Por Bruno de Pierro
A professora na biblioteca de sua casa, em Belo Horizonte: pesquisa em educação e influência em políticas públicas
Educadora da UFMG fala dos desafios da alfabetização e do letramento no país e da importância da pesquisa direcionada à prática
Poucos dias depois de receber a equipe de reportagem em sua casa em Belo Horizonte (MG), a educadora Magda Becker Soares embarcou em um navio hospitalar da Marinha, que atende populações ribeirinhas do rio Negro, na Amazônia. Na bagagem, levou livros infantis para distribuir. Aos 83 anos, ela conquistou o Prêmio Almirante Álvaro Alberto de 2015 e ganhou a viagem no pacote de honrarias, que também inclui diploma, medalha e R$ 200 mil. Concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em parceria com a Fundação Conrado Wessel e a Marinha do Brasil, trata-se do principal prêmio da ciência e da tecnologia do país. “Precisarei tomar algumas vacinas, mas, fora isso, tudo bem”, disse, ao ser perguntada sobre como lidaria com uma viagem tão longa.
Desde a graduação em letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na década de 1950, Magda procurou conectar o que elaborava no plano teórico, em pesquisas no campo da alfabetização e do letramento, a práticas capazes de interferir na aprendizagem de crianças e auxiliar professores. Para ela, pesquisar é uma forma de compreender e agir. “Não acho que publicar artigo científico seja suficiente, quando se é da área da educação”, diz.
Sua carreira é marcada pela influência em políticas públicas, como o Programa Nacional Biblioteca na Escola, e a publicação de coleções de livros didáticos entre as décadas de 1960 e 1980. Sua obra inovou, nos anos 1960, ao propor que o ensino da língua para crianças utilize textos do cotidiano, como gibis e reportagens. Aposentada há 13 anos, Magda não quer saber de descanso. Três vezes na semana viaja para a cidade mineira de Lagoa Santa, a 35 quilômetros de Belo Horizonte, onde desenvolve um projeto com professores e estudantes.
Idade: |
83 anos |
Especialidade: |
Educação |
Formação: |
UFMG (graduação, doutorado e livre-docência) |
Instituição: |
UFMG |
Produção científica: |
Mais de 80 artigos científicos e 26 livros. Orientou 62 mestrados e 10 doutorados |
Como soube que tinha recebido o prêmio?
O
ministro Aldo Rebelo, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
[MCTI], me telefonou. Fiquei surpreendida e até achei que era trote. É
um prêmio valorizado na área científica e acadêmica. Fui apenas a
terceira mulher a recebê-lo. No meu discurso, chamei a atenção para
isso. Não sou feminista, mas acho que as mulheres têm dado uma
contribuição grande para as ciências e estão numa minoria significativa
no prêmio. A segunda surpresa é que fui a primeira da área de educação.
A que atribui sua escolha?
Talvez
seja porque, entre tantas mulheres e homens que contribuem para a
educação, eu tenha me voltado para uma área essencial para o país, que é
ensino e aprendizado. Minha trajetória foi dirigida para a educação das
crianças que frequentam escola pública e estão nas camadas
desprestigiadas da sociedade. Mais do que isso, sempre trabalhei com a
língua materna, particularmente o aprendizado da língua escrita.
A senhora cogitou se formar em ciências exatas, certo?
É
isso mesmo. Essa mudança nem foi da área de exatas para a de educação,
mas para as ciências sociais aplicadas na área de letras. Percebo que
fiz uma virada radical. Minha intenção era fazer curso na área de
exatas. Fiz o científico [equivalente ao ensino médio atual], muito
voltado para química e física. Estudar para mim sempre foi um prazer.
Costumo dizer que praticamente nasci dentro da universidade. Meu pai,
Caio Líbano Soares, era médico psiquiatra e professor na UFMG. Meu pai
ia para seu laboratório na Faculdade de Farmácia, que ficava na esquina
da casa em que morávamos. Isso me deu vontade de seguir a vida
universitária e ir para as ciências exatas.
