seus derivados não deveriam integrar a farmacopeia, pois alternativas melhores já estariam disponíveis no mercado.
Entretanto, quando a ignorância é involuntária e existe honestidade intelectual livre de preconceitos, nunca é tarde para resgatar o que ficou para trás. Um exemplo emocionante foi o do médico Sanjay Gupta — principal especialista médico da rede CNN Internacional, o “Drauzio Varella” dos Estados Unidos —, que em 2013 lançou o primeiro episódio de uma série documental chamada Erva. Vale a pena ler seu pedido de desculpas:
Muito antes de começar este projeto, revisei a literatura científica sobre maconha medicinal dos Estados Unidos e a considerei bastante inexpressiva. Lendo esses trabalhos há cinco anos, era difícil defender a maconha medicinal. Até escrevi sobre isso em um artigo da revista Time, em 2009, intitulado “Por que eu votaria não à maconha”. Bem, estou aqui para me desculpar. Peço desculpas porque não havia procurado o suficiente, até agora. Eu não havia ido longe o suficiente. Não revi artigos de laboratórios menores em outros países fazendo pesquisas notáveis e desconsiderei o coro alto de pacientes legítimos cujos sintomas melhoraram com a Cannabis [...]. Acreditei erroneamente que a Drug Enforcement Agency (dea) listou a maconha como uma substância da Tabela por causa de sólidas provas científicas [...]. [Mas] eles não tinham apoio da ciência para fazer essa afirmação, e agora sei que, quando se trata de maconha, nenhuma dessas coisas é verdadeira. [Ela] não tem um alto potencial de abuso e tem aplicações médicas muito válidas. Na verdade, às vezes a maconha é a única coisa que funciona. Veja o caso de Charlotte Figi, que conheci no Colorado.
Ela começou a ter convulsões logo após o nascimento. Aos três anos, convulsionava trezentas vezes por semana, apesar de tomar
sete medicamentos diferentes. A maconha medicinal acalmou seu cérebro, limitando suas convulsões a duas ou três por mês. Já vi
mais pacientes como Charlotte em primeira mão, passei um tempo com eles e cheguei à conclusão de que é irresponsável por parte da
comunidade médica não fornecer o melhor atendimento possível, atendimento que pode envolver maconha. Temos sido terrível e
sistematicamente enganados por quase setenta anos nos Estados Unidos, e peço desculpas por meu próprio papel nisso.
Charlotte Figi (2006-2020) foi uma menina estadunidense com uma desordem genética rara, a epilepsia mioclônica grave da infância ou síndrome de Dravet. Essa doença incurável causa prejuízos motores e cognitivos progressivos que podem levar à morte precoce. Mesmo quando isso não acontece — muitos pacientes com Dravet conseguem chegar à idade adulta — os déficits comportamentais e sociais tendem a ser dramáticos, pois a interrupção frequente do funcionamento cerebral normal, causada pela crise epiléptica, tem um efeito de amnésia que prejudica fortemente o aprendizado. Além disso, o excesso de sincronia da atividade neuronal que caracteriza a crise epiléptica libera uma enorme quantidade do neurotransmissor glutamato, que em abundância é tóxico e pode terminar matando os neurônios.
A necessidade de conter as crises epilépticas de Charlotte levou seus médicos a receitarem doses altas e frequentes de remédios anticonvulsivantes habituais, que geralmente reduzem o excesso de atividade neuronal sincrônica ao diminuir a atividade total dos neurônios. Embora essa estratégia seja eficaz para mitigar as crises, ela causa um estado de torpor que impede o desenvolvimento normal da criança. Além disso, a depressão profunda do sistema nervoso causada por esses fármacos pode levar a uma parada cardiorrespiratória, fazendo com que os familiares de crianças com Dravet e outras epilepsias precisem ter sempre consigo diversos equipamentos para reanimação, uma espécie de UTI móvel.
Em famílias sem recursos financeiros, essa situação é desesperadora. Ainda que disponham de meios para prover os tratamentos necessários, um dilema terrível se apresenta: não tratar as crises e ver a criança definhar em espasmos repetidos, ou vê-la sempre sonolenta correndo risco de morte súbita, sob efeito dos medicamentos convencionais. Em ambos os casos, os prejuízos ao desenvolvimento são imensuráveis, com grande impacto emocional para todos.
Aos cinco anos, Charlotte não frequentava a escola, se locomovia numa cadeira de rodas e mal conseguia falar. Seu quadro parecia apenas piorar quando sua mãe, Paige, ficou sabendo que a molécula chamada canabidiol (CBD) poderia ajudar. Ela visitou um cultivo dos famosos Stanley Brothers, produtores de maconha destinada ao mercado do uso recreativo, e descobriu que eles dispunham de uma variedade da planta com alto teor de CBD e baixo de tetrahidrocanabinol (THC), até então pouco cultivada por seu baixo valor de mercado. Sugestivamente chamada de “Decepção do Hippie”, essa variedade não provoca alteração do estado mental porque o THC que a estimularia é quase ausente, enquanto o cbd presente a inibe.
O tratamento com o óleo produzido a partir dessa variedade da maconha mudou radicalmente a vida de Charlotte e sua família. As trezentas crises epilépticas que ela tinha por semana tornaram-se três por mês. Sono e alimentação se regularizaram, interações sociais tornaram-se possíveis. Aos poucos, as brincadeiras tornaram-se mais frequentes. Charlotte aprendeu a andar de bicicleta, frequentou a escola, viveu.
As flores do bem
Sidarta Ribeiro
Fósforo - 184 páginas
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/estante/2023/11/03/%E2%80%98As-flores-do-bem%E2%80%99-sobre-descriminalizar-a-maconha?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes
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