Como mudou de ideia?
Aconteceu
quando estava me preparando para fazer o vestibular. Eu tinha dúvida se
prestava para engenharia química ou para outro ramo da engenharia com
foco em física. Tive, já no terceiro ano do científico, uma professora
de português, Angela Leão, que estava terminando o curso de letras. Eu
não tinha noção de que existia um curso de letras. Naquela época, por
volta de 1949, só tínhamos notícia dos cursos de engenharia, medicina e
direito. Eu sabia que tinha odontologia e farmácia, porque meu pai
trabalhou nessas faculdades, mas desconhecia que havia uma faculdade de
filosofia, com vários cursos. Naquela época, as faculdades de filosofia
ainda mal tinham sido criadas. Achei o trabalho dessa professora, que
ainda estava se formando, absolutamente fascinante. Ela abriu as portas
da literatura para mim.
Antes disso a senhora não tinha contato com literatura?
Sempre
li muito. Mas na escola nunca tive formação para isso. Hoje penso em
quanto tempo perdi. Em 1950, entrei no curso de letras. Naquele tempo,
fazíamos três anos só com matérias de conteúdo, depois um ano das
disciplinas pedagógicas. Fiz o curso de letras neolatinas, no qual
estudávamos cinco línguas e suas respectivas literaturas. Eram latim,
português, francês, italiano e espanhol. Para quem gostava de ler, como
eu, foi muito boa essa abertura para várias línguas e literaturas.
Em que momento a senhora começou a se interessar pela alfabetização?
Foi
em decorrência de outra mudança radical. Estava quase terminando a
graduação e fui sondada para trabalhar como assistente de professores na
universidade. Paralelamente, o colégio Izabela Hendrix me convidou para
ser professora de português. Resolvi que gostaria de ter essa
experiência de ensinar crianças. Comecei a dar aulas no Izabela Hendrix
e, logo depois, entrei para as redes públicas estadual e municipal de
ensino. Essa foi a grande virada em minha vida acadêmica e profissional.
Quando comecei a lecionar na rede pública, tomei um grande susto. E foi
a partir desse susto que se originaram minhas pesquisas, meus estudos e
publicações.
O que a assustou?
Na rede
municipal, me dei conta de como era forte a discriminação e as
diferenças entre a educação que eu tinha tido, pertencendo à classe
média, e a educação nas duas instâncias em que dava aulas: na escola
privada e na escola pública. Àquelas crianças da rede pública
ensinava-se menos. A partir daí, nunca consegui fazer mais nada que não
fosse lutar contra essa diferença na educação de camadas sociais
diferentes.
No que consistia essa diferença? Ela ainda persiste?
Sim,
persiste. Trata-se, por exemplo, de diferenças no espaço físico em que
as crianças estudam. O colégio Izabela Hendrix era lindo, ocupava dois
quarteirões, tinha pátio de esportes, piscina. Na escola pública a
infraestrutura era – e ainda é, quase sempre – absolutamente precária. A
questão que mais me tocava, porém, era a postura dos professores em
relação àquelas crianças. Eles acreditavam que os alunos não davam conta
do aprendizado, tinham vocabulário pobre, a mãe era analfabeta. No
entanto, eram crianças inteligentes, que queriam aprender. O que sempre
me incomodou é o tipo de relação que se estabelece entre professores,
gestores e as crianças das escolas públicas.
Seu interesse foi fazer uma ponte entre a pesquisa na universidade e o ensino em escolas públicas?
Fui
convidada a substituir uma professora do Colégio de Aplicação da UFMG
e, ao mesmo tempo, trabalhar com práticas de ensino de português na
Faculdade de Filosofia. Comecei a discutir aquelas questões que me
incomodavam com os alunos da faculdade. Como eu também era professora de
português na escola pública, a questão da linguagem foi fundamental
nessa interação com futuros professores. Comecei a me aprofundar para
entender quem são as crianças das camadas populares e qual é a relação
delas com os adultos que as educam. Como resultado de muitas leituras e
de algumas pesquisas que fiz, em 1986, publiquei o livro Linguagem e escola: uma perspectiva social [Editora
Ática], obra na qual discuto os conceitos com que se explicavam os bons
ou maus resultados de crianças das camadas populares: faltava “dom”
para os estudos? Eram deficientes? Eram diferentes? Quando eu era
pequena, as pessoas diziam: fulano tem um dom para português, para
matemática. Durante muito tempo vigorou a ideologia do dom.
Até hoje, não?
Pois
é, até hoje vigora esse mito de aluno superdotado, brilhante. Mas
depois que as camadas populares conquistaram o direito de ir para a
escola, o que apareceu foi a diferença. Na época, vários livros sobre
essa questão dos alunos “diferentes” começaram a chegar às escolas. Por
muito tempo nosso ensino foi só para crianças da burguesia. Quando a
escola se tornou mais acessível para todas as classes, o professor
Miguel Arroyo, colega da faculdade, dizia que a escola pública “pegou
carona” na escola da burguesia, foi imposta para crianças que não eram
da burguesia. Como elas eram de outra realidade, começaram a ser
identificadas como “deficientes”. Na verdade eram apenas diferentes.
Depois, direcionei minhas pesquisas para identificar as causas do
fracasso escolar das crianças de escolas públicas. Quis mostrar que elas
não eram deficientes. Deficiente era o ensino dado a elas.
Qual foi o impacto dessa ideia na época?
O meu livro Linguagem e escola,
publicado nessa época, mostrou que a diferença é tratada como
deficiência porque a escola não reconhece diferenças e não sabe lidar
com elas. O lamentável é que, embora seja da década de 1980, o livro
continua sendo publicado. Está na 18ª edição e é muito utilizado em
cursos de pedagogia. Lamentável, porque fica evidente que o problema da
discriminação contra crianças das escolas públicas continua.
Que importância dá à sua participação em projetos envolvendo políticas educacionais?
Para
mim, pesquisar sempre foi uma forma de compreender para agir. Não acho
que publicar artigo científico seja suficiente, quando se é da área da
educação, sobretudo em um país em que o ensino público ainda é tão
deficiente. Na época da ditadura militar, por exemplo, recebi críticas
quando aceitei um convite de Jarbas Passarinho, então ministro da
Educação, para auxiliar na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases de
1971. Na verdade, o convite foi feito pelo reitor da Universidade de
Brasília [UnB] da época, Caio Benjamin Dias, que era mineiro e conhecia
meu trabalho. Na época, muitos estudantes e professores lutavam contra a
opressão, defendendo a universidade da interferência militar. Ao mesmo
tempo, tínhamos como princípio que era preciso tentar entrar no sistema
político por onde houvesse brechas. Foi essa estratégia que me levou a
aceitar o convite de Passarinho. Passei dois ou três meses em Brasília.
Era uma comissão sensata, de educadores, sem nenhuma interferência
militar, devo dizer isso.
A senhora escreveu livros
didáticos para estudantes e manuais para professores. Era também uma
forma de colocar em prática os resultados de pesquisas?
Sempre
defendi que o pesquisador, particularmente na área de educação, deve
produzir e socializar o conhecimento. Só produzir e ficar isolado entre
as paredes da universidade é mais cômodo, mas não é socialmente justo.
Um dos caminhos que encontrei foi escrever livros didáticos
operacionalizando teorias linguísticas e pedagógicas sobre o ensino da
língua, porque com eles eu chego nas escolas, às mãos dos professores e
dos alunos. Os professores recebiam o mesmo livro que o aluno recebia,
com a diferença de que o material do professor era acompanhado com
comentários, discussões conceituais, uma forma de eu conversar com ele.
Era uma maneira de formar tanto o aluno quanto o professor.
Como conciliar a teoria com a linguagem simples dos livros didáticos?
Esse
é um grande nó para quem pesquisa nas áreas de ciências humanas e
sociais. Eu não consigo entender por que as pessoas, pela pesquisa,
compreendem a realidade, mas não agem para alterá-la. No meu caso, essa
transposição didática, do conhecimento produzido para a ação pedagógica,
é uma questão de simplificar sem distorcer, o que não é fácil. Para
simplificar sem falsificar, é preciso conhecer a fundo o conteúdo,
tornar aquilo compreensível para a criança e o professor. Digo que é
mais fácil escrever um artigo científico e publicar para os meus pares
que escrever um livro didático. Porque para os meus colegas eu relato
simplesmente minha pesquisa. Quando se quer usar o resultado de
pesquisas para traduzi-las em práticas de alfabetização, isso dá um
trabalho enorme. Tem que pensar na fase de desenvolvimento em que a
criança está, nos seus processos cognitivos, no seu desenvolvimento
linguístico, nas características do objeto de conhecimento, a língua
escrita, e também no professor.
Qual era sua base conceitual quando escreveu os livros didáticos?
Minha primeira coleção, dos anos 1960, foi intitulada Português através de textos.
Nela, eu propus um ensino que entende o português como texto, não como
gramática, como se fazia na época. Uma pesquisa minha mostrou que a
criança de ensino fundamental não tem condições de entender a língua
como sistema, a gramática da língua, o que é muito complexo. Nessa fase,
dos 11 aos 13 anos, a criança está naquela fase que Jean Piaget chamou
de operações formais. Por exemplo, substantivos e adjetivos, orações
coordenadas e subordinadas são conceitos dos quais a criança ainda não
dá conta.
Por isso resolveu usar textos de jornais e gibis para alfabetizar?
Naquela
primeira coleção de livros didáticos, trabalhei apenas com textos
literários. Era a concepção de ensino de português da época. Na minha
pesquisa, observei que o ensino baseado fortemente em gramática não
levava a criança a se tornar um leitor ou um produtor de textos
competente. Dessa compreensão veio a ação, que foi produzir uma coleção
didática diferente. A sociedade vai mudando, as crianças vão mudando,
passaram a ser invadidas por publicidade, por histórias em quadrinhos,
pela Turma da Mônica etc. Era preciso, portanto, manter o texto
literário, mas também desenvolver habilidades de leitura nesses outros
gêneros. Teve, ainda, um fato bastante significativo que me fez perceber
isso. Na época, fui a uma escola em Juiz de Fora onde estavam
utilizando meus livros. Pedi à professora para assistir à aula, mas
disse que ficaria quieta, no fundo da sala, e solicitei que ela não
falasse nada a meu respeito com os alunos. No fim da aula, a professora
se deu o direito de falar: “Agora, vou contar um segredo para vocês.
Sabem quem é aquela que está lá atrás sentada, assistindo à nossa aula? É
a Magda Soares, autora do nosso livro”. Em seguida, um menininho falou
assim: “Mas ela é viva?”. Naquele instante me dei conta de que, para o
menino, o autor do livro era alguém que já morreu.
Isto é, o autor aparece como alguém distante, intangível.
Eram
crianças de 10 ou 11 anos e a ideia de que o autor já morreu me deu
esse outro susto na vida: o livro como uma coisa que não parece
pertencer ao tempo deles. Garanto que, se naquele momento meu livro
fizesse referência a gibis, textos de publicidade, o garotinho
certamente não ia perguntar se a autora estava morta.
Como a senhora esbarrou na questão do letramento?
O
sociólogo Pierre Bourdieu foi, nesse sentido, meu grande guru. Ele
mostrou como a linguagem é usada como instrumento de poder na sociedade.
Portanto, é importante dar às pessoas esse instrumento. As camadas
populares têm que lutar muito contra a discriminação e a injustiça, e a
linguagem é um instrumento fundamental. Alfabetização e letramento têm
esse objetivo: dar às pessoas o domínio da língua como instrumento de
inserção na sociedade e de luta por direitos fundamentais. Em relação à
língua escrita, a criança tem que aprender duas coisas. Uma é o sistema
de representação, que é o sistema alfabético. Esse é um processo que
trabalha determinadas operações cognitivas e tem que levar em conta as
características do sistema alfabético, é saber decodificar o que está
escrito, ou codificar o que deseja escrever. Mas isso deve ser feito em
contexto de letramento, com textos reais, não com o clássico exemplo
“Eva viu a uva”. Que Eva? Que uva? Tradicionalmente a alfabetização se
resumia a codificar e decodificar, porque o foco era a criança aprender
apenas o código. Mas a questão é que a criança precisa aprender o código
sabendo para o que ele serve.
Trata-se de saber fazer usos sociais da alfabetização?
A
escrita é uma tecnologia como outras. É importante aprender a escrever,
conhecer a relação fonema-letra, saber que se escreve de cima para
baixo, da esquerda para a direita, aprender as convenções da escrita.
Mas essa tecnologia, como toda tecnologia, só tem sentido para ser
usada: para saber interpretar textos, fazer inferências, ler diferentes
gêneros, o que significa outra coisa e exige outras habilidades e
competências. Aprender o sistema de escrita é alfabetização. Aprender os
usos sociais do sistema de escrita é letramento.
As políticas de educação levam em consideração essa distinção?
A
formação de professores para ensinar a língua escrita, até mesmo para
ensinar qualquer conteúdo, é o principal nó na educação. Governo e
ministério se preocupam em dar formação para o professor, mas de forma,
em meu entender, inadequada. Não há um trabalho contínuo e duradouro.
Falta mudar a formação de professores. Enquanto isso não for feito, não
vamos chegar a lugar nenhum.
A escola tem recebido crianças com deficiências, ao contrário do que acontecia no passado. Qual o impacto disso?
Toda
criança tem direito de ser incluída no ensino regular,
independentemente do problema que tenha. Hoje, crianças com necessidades
especiais já vêm sendo incluídas no ensino regular. É muito bom. Só que
as professoras não são formadas nem preparadas para ensinar essas
crianças. Vejo outro problema: cresce a cada ano o número de crianças
consideradas “de inclusão” nas escolas. Não é possível ter tanta criança
autista como as que têm sido incluídas nas redes de ensino. Tenho visto
turmas em que dizem haver quatro, cinco crianças autistas. Isso não
parece razoável do ponto de vista médico e psicológico.
O que a senhora quer dizer?
A
proposta sempre foi incluir quem tem as chamadas necessidades
especiais, mas aí se começou a considerar qualquer dificuldade como
“necessidade especial”. Por exemplo, consideram crianças como tendo
atraso mental de 3 ou 4 anos. Discordo: em geral não é atraso mental, é
atraso de ensino que gera atraso de aprendizagem. Outro exemplo: basta o
menino não conseguir parar quieto e ter paciência para acompanhar a
aula para ter diagnóstico de hiperativo e receber receita de ritalina
[medicamento usado contra hiperatividade e déficit de atenção]. Ele é
ativo, só isso, a atenção é curta. Professores e escola precisam saber
trabalhar com essas crianças, não encaminhá-las logo a profissionais de
outras áreas.
Como nasceu o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da UFMG, do qual a senhora é fundadora?
Nasceu
de uma proposta de pesquisa que enviei ao CNPq há 25 anos. Eu queria
construir o “estado da arte” em alfabetização no Brasil: um levantamento
do que já se tinha pesquisado a fim de identificar as lacunas que
demandavam pesquisas. O projeto foi aprovado e deu-se início a um
trabalhoso levantamento de todas as teses e dissertações sobre
alfabetização escritas no país até aquele momento. Descobrimos que o
primeiro trabalho a pesquisar a alfabetização foi uma tese de
livre-docência defendida nos anos 1960 em São Paulo. Numa época em que
ainda não havia o banco de teses e dissertações da Capes [Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], o levantamento foi feito
por meio de telefonemas, contato com bibliotecas de todo o Brasil.
Identificamos temas que mereciam aprofundamento, outros que não eram
tratados. Com o tempo, passamos a participar de atividades de extensão
em escolas públicas e a colaborar com o Ministério da Educação em
programas de alfabetização e letramento. É um centro que tem
desempenhado a difícil tarefa de ser ao mesmo tempo um grupo de
pesquisa, uma linha do curso de pós-graduação da Faculdade de Educação
da UFMG e um centro de colaboração com políticas públicas na área da
linguagem.
A senhora foi amiga de Paulo Freire. Como seu trabalho se aproxima do dele?
Considero
que trabalho com os mesmos pressupostos e os mesmos ideais que ele, com
a mesma utopia. Não considero que a principal contribuição de Paulo
Freire é um método de alfabetização. O que chamam de “método Paulo
Freire de alfabetização” não existe. A grande contribuição que ele deu
foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo.
Quanto à alfabetização, sua contribuição foi que não se deve alfabetizar
com “Eva viu a uva”, mas sim com palavras e textos da realidade da
pessoa. O foco de Paulo Freire foi sobretudo a alfabetização do adulto.
Meu foco é a alfabetização de crianças. Alfabetizando operário, é
fundamental trabalhar com a palavra tijolo, por exemplo. Alfabetizando
crianças, trabalho com a palavra boneca ou bola. Tudo isso para a pessoa
aprender a língua escrita como instrumento de inserção social e
cultural e da luta por seus direitos. A arma social de luta mais
poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes
dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho.
A senhora se aposentou aos 70 anos. O que tem feito ultimamente?
Colaboro
como voluntária na rede municipal de ensino de Lagoa Santa. Ao deixar a
universidade, quis voltar à escola pública, para buscar a articulação
entre as teorias que estudei ou construí e as práticas das salas de
aula. Desenvolvemos um projeto com o objetivo de que todas as 24 escolas
do município avancem na qualidade da educação. Quando há oito anos uma
nova administração assumiu o município, a secretária de Educação ficou
assustada com os baixos resultados em alfabetização na rede e me pediu
sugestões e ideias. Visitei as escolas e propus um trabalho que
atingisse a rede toda. O projeto recebeu o nome de Paralfaletrar, que
significa aprimorar a alfabetização e o letramento ao mesmo tempo. Foi
construído com a participação das professoras e apresenta ótimos
resultados: o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do
município aumentou acima do esperado e os resultados dos alunos nas
avaliações externas estão sempre acima da média estadual ou nacional.
A questão da alfabetização está resolvida no Brasil?
Não.
Eu mesma, e é uma queixa frequente de professores, já tive alunos de
graduação e até de pós-graduação com dificuldade de compreender e de
escrever textos. A dificuldade vem de um ensino deficiente na educação
básica. Nos anos 1950 e 1960, abrimos as escolas para as camadas
populares, até tardiamente. Agora fazemos o mesmo nos cursos superiores.
Mas nos dois níveis estamos resolvendo a quantidade e não a qualidade.
Esse é o problema da educação brasileira: busca-se resolver apenas a
quantidade de carteiras nas salas de aula. Fica faltando a qualidade do
ensino e, portanto, de aprendizagem.
* Educadora da UFMG fala dos desafios da alfabetização e do letramento no país e da importância da pesquisa direcionada à prática
Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br/magda-becker-soares-o-poder-da-linguagem/
